quinta-feira, 19 de julho de 2012

NA SENDA DE L.PAUWELS & JACQUES BERGIER

pedagogia da imaginação-ac-cf>quinta-feira, 19 de Julho de 2012

PEDAGOGIA DA IMAGINAÇÃO

Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 29. 11.1972, no suplemento«Literatura e Arte», coordenado por Maria Teresa Horta

Quando os postulados e propósitos iniciais do surrealismo começaram a sofrer um natural processo deteriorativo por parte de epígonos e exploradores do sucesso, não nos devemos admirar que se procurassem novas vias para o exercício da imaginação — ainda que essas vias se chamassem realismo fantástico ou prospectiva.
Aceitando o desafio da tecnologia, houve alguns autores empenhados em demonstrar, a partir dela, duas coisas:
que a inteligência especulativa e calculatriz nunca substituiria a imaginação;
que, antes pelo contrário, a tecnologia dos computadores não só abria uma esperança à actividade mental, deixando-a livre das tarefas subservientes do cálculo e da informação para a projectar em full-time na criação poética;
como, ela própria, permitia novas mil combinações capazes de servir (ao lado do non-sense, do cadáver esquisito, do automatismo, etc) o pensamento analógico ou poético e um aparelho de controlo capaz de tornar a crítica à obra muito mais precisa, muito mais rigorosa, afastando, portanto, do templo os vendilhões.
Quer dizer, a tecnologia dos computadores abria uma dupla esperança, ao contrário do que os pessimistas profetizavam, supondo que chegara a época do "robô", do homem-máquina, do sujeito totalmente alienado à mecânica, sem margem para imaginar outra coisa que não fosse o círculo vicioso e tautológico das suas alienações.
A tecnologia dos computadores dava à imaginação, finalmente, o estatuto de actividade soberana e autónoma, especificamente humana, a única insubstituível (por enquanto) por qualquer máquina. Aquilo que se pressentia há séculos era agora materialmente comprovado.


Nesta reabilitação e neste esclarecimento, é de salientar o papel que a obra de Louis Pauwels e Jacques Bergier — publicada em 1960 com o título Le Matin des Magiciens —, discutida embora quer por surrealistas atrasados quer por racionalistas míopes, veio desempenhar. Incluir no processo reabilitatório da imaginação, a ciência e sua técnica (um pouco ao contrário do surrealismo que não quis aceitar esse desafio, que o preferiu ignorar e que acabaria, portanto, por se deixar ultrapassar por ele) o realismo de Louis Pauwels, que se confessa grandemente subsidiário do surrealismo (como não podia deixar de ser, se era a imaginação que estava em jogo) aceita da ciência e da técnica o seu desafio, querendo ver depois onde, servindo-se dela, a podia superar, a podia dis-pensar.
Quaisquer que sejam as objecções de ordem prática, de ordem política que se coloquem a movimentos como o realismo fantástico e a prospectiva (nem todas as objecções são tão pertinentes e justas como a ignorância dos lados às vezes leva a supor), de um único ponto de vista essas duas correntes (assim como o surrealismo e sua pertinaz intervenção) nos podiam, nos deviam interessar: numa sociedade que pretende submergir tudo e todos na vácua mediocridade do senso comum, ou de uma estreita racionalidade de onde o melhor do homem é expulso e escorraçado, ou de um dogmatismo esclerosante, — essas duas correntes são propostas, desafios, hipóteses da imaginação à imaginação, que em nada perturbam outras hipóteses, que em nada impedem uma acção prática, que em nada colidem com propósitos de mudar o mundo, de transformar a vida. Antes pelo contrário. Nunca a imaginação contrariou essa mudança, antes é ela que, sempre, a visiona, antecipa, pressente e torna urgente.
Desta perspectiva, nenhum autor ou corrente me parecem desprezáveis, desde que e até ao momento em que se verifique a sua total impossibilidade de estimular o pensamento imaginativo e a heresia poética. Teilhard pode ser tão fascinante e necessário como Marx, porque a leitura de qualquer deles, à parte as aplicações concretas e o aproveitamento oportunista do seu pensamento, é fonte do nosso próprio movimento mental, tenha ele ou não oportunidade de se projectar e aplicar na transformação concreta do mundo e da história. A pedagogia da imaginação, em suma, não me parece prejudicial em nenhuma circunstância.
Nenhum pensamento livre é pernicioso, se o encararmos como estímulo e sequência de uma mesma aventura humana chamada Imaginação — qualidade vectorial que, por enquanto, distingue a espécie humana não só das outras espécies animais como das máquinas por ele — homem — construídas. Enquanto não houver animal ou máquina capaz de imaginar, tal tese parece prestável como rumo de trabalho e útil a quem tenha o ofício de existir, quer dizer, imaginar.
-----
Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 29. 11.1972, no suplemento«Literatura e Arte», coordenado por Maria Teresa Horta

CONTEMPORÂNEOS DO FUTURO

O VISIONÁRIO GIORDANO BRUNO

1-3 - terça-feira, 29 de Abril de 2003- 70-05-12-ls-prefácio- imaginação-2

ELOGIO DA IMAGINAÇÃO:
VISIONÁRIOS OU CONTEMPORÂNEOS DO FUTURO ? (*)



[(*) Este texto de Afonso Cautela, só parcialmente inédito, aparece como um «prefácio» a qualquer coisa, e que hoje francamente não sei o que seja: fica a data em que foi escrito e a parte publicada na respectiva data de publicação.]


Escrito em 12-5-1970

Nem seria necessário evocar os casos exemplares de Sócrates, Giordano Bruno, Sade, Galileu, Freud, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche e Artaud, para comprovar de como a imaginação – virtude cardial do homem – tem sido quase sempre pouco apetecida pela ordem ou ordens estabelecidas.
Os visionários, contemporâneos de um futuro que quase nunca coincide com o presente onde estão, encontram-se mais ou menos condenados à morte, ao hospital ou ao gueto, perseguidos pelos que, no tempo e no templo, detêm o poder temporal.
Assim, a imaginação, por força da própria história que os seus autores desenham, se liga a uma vivência ou experiência de pessoa, indesligável da obra.
E assim vãos se afiguram os propósitos de a reduzir aos fabricos ou sinais externos da linguagem; embora, claro, sem a intervenção dos signos não exista manifestação imaginativa.
Se entre os mais recentes autores de uma imaginação absoluta – Teilhard, Jorge Luís Borges, Agustina Bessa Luís, Samuel Beckett, - são menos frequentes os casos de fogueira, asilo, hospital ou campo concentracionário, não quer dizer que, por mais subtis, por terem mudado de forma e de táctica, por se encontrarem "actualizados" os processos de trituração e esmagamento não se façam sentir e até de maneira mais drástica, porque menos espectacular.
Porque mais ardilosas são também as formas que dizem representar hoje o reino solar da imaginação, mais difícil se torna distinguir entre o real fantástico e a mera rotina ou pirotecnia verbal, entre o revolucionário e o académico, entre o clássico e o moderno-de-sempre.
Qualquer que seja o campo ou tema onde estas páginas vão bater, vão ter e deter-se, um propósito ou ambição comum as anima: a procura do que representa, para lá das aparências e tentações do momento e da moda, do que estimula, respeita ou prepara a imaginação. Palavra difícil de delimitar, só por tacteios em vários sentidos se lhe pressente , um pouco, do conteúdo possível. Daí que estes ensaios pareçam dispersar-se em vários sentidos divergentes, quando afinal convergem para o mesmo alvo.
Estóico e um bocado ingénuo terá de ser o aprendiz de feiticeiro que, no meio da cultura constituída, não queira perder o pé. Nos últimos tempos, muitas têm sido as armadilhas que, sob o alibi de modernismo, se perfilam para suprimir ou deter exactamente toda a manifestação moderna, a força original de onde brota e se alimenta a imaginação - de um autor ou de um povo.
Os que doutrinam e teorizam, por exemplo, sobre poesia, os que decretam quem é quem não é, quem vale e quem não vale, quem vive e quem morre, os que exportam e importam, os que dedilham o novo romance, os que desenterram sistemas metafísicos, os que se apegam a fórmulas dogmáticas sob a desculpa ideológica de urgentes obrigatoriedades políticas- tudo isso corrompe a esperança, tudo isso concorre para tornar irrespirável qualquer atmosfera de ousio e aventura.
E sem imaginação, a época é de obscuridade, qualquer que seja o nome daquilo em que esse "obscurantismo" procura triunfar.
Se é verdade que para um Herberto Helder , a escola experimentalista actuou ou actua como um estímulo da soberana imaginação que é a sua, o facto é que a muitos outros serviria para desculpar fatais esterilidades poéticas e de sigla para instaurar uma academia, uma escolástica, uma dogmática de onde a imaginação sai cuspida e vexada, esvaziada e vencida.
Não são muitos os casos de imaginação-absoluta com que conta a recente literatura portuguesa (Raul de Carvalho e Mário Cesariny devem citar-se, porque logo ocorrem), e o facto, se pode obter justificação mas não desculpa, num subdesenvolvimento crónico, deveria, por outro lado, alertar-nos para a necessidade, a urgente obrigação que sobre todos os que escrevem impende de procurar saída.
Dentro de seus magros e parcos recursos, como é o caso (sem falsa modéstia) dos ensaios aqui reunidos.
Se a imaginação pertencia tradicionalmente aos poetas, cujo visionarismo os manuais se encarregam de historiar, desprezando e menosprezando, - o que se verificou, em algumas teorias estéticas recentes, foi o desvio e desvirtuação dessa linha digamos comum, aos heréticos de todos os tempos.
E porque, nos poetas, doutrinados por tais escolas, o conformismo começou de sobrepor-se à heresia, é natural que em outros campos da inteligência se procurasse quem exerça o livre trânsito da imaginação.
*
Quando os postulados e propósitos iniciais do surrealismo começaram a sofrer um natural processo deteriorativo por parte de epígonos e exploradores do sucesso, não nos devemos admirar que se procurassem novas vias para o exercício da imaginação - ainda que essas vias se chamassem realismo fantástico ou prospectiva.
Aceitando o desafio da tecnologia, houve alguns autores empenhados em demonstrar, a partir dela, duas coisas: que a inteligência especulativa e calculatriz nunca substituiria a imaginação; que, antes pelo contrário, a tecnologia dos computadores não só abria uma esperança à actividade mental, deixando-a livre das tarefas subservientes do cálculo e da informação para projectar em full-time na criação poética ; como, ela própria, permitia novas mil combinações capazes de servir (ao lado do non-sense, do cadáver esquisito, do automatismo, etc.) o pensamento analógico ou poético e um aparelho de controlo capaz de tornar a crítica à obra muito mais precisa, muito mais rigorosa, afastando, portanto do templo os vendilhões.
Quer dizer; a tecnologia dos computadores abria uma dupla esperança, ao contrário do que os pessimistas profetizavam, supondo que chegara a época do "robô", do homem-máquina, do sujeito totalmente alienado à mecânica, sem margem para imaginar outra coisa que não fosse o círculo vicioso e tautológico das suas alienações.
A tecnologia dos computadores dava à imaginação, finalmente, o estatuto de actividade soberana e autónoma, especificamente humana, a única insubstituível (por enquanto) por qualquer máquina. Aquilo que se pressentia há séculos, era agora materialmente comprovado.
Nesta reabilitação e neste esclarecimento, é de salientar o papel que a obra de Louis Pauwels e Jacques Bergier - publicada em 1960 com o título Le Matin des Magiciens - , discutida embora quer por surrealistas atrasados quer por racionalistas míopes, veio desempenhar.
Incluir no processo reabilitatório da imaginação, a ciência e sua técnica ( um pouco ao contrário do surrealismo que não quis aceitar esse desafio, que o preferiu ignorar e que acabaria, portanto, por se deixar ultrapassar por ele) o realismo de Louis Pauwels, que se confessa grandemente subsidiário do surrealismo (como não podia deixar de ser, se era a imaginação que estava em jogo) aceita da ciência e da técnica o seu desafio, querendo ver depois onde, servindo-se dela, a podia superar, a podia dis-pensar.
Quaisquer que sejam as objecções de ordem prática, de ordem política que se coloquem a movimentos como o realismo fantástico e a prospectiva, (nem todas as objecções são tão pertinentes e justas como a ignorância dos dados às vezes leva a supor), de um único ponto de vista essas duas correntes (assim como o surrealismo a sua pertinaz intervenção) nos podiam, nos deviam interessar aqui, nestas páginas: numa sociedade que pretende submergir tudo e todos na vácua mediocridade do senso comum, ou de uma estreita racionalidade, de onde o melhor do homem é expulso e escorraçado, ou de um dogmatismo esclerosante, - essas duas correntes são propostas, desafios, hipóteses da imaginação à imaginação, que em nada perturbam outras hipóteses, que em nada impedem uma acção prática, que em nada colidem com propósitos de mudar o mundo, de transformar a vida. Antes pela contrário. Nunca a imaginação contrariou essa mudança, antes é ela que, sempre, a visiona, antecipa, pressente e torna urgente.
Desta perspectiva, nenhum autor ou corrente me parecem desprezáveis, desde que e até ao momento em que se verifique a sua total impossibilidade de estimular o pensamento imaginativo e a heresia poética.
Teilhard pode ser tão fascinante e necessário como Marx, porque a leitura de qualquer deles, à parte as aplicações concretas e o aproveitamento oportunista do seu pensamento, é fonte do nosso próprio movimento mental, tenha ele ou não oportunidade de se projectar e aplicar na transformação concreta do mundo e da história.
A pedagogia da imaginação, em suma, não me parece prejudicial em nenhuma circunstância.
A tese defendida nestas paginas é, portanto, a de que nenhum pensamento livre é pernicioso, se o encararmos como estímulo e sequência de uma mesma aventura humana chamada Imaginação - qualidade vectorial que, por enquanto, distingue a espécie humana não só das outras espécies animais como das máquinas por ele - homem - construídas.
Enquanto não houver animal ou máquina capaz de imaginar, tal tese parece prestável como rumo de trabalho e estas páginas úteis a quem tenha o ofício de existir, quer dizer, imaginar.

----
(*) Este texto de Afonso Cautela, só parcialmente inédito, aparece como um «prefácio» a qualquer coisa, e que hoje francamente não sei o que seja: fica a data em que foi escrito e a parte publicada na respectiva data de publicação.

O SURREALISMO SEGUNDO FRANCO FORTINI


1-1-fragmento-1-S&S> quarta-feira, 30 de Abril de 2003

O FRAGMENTO DO FRAGMENTO SURREALISTA

[ 1963?] - Da escassa bibliografia portuguesa sobre o surrealismo, há que salientar a tradução que se deve aos bons ofícios de António Ramos Rosa, em edição da Presença, de "O Movimento Surrealista", de Franco Fortini, que já seria informativo para o meio, se não estivesse até meio: acontece assim o mergulho até ao joelho em que falava Cesariny, um fragmento de livro, um fragmento de antologia, um fragmento de surrealismo.
Eis pois: não há que pedir ou lastimar. Há só que verificar e resignados aguardar que outro fragmento menos fragmentário elucide os leitores da explosão surrealista. Porque o livro assim ensina alguma coisa mas não ensina muito e deixa em branco um bom bocado (o melhor).
Resumida a ordem abjeccionista em três palavras - o que é não aparece e o que aparece não é - deve acrescentar-se que ela sucedeu aqui à metamorfose surrealista, algures na Europa (quando havia Europa), eco em Portugal (quando havia
eco), o que explica em parte a geral alergia contra o surrealismo, pois nunca aqui se viu e soube coisa que tal fosse.
Sai surrealismo, não sai surrealismo. Desta vez saiu algum livro, alguma antologia, algum surrealismo, um bocadinho de cada. Não é mau, dá para o consumo mas contribui negativamente para esclarecer ou desobscurecer os astros. Essa a pena, que aqui tirámos do tinteiro.

QUANTO MAIS FANTÁSTICO MAIS REAL

1-6 -fantástico-amp

[ 1970]

QUANTO MAIS FANTÁSTICO MAIS REAL

40 ITENS PROSPECTIVOS

PERGUNTAS DE A.C. A AFONSO CAUTELA

AINDA SEM RESPOSTA(*)


(*) Desesperado, nos primeiros anos 70, porque ninguém o entrevistava sobre temas prospectivos que o obcecavam, resolve fazer ele as perguntas sobre itens do maravilhoso, surrealismo, realismo fantástico e etc. Este rol de itens sobre surrealismo e futuro é, evidentemente, contemporâneo das séries «Notícias do Futuro» (n’ O Século Ilustrado e no Notícias da Beira) e da minha campanha surreal-abjeccionista, lisonjeado pela atenção do Cesariny, que devo situar nos anos 1970-71 e 72.

(*) Ainda está a tempo de responder (9/5/1997 e sexta-feira, 7 de Maio de 2004)

Respondendo um dia a interrogações a seguir formuladas sobre prospectiva, futurologia, surrealismo, realismo fantástico, literatura de antecipação, extraterrestres, civilizações desaparecidas, política da imaginação e revolução cultural, propõe-se o autor elaborar, um dia, num quadro coerente, a síntese ou súmula das suas investigações de 42 anos sobre a imaginação como método científico. (19.Julho.2012)


1 - A proliferação de escolas e correntes no teatro, nas artes plásticas, na música, na literatura e na poesia, - significará uma procura autêntica da imaginação no caminho do "inadmissível" e do "desconhecido" (do ainda ignorado) ou apenas uma anárquica, cancerosa multiplicação de modas formais, sem raízes no desejo profundo de uma profunda mutação ou metamorfose humana?

2 - "Aceleração histórica" parece constituir hoje um conceito fundamental, susceptível de determinar viragens decisivas em todos os campos do conhecimento e da actividade humana. Como sente e pensa esse conceito e suas consequências?
Que experiência pessoal dele nos pode transmitir?

3 - Dada a urgência em acompanhar a referida "aceleração histórica", a cultura deveria ser já hoje aquela organização ou técnica que tivesse por finalidade:
- hierarquizar valores;
- estabelecer prioridades;
- deixar para as máquinas de pensar o que pode ser realizado por elas com mais rapidez e eficácia;
- deixar para os homens o trabalho de programar os computadores.
Deixando às máquinas o que elas podem fazer, será possível impedir que a referida "aceleração" nos ultrapasse e esmague definitivamente?
Valerá a pena pedir que a pedagogia contemporânea pense nisto? E resolva?


4 - "L'Encombrement" foi o termo que o grupo francês de Prospectiva (Association Gaston Berger) escolheu para sintetizar a encruzilhada do homem contemporâneo que, afogado de supérfluos, não distingue daí o essencial.
Afogado de informações e dados, que deverá fazer-se para o libertar?.
Parece-lhe importante saber antes de mais nada o que é importante?

5 - 80% dos cientistas que viram a luz desde que o homem existe, estão actualmente vivos (a sua acumulação inicia-se praticamente em 1900).
"Esta prodigiosa equipa criadora" - diz Henri Prat, professor da Faculdade de Ciências de Marselha - "praça forte de centenas de milhar de cérebros superiormente treinados, de todas as nações e de todas as raças, apoiando-se sobre a herança de todos os génios desaparecidos, equipa de tal forma que nunca se viu nada de comparável, representa a força motriz actual do "foguetão humano". É ela que a uma velocidade crescente nos projecta para o nosso destino. Onde nos conduzirá?"
Onde?

6 – “Quando o físico italiano Bruno Pontecorvo, que trabalhava em Inglaterra, emitiu a hipótese que o interior das estrelas poderia ser directamente observável graças a partículas muito penetrantes, os neutrinos, riram-se-lhe no nariz.
Pontecorvo partiu para a URSS onde obteve o prémio Lenine pelos seus trabalhos sobre a observação directa do interior das estrelas, graças a um telescópio de neutrinos.”
Comentário:

7 - A paixão do "desconhecido" (do ainda ignorado ) tanto se faz sentir hoje no sentido futuro do tempo (futurologia) como no do passado (arqueologia): o problema das civilizações paralelas já foi colocado e parece oferecer um permanente desafio à imaginação do homem em geral e dos poetas em particular.
Parece-lhe susceptível de tal importância a chamada "história paralela" ou "invisível", a "história desconhecida da historiografia oficial"?

8 - Alguns autores falam hoje de uma mutação provável e próxima, mesmo eminente, da espécie humana.
A dar-se essa mutação, haverá desde já sinais dela?
Como se caracterizaria e que importância teria (ou já está a ter) para os dados em que se apoia a Antropologia clássica?

9 - Desmond Morris tem sido um best-seller mundial.
Poderá ver-se neste fenómeno uma paixão crescente da grande maioria pelos problemas da Antropologia?
Mas não será também Desmond Morris um dos últimos abencerragens da Antropologia imobilista e tradicional que amarra o homem aos seus estratos animais em vez de o libertar no sentido da espiral da evolução cósmica?

10 - Dentro da espécie humana, não estará já a verificar-se uma nova espécie de criaturas diferenciadas que significam, na escala zoológica, um grau de avanço em relação ao imediatamente anterior?

11 - O surrealismo foi, no intervalo das duas guerras, uma das primeiras tentativas para reabilitar correntes do pensamento e da arte que o racionalismo do século XIX (via reduzida) obliterara.
A sua pesquisa tanto se exerceu no tempo - passado e futuro - como no espaço - culturas não ocidentais.
Que virtualidades têm ainda hoje essas pesquisas e as correntes posteriores ("realismo fantástico", por exemplo) lhe acrescentaram?

12 - Estará hoje suficientemente claro, aos mais lúcidos, que o surrealismo não foi um irracionalismo mas um super-racionalismo?
Parece-lhe esta distinção importante para o juízo histórico que se há-de proferir, uma. vez que se atribui, por exemplo, o advento nazi a uma ressurreição de irracionalidades desencadeadas?

13 - A verdadeira imaginação não será uma superior racionalidade? Confundir irracional com surreal, não será fazer a apologia de um obscurantismo (o racionalismo de pequeno porte e dogmático) em nome da luta contra outro obscurantismo (o irracionalismo como, de facto, uma manifestação primária, pré-evoluída e pré-lógica, da espécie?)

14 - O mesmo equívoco não estará a verificar-se quando a pesquisa vai até aos alquimistas e a todos os surtos da literatura e da arte fantástica, a todo o utopismo e a toda a corrida para o imaginário?
Não estará a confundir-se o que pode haver de racionalidade aberta em certas manifestações artísticas com um conceito de irracionalidade demasiado estreito e apressado?

15 - O "despertar dos mágicos" e todo o movimento nascido do livro-manifesto de Louis Pauwels e Jacques Bergier, significaria um racionalismo aberto ou um retorno ao obscurantismo irracionalista?

16 - A criação de vida no laboratório, a imortalidade, a invisibilidade, a levitação, a comunicação com os mortos, a observação do passado e do futuro, a telepatia: devem tais ambições encarar-se como definitivamente impossíveis (utopias no sentido pejorativo) ou como coisas que poderão conseguir-se um dia?
Devem inscrever-se no campo das possibilidades a explorar, ou arrumar-se como delírios inúteis de uma fase atrasada da mente humana?

17 - Embora os discos voadores sejam, frequentemente, motivo de gracejos por parte do grande público, tem havido sérias e extensas discussões na comunidade científica acerca da possibilidade de esses objectos serem veículos vindos do espaço exterior.
Qual a sua opinião?

18 - Se os discos voadores são uma realidade, o que pensa que isso significa e quem são os seus timoneiros?

19 - Entre as razões aduzidas pelos que duvidam da origem interestelar dos objectos voadores, encontra-se a «teoria especial da relatividade» de Einstein, seguindo a qual a velocidade da luz é absoluta e nada pode excedê-la.
Por conseguinte, uma viagem, mesmo da mais próxima estrela até à Terra, duraria milhares de anos. Afirmam que isto exclui virtualmente as viagens interestelares - pelo menos a dos seres sensitivos cuja duração de vida seja tão curta como a mais longa que o homem conhece.
Este argumento parece-lhe válido?

20 - O físico Robert Etlinger e outros, propuseram a congelação de corpos mortos em nitrogénio líquido, até uma data longínqua, em que possam ser revivificados.
Que pensa desta ideia?

21 - Pessoalmente, tem algum interesse em ser congelado?

22 - Os que discordam do congelamento criogénico argumentam que a morte é o ponto culminante, natural e inevitável da vida, pelo que não deveríamos discutir com ela, mesmo que tal nos fosse possível.
Qual a sua opinião?

23 -.Partilha a opinião de alguns psiquiatras, segundo a qual a nossa permanente confiança no equilíbrio do poder nuclear, com todos os consequentes riscos de uma catástrofe maciça, poderia reflectir uma espécie de desejo de morte colectiva?

24 - No meio da confusão gerada pelas escolas estéticas que teorizam poesia e arte, que lhe parece possível fazer - ao alcance de quem escreve e  para delimitar e definir de novo a imaginação e seu primado e soberania e autonomia e alcance?

25 - A tecnologia dos computadores foi anunciada por medíocres profetas como o advento dos homens-robot e como a morte definitiva do homem, ou seja, da espécie humana naquilo que especificamente a caracterizaria, a sua audácia ou capacidade poética, criadora, inventiva ou imaginativa.
Qual a sua opinião: a automação, mecanizando os processos da inteligência calculatriz, veio reabilitar a soberania da imaginação, - ou definitivamente liquidá-la?

26 - O realismo fantástico - marcado em 1960 pelo aparecimento do livro “Le Matin des Magiciens”- foi asperamente criticado quer pelos surrealistas, quer pelos racionalistas:
A 10 anos de distância, poderemos concluir que o movimento de Louis Pauwels e Jacques Bergier era necessário, ou que nada adiantou, sob o ponto de vista que aqui nos importa : a revivescência dos direitos da imaginação como virtude cardial do pensamento humano?

27 - Escolas como o concretismo-experimentalismo e o novo romance contribuíram, a seu ver, para reavivar entre nós o interesse pelo trabalho da imaginação ou, ao contrário, para mais o desvirtuar e comprometer, na sequência das nossas tradições anti-imaginação?
Que quota de responsabilidade entende dever atribuir-se a essa e outras escolas (por alguns consideradas neo-académicas) no panorama actual da literatura portuguesa em geral e da poesia em particular (por alguns considerado um triste panorama)?

28 - Uma persistente teorização tem pretendido exilar o poeta da poesia, separar o actor da obra, irresponsabilizar o criador da coisa criada, desligar a experiência pessoal da imaginação.
Qual, a seu ver, o alcance desse estratagema., que fornece, como é sabido, uma boa via para fazer da literatura uma actividade profissional de habilidosos profissionais?

29 - A que deverá atribuir-se o advento de neo-formalismos na nossa poesia e na nossa literatura?
Exilar o criador da coisa criada não será, não terá sido uma cómoda maneira de voltar à literatura literária, a tal que, segundo André Breton leva a tudo, incluindo à glória e a lugares bem remunerados?

30 - Quais a seu ver, e num cômputo rápido, os autores e correntes de pensamento que, em vez de travar, estimulam e enriquecem o movimento da imaginação para a imaginação?

31 - Parece-lhe justo estender hoje até aos ensaístas que imaginam o futuro, o conceito até agora estrito de imaginação?
Os casos de Jorge Luís Borges e de Teilhard de Chardin exemplificam, a seu ver, o que pode ser a inteligência como imaginação e a imaginação como inteligência?

32 - Dado que a crítica literária em Portugal navega por outras águas que não estas - as da imaginação e seu primado - parece-lhe que isso estará dando origem a monumentais injustiças de apreciação e a uma completa inversão dos valores conhecidos e reconhecidos?
Quer dizer: acha que o panorama oficial da actual literatura portuguesa coincide com o panorama real, ou que se desfasa dele até à total descoincidência?

33 - Dado o completo despiste em que, segundo alguns, se encontra a crítica, acha que poderão repetir-se (multiplicar-se) hoje os casos já clássicos e tão interessantes (sempre muito chorados de Amadeo e Pessoa, completamente ignorados para não dizer cilindrados pela crítica sua contemporânea?)

34 - Parece-lhe, enfim, necessária uma PEDAGOGIA DA IMAGINAÇÃO?

35 - Que importância poderá vir a ter para o desenvolvimento (político e cultural ) português, um estudo sistemático da PROSPECTIVA - seus métodos e princípios?

36 - A capacidade de prever, em ciências humanas, poderá evitar erros e concorrer para dar soluções mais inteligentes aos problemas políticos, económicos e sociais?

37 - Seja qual for a evolução do mundo nos próximos dez anos, acredita que é possível imprimir ao desenvolvimento português uma aceleração que corrija o atraso em relação aos países da Europa?

38 - A qual das actividades dar prioridade: Educação; Economia; Política; Investigação Fundamental; Pedagogia da Imaginação?

39 - Prospectiva é a filosofia do desenvolvimento, ou antes é o sinónimo de Estratégia Global do Desenvolvimento: que se lhe oferece dizer sobre as possibilidades abertas pela EGD (estratégia global do desenvolvimento) à "revolução cultural” que todos entendem ser urgente?

40 - Que podem uma ciência e uma mentalidade prospectiva contra o ciclo vicioso e as contradições da "sociedade burocrática de consumo dirigido" (Henri Lefèbvre)? ■

PARA QUE SERVE A MODERNIDADE?


1-3 - habermas-1-ls- terça-feira, 24 de Dezembro de 2002-scan

DESPERDÍCIOS FILOSÓFICOS: PARA QUE SERVE A MODERNIDADE?(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas e meia, foi publicado, com grande escândalo do próprio, em «Livros na Mão», «A Capital», 26-3-1991

[ 26-3-1991, in «A Capital»] - Um pouco mais de azul e o «Discurso Filosófico da Modernidade, de Jurgen Habermas (1), seria asa. Se explicar fosse, para ele, como era, por exemplo, para os filósofos taoístas, simplificar em vez de complicar, quem sabe se não íamos todos para a cama mais cedo e com a digestão mais bem feita Se a modernidade não melhora sequer o metabolismo, para que serve a modernidade?

Um pouco menos de complicação técnica e o ensaio que Habermas dedica a Georges Bataille, nomeadamente ao livro deste, A Parte Maldita, verdadeiro manifesto contra a cultura ocidental e seu fraco poder de encaixe, constituiria o abrir de uma porta possível no muro de Berlim que ele teima em designar por modernidade. Se modernidade é (fosse) alcançar o essencial em detrimento do acessório, então Habermas estaria próximo de uma definição ideal quando analisa Bataille, no capítulo desta obra intitulado «Entre Erotismo e Economia Geral».

Economia., com efeito, era a palavra que continuava a faltar em todos os discursos sobre a modernidade: segundo o filósofo de Frankfurt, a explicação antropológica que Bataille faz do «heterogéneo enquanto parte maldita» rompe com «todas as figuras dialécticas do pensamento», o que, segundo ele, suscitaria uma questão: saber como é que Bataille pretende explicar a passagem revolucionária de uma sociedade enregelada e completamente reificada para uma renovação da soberania.»
Segundo escreve, logo a seguir, «o projecto de uma economia geral alargada até à economia energética da natureza no seu conjunto, pode ser entendido como uma resposta a esta questão. Resposta que - digo eu - vinha a ser largamente dada por todas as correntes posteriores ao surrealismo e ao existencialismo, correntes que, da antropologia estrutural à análise energética, colocaram no centro da questão a dialéctica homem/natureza, ou, em termos tradicionais, microcosmo/macrocosmo.
Mas então porque gasta ele tempo, energias, páginas e poder, na procura de uma modernidade que já só existe em casas de passe e antiquários?

A REBOQUE DO PODER ECONÓMICO

Não há dúvida de que o actual poder filosófico, a reboque do poder científico (totalmente a reboque do poder económico), é a pura imagem do desperdício energético. Um panorama desolador de lixo e luxo.
Os vários nomes que o «poder» foi tomando nos filósofos da modernidade ilustram, de maneira exuberante, esse panorama, tal como vão surgindo nestas páginas de densa complexidade e análise exaustiva sobre Benjamin, Hegel, Schiller, Horkheimer, Adorno, Heidegger, Derrida, Bataille, Foucault, Castoriadis, Luhmann e – claro! – Nietzsche, o homem fatal, que ao poder chamou vontade, enquanto Bataille lhe chamava «erotismo».
Na sua desarmante simplicidade, os taoístas chineses chamam-lhe ki» (a menor palavra para o máximo de significação) e passam adiante porque têm mais que fazer. O seu sistema explicativo sobre o funcionamento do universo está completo e perfeito desde há, pelo menos, sete mil anos, modernidade esta que não é para desprezar, no nosso tempo de countdown e contra-relógios.
Entretanto, filósofos da modernidade, como Hitler e Mussolini, ao poder chamaram um figo, pelo que houve historiadores, maldosos, a designá-los de totalitários, fascistas, tiranos de bigode, saddans, etc . Nunca a modernidade vê estes telefolhetins chegar ao fim, vindo sempre outro em continuação do anterior. A ver se gastam o stock de Patriots.

Nos intervalos de explicar complicando, Habermas distrai-se das «ontologias estruturais», recai no real mesmo heterogéneo e volta à via correcta, ou seja, economiza tempo, não só porque tempo é dinheiro (como diz a tradição judaico-cristã, sempre muito atenta aos valores do espírito) mas porque é também energia e a consciência energética tudo unifica sem alterar um ápice o multiforme pluralismo do real. Só que não vale a pena andar à descoberta deste ovo de Colombo, porque ele já está descoberto há, pelo menos, sete mil anos bem contados, incluindo os 2000 d.C.

Se Hitler, que tanto preocupa Habermas e os filósofos de Frankfurt em geral, tivesse tido a intuição deste postulado básico e não tivesse invertido estrategicamente o sentido da suástica, não perderia a energia que perdeu a unificar a Alemanha sob o signo da águia imperial e a despender tanta proteína no holocausto de vidas humanas a que procedeu e onde, como se sabe, até os dentes das vítimas eram economicamente aproveitados para fazer botões e as gorduras velas de cera. Foi a Ganância que o perdeu.

Quando, como neste caso, se quer dizer que a energia foi mal canalizada, chamamos-lhe violência, outro nome possível para «poder» cego.

Primeiro grande ecologista da corrente verde do nosso século, Hitler procedeu à reciclagem sistemática na sua luta desesperada contra e entropia. Só que era vesgo, não leu os filósofos de Frankfurt e orientou no sentido mais antieconómico - no sentido da violência perdulária - essa sua noção suprema de poupança.

Em compensação, o que fazem os economistas liberais? Desperdício, só desperdício, o que torna as suas políticas económicas, além de caricatas, contraditórias. O luxo (de que Habermas fala a propósito de Bataille ) é, como o lixo, como a famosa poluição, um desses desperdícios. Mas, continuar às voltas, à volta da modernidade - o que será? Luxo, lixo, poluição ou desperdício? Ou as três coisas ao mesmo tempo?

Quando estará a ciência quietinha, a gozar dos rendimentos, no lugar (de lixo) que lhe compete e nos deixará a nós em paz? E a filosofia dos teóricos, sua dilecta companheira, quando abdicará do luxo que é?
Se na «economia energética», como Habermas repentinamente percebe, está a estrutura unificadora não só da diversidade do real mas dos contrários opostos, se está o símbolo mais avançado do progresso e a porta de saída para as crises cíclicas do petróleo, do oito em oito anos, porque é que a modernidade cheira cada vez mais a petróleo e a uma casa de antiquário?

O MAPA DOS PONTOS

Qual é mais moderno: Hitler, Heidegger, Nietzsche ou o Imperador Amarelo que sabia tudo da energia e até designava por «energias perversas» aquelas marotas que saíam da matemática rigorosamente estabelecida desde então no mapa energético dos meridianos e pontos chineses? Mapa que, relacionando macro e microcosmo, ficou inviolável e perfeito desde que os acupuncturistas, para esse e todos os efeitos, o desenharam no papel.

Onde está a modernidade? E porque insistem os filósofas da dita, como energias perversas escapadas à ordem inviolável das esferas, em perder tão preciosas energias à procura da rolha? Um pouco mais de azul a eram asa. Um pouco mais de simplicidade e tudo se explicaria. Um pouco menos de ciência e a sabedoria estaria ao alcance do grande público.

Há-de haver para este desperdício, com certeza, uma explicação económica. Ou, em alternativa, um tribunal de Nuremberga. Na sequência de nuances para a palavra energia, que já se mostrou sinónimo de petróleo, radiação solar, biogás, ondas, poder, violência, electricidade, erotismo, força criadora, élan poético, teimosia, inspiração, feroz ditadura, etc. experimentem, já agora, alargando o conceito ainda mais, pensar também como sinónimo de energia aquilo a que se chama «trabalho» e «tempo», as duas formas (armadilhas) através das quais a energia do poder cego e bruto nos rouba as energias de que precisa.
Os cronófagos são hoje legião. Ore se «tempo» e «trabalho» são também energia - e assim entendermos a alienação (segundo Karl Marx) -, o pontapé nas ditaduras passa por aí. Só não me perguntem como, porque é segredo. Tudo começa na sabedoria do que é a energia, em sentido estrito e em sentido lato, aplicando-a através das tecnologias adequadas e apropriadas para o efeito. Aí sim - nas TA (tecnologias apropriadas) - reside a modernidade mais antiga que se conhece.

Ou não estará ainda suficientemente feita a crítica às ideologias da abjecção, seja ela totalitária ou democrática - desde que os surrealistas meteram para aí o bedelho? Se está, esperemos que o exaustivo livro de Habermas seja o último a consumir as nossas energias e paciência , o último a discutir o fim do fim das ideologias. É tempo de ocupar o nosso tempo (trabalho, amor e força criadora) em coisas mais interessantes e produtivas. Chega de desperdício.
----
(1) «Discurso Filosófico da Modernidade», Jurgen Habermas, nº 1 da colecção «Nova Enciclopédia», Publicações Dom Quixote
----
(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas e meia, foi publicado, com grande escândalo do próprio, em «Livros na Mão», «A Capital», 26-3-1991

GEORGES BATAILLE : GALERIA DE «ESPÍRITOS INFERNAIS»


bataille-2

GEORGES BATAILLE
E A SUA GALERIA DE «ESPÍRITOS INFERNAIS» (*)


Este texto de Afonso Cautela foi publicado, como recensão de livros, na revista «Vida Mundial», em 19.Julho.1968


• A LITERATURA E O MAL — Georges Bataille — Ensaio — N.° 3, da Col. «Ulisseia»—Trad. António Borges Coelho — Capa, Pedro Frazão — 264 págs.—40$00.


Georges Bataille, um dos ensaístas franceses menos dotados pelo senso do rigor geométrico e da claridade cartesiana nas ideias, de estilo refractário à transplantação idiomática, está agora editado em português e em versão de António Borges Coelho, que se deverá considerar fiel. A dificuldade dessa versão pode aquilatá-la quem leu o original e nele apreciou ao mesmo tempo que o atractivo das hipóteses formuladas sobre a literatura e sua génese «maléfica» o estilo hermético e fascinante em que estão escritas. O autor de «A Literatura e o Mal» trouxe, com efeito, um contributo de peso à polémica da Modernidade; ao mesmo tempo que enraizou a criação literária num húmus existencial de consciência bastante actual, vai filiar-se na mais remota linha esotérica ou hermética, da qual reproduz o espírito e a sintaxe...
Literatura onde não seja posta em questão a realidade básica da existência—a liberdade humana contra todos os constrangimentos —, literatura que não vá além das aparências epicuristas, do cinismo erótico ou dos enredos novelísticos, não pôde ter tal nome para Bataille. Sem perfilhar inteiramente esta tese, talvez de base e consequências metafísicas, uma conclusão no entanto se impõe: há que banir da «existência literária» as mitologias da frivolidade, as escolas do olho (nas receitas...), as estéticas da forma.
Ao estudar apenas escritores malditos (e na falta de muitos outros que interessaria inserir nesta esplêndida galeria de «espíritos infernais»), Bataille coloca a função da literatura fora das determinantes superficiais e contingências efémeras: concede-lhe, em contrapartida, o lugar quase absoluto de «liberdade livre», o único lugar onde é possível encontrar o terrível rosto da verdade.
Se a literatura é definida como o único esforço onde o indivíduo pode fazer prevalecer a sua própria lei, esquecido das leis gerais que regem o comportamento de grupo (dentro de qualquer sistema de normas), então o escritor será, por definição, o que infringe a norma e se coloca, por princípio, do lado do Mal contra o Bem, quer dizer contra a ordem estabelecida. Georges Bataille ao glosar o tema da «Literatura e o Mal», procura demonstrá-lo através de alguns autores que, pela rebeldia e pelo testemunho dessa rebeldia, foram exemplos frisantes da literatura que se alia ao Mal, naquela acepção que, vinda de Baudelaire e das suas «Flores do Mal», se encontra hoje talvez ultrapassada ou é, pelo menos, bastante discutível.
No fundo, a concepção de Georges Bataille radica num neo-romantismo mesclado de inquietações existenciais, demonstrado na análise que faz de Jean Genet, apoiado em Sartre e no seu famoso «Saint-Genet». Kafka é estudado em função da hostilidade que um realismo de estreita amplitude lhe votou, e Proust tem, nas palavras de Bataille, a sua máscara mortuária mais própria. Sade é visto com uma exaltação que roça o demoníaco e William Blake surge demasiado linear para a complexidade que sabemos ter sido a sua.
Emily Brontë abre o volume, e ficamos a pensar se, de certo modo, embora não figurem neste livro, todos os escritores que ultrapassaram o seu tempo, todos os «contemporâneos do futuro», não tiveram, por um lado ou por outro, pacto com o Diabo, e se a qualidade de visionários que lhes permitiu adivinhar o tempo para lá do seu tempo não constituiu sempre uma cumplicidade com o Mal, uma desobediência com o suposto Bem com que sempre a si própria se identifica qualquer ordem estabelecida.
A literatura entendida como heresia sistemática deita luz sobre os conformismos em que algumas vanguardas tão académicas e tão obedientes como as escolas que dizem combater se empenham. Um livro que vem dizê-lo, no estilo desalinhado mas fascinante em que Bataille o sabe fazer, parece-me de grande utilidade quando a arte está entre nós nas mãos de artífices e os inquéritos para a situar pretendem estabelecer programas a cumprir sem excepções, nem desvios, nem desobediência. Um livro com grande margem perecível mas altamente higiénico no nosso meio de Sénecas e celebridades em satisfeito conluio. E uma vez mais saberemos, para logo o esquecer, que «literatura ou é o essencial ou não é nada».
-----
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, como recensão de livros, na revista «Vida Mundial», em 19.Julho.1968

SURREALISMO & SURREALISTAS-6


1-6 -datas-md-ls- s-datas- segunda-feira, 24 de Junho de 2002

1942-1966 :
CRONOLOGIA INCOMPLETA DO SURREALISMO
EM PORTUGAL (*)

1942 - O ano de 1942 é a data mais recuada que se conhece nos fastos do surrealismo em Portugal.
Segundo rezam as crónicas, reunia-se por essa altura no Café Herminius, de Lisboa, um grupo de rapazes: Leonel Martins Rodrigues, Pedro Oom, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Domingues, Fernando Azevedo, José Francisco, José Cardoso Pires, Artur do Cruzeiro Seixas, Júlio Pomar, João Moniz Pereira e Marcelino Vespeira.

1947 - Cinco anos iriam passar-se; em 1947, início da guerra fria, chega a Portugal a «Histoire du Surréalisme», da Maurice Nadeau.
Constitui-se a Grupo Surrealista Português.

1948 - Cesariny sai do referido Grupo.
Em Dezembro deste ano, um dos primeiros artigos sobre surrealismo na Imprensa portuguesa: «O surrealismo contra a literatura», de Adolfo Casais Monteiro in «O Primeiro do Janeiro».

1949 - A propósito da 1ª Exposição de Surrealistas, realizada na Rua Ivens, de Junho a Julho, Jorge de Sena provoca o Grupo em artigos da «Seara Nova» (Junho), e este ano iria ser um dos mais vivos do surrealismo em Portugal.
O manifesto «Erro Próprio» foi lido pelo seu autor - António Maria Lisboa -, numa sessão para a qual o comité organizador convidou G. Simões, Casais Monteiro e outros presencistas que, desta vez, primaram pela ausência.
Mas Simões, no jornal «Sol» (Julho), fala dos cadernos surrealistas (do já então dissidido grupo, pseudo-surrealista, com França, A. Pedro e O'Neill à cabeça) e, no mesmo jornal, os atingidos - O'Neill e J.A. França -, respondem .
Em Setembro, Simões replica e em Outubro, dia 1, os dois outros triplicam, tudo isto no referido «Sol»..
Nesta data, P. Oom e M. Cesariny intervêm na disputa com um comunicado a explicar que não tinham nada com a zanga; em Novembro, outro comunicado de M. H. Leiria, Cesariny, J. ª Silva, A . do Cruzeiro Seixas e C.E. da Costa, para fulminar os já então surrealistas dissididos J. A. França e A. Pedro.
O ano do 1949 termina assim em beleza.

1950 - Começou ardente, mas não manteve o élan.
Nora Mitrani, a convite dos dissididos, profere para alguns portugueses, no J. U. B. A. (Jardim Universitário de Belas Artes), um dos textos mais lúcidos e significativos que sobre surrealismo se viram impressos em língua portuguesa. «A Razão-Ardente» saía depois em opúsculo, editado pelo Cadernos Surrealistas, dirigidos por França.
Em 25 de Abril, M.H. Leiria, J. A. Silva e A. do C. Seixas lançam a «Comunicado dos Surrealistas Portugueses» e, em 1950, foi tudo.

1951 - De Outubro a Dezembro, multiplicam -se as manifestações surrealistas: M. H. Leiria, Cesariny , C. E. da Costa e A . do C. Seixas assinam «Evidência Surrealista», e os dois primeiros, logo a seguir, «para bem esclarecer as gentes que ainda estão à espera, lançam novo panfleto.
Em 11 de Novembro, A. O'Neill entendeu estar a tempo de dar nas vistas, acentuando a sua cisão com o grupo em «Tempo de Fantasmas», plaqueta que sai, apesar da cisão, nos «Cadernos do Poesia» (nº 11), inspirados e editados por França e arredores.
Em Dezembro, M.H. Leiria e H.R. Pereira ministram novo banho a Simões em opúsculo intitulado «Mais um Cadáver». Ainda no mesmo frígido mês de Natal, os mesmos e mais Cesariny, A. M. Lisboa, C. E. da Costa, F. A. dos Santos e A . do C. Seixas resolvem aquecer publicando «Do Capítulo da Probidade» (folha volante).

1952 - Ano próspero.
A. M. Lisboa, meio morto no Sanatório da Quinta dos Vales (Coimbra) edita, naquela cidade, «Erro Próprio» e «Ossóptico».
O ano abriria bem, em Janeiro, com um selecto manifesto doutrinário que deveria ter sido colectivo e acabou por ser redigido só por M. H. Leiria. Homem e Sociedade, fragmento tornado público do que teria sido o «Manifesto Colectivo dos Surrealistas Portugueses».
A 2 de Fevereiro, «A Semana», jornal das direitas, publica artigo de António Quadros: «Do Real do Realismo, ao Real do Surrealismo» e, em 2 de Setembro, Cesariny iniciava, em outro semanário - «Cartaz» - interessante colaboração sobre pintores, incluindo Malhoa, Amália e Vieira da Silva.
Em Outubro, a revista «Contraponto» simpatizava com o surrealismo e, no n.º 2, Tomás Ribas criticava um livro de Cesariny.
D. M. Ferreira dignava-se conspurcar a toga e na tribuna do «Diário Popular» disse o que sabia sobre «Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano», recém-saído neste ano.
Ainda este ano, um dos mais assíduos signatários de manifestos surrealistas, botava livro poemático: «Sete Poemas da Solenidade e um Requiem»: C. E. da Costa.

1953 - Luís Pacheco agita as edições «Contraponto», onde os surrealistas vão quase todos ver a luz: em Julho, aparece, póstumo e a copiador, o «Aviso ao Tempo por Causa do Tempo»,- e, tipografado, o «Isso Ontem Único», de A. M .Lisboa - que falecia a 11 de Novembro em Lisboa, cidade onde nascera a 1 de Agosto de 1928 (1928-1953).
Ainda com chancela «Contraponto»: «A Afixação Proibida», por P. Oom, H. R. Pereira, Cesariny e A. M. Lisboa, o último texto, portanto, que este último assinaria e talvez o primeiro em grupo.

1954 - Este ano apenas assinalado com um livro «Contraponto» da autoria de um dos signatários surrealistas: «Diário Flagrante», de F. A. Santos.

1955 - Em .21 de Abril, Alfredo Margarido concorre com artigo no «Diário de Notícias»: «Para uma História do Surrealismo Português», artigo que nos foi proveitoso nesta resenha cronológica.
A 13 de Maio, no «Jornal de Notícias» (Porto), José Marmelo e Silva intervinha, em nome do neo-realismo ofendido, a reclamar contra a subversão «surrealista», o que, evidentemente, foi muito aplaudido pela galeria. Intitulava -se o artigo: «Uma «Academia dos Generosos» modernista ou a Equívoco do «Grupo Surrealista de Lisboa».

1958 - Mal a fúria de J. M. e Silva foi conhecida, em Lisboa, logo Agostinho Veloso S.J.. acusou «A Farsa Surrealista», na revista «Brotéria», ao que Afonso Cautela, no jornal «A Planície», em 1 de Maio, pôs os pontos nos iis.
Na mesma data e neste mesmo jornal., A . Margarido assinava artigo «A propósito do Surrealismo».
É de 1958, «A Verticalidade e a Chave», póstuma de A .M. Lisboa.

1957 - Ano das colaborações de Cesariny, a pleno vapor, no suplemento «Dialogo», crónicas anacrónicas de vivo sabor, que o tornaram, conhecido, também na província.

1958 - Cesariny continua em «Diálogo» a falar até de Maldoror e, estimulado pelo êxito, propõe-se uma ruína editorial: «A Antologia em 1958», colecção de livros, na qual vão sair textos de A . M. Lisboa, Luís Pacheco, Natália Correia, Virgílio Martinho e António José Forte, além do editor, Cesariny.
Ernesto Sampaio revelava a sua verve crítico-poético-mística em livro - «Luz Central» - e Afonso Cautela, mais ou menos por essa altura, refere-se-lhe em termos elogiosos tais que provocaram a sanha do Dr. João Palma-Ferreira, que logo dispõe as baterias no «Diário Popular», onde teria havido polémica sobre assunto capital, se o jornal não fosse fechado às réplicas do agredido, contrariando as regras da mais elementar deontologia jornalística.
Deste incidente, resultou ainda, na série negra da «Antologia em 1958», um opúsculo de Pedro Oom, «Uma. Carta para Palma-Ferreira» e, na revista «Pirâmide», um ano mais tarde, uma carta de Ernesto Sampaio que só serviu para atestar o baixo estofo " moral “ de um sujeito que proclama ética aos quatro ventos.
A polémica, aliás, não ficou encerrada (nem sequer encetada) e marca por isso um triste episódio da Polémica Geral em que o surrealismo se viu enredado neste rectângulo florido à beira mar mal disposto. Para dar notícia, crónica e breve, dessa Polémica, se perdeu tempo a coligir os nomes e datas da presente relação.
É de Maio, a folha volante de Cesariny que fez época, intitulada: «Autoria e Liberdade são uma e a mesma coisa».
A 16 de Outubro, Benjamim publica o desenho Café Gelo (in «Diário de Lisboa»), valioso documento para a iconografia surrealistas em Lisboa-Rossio.
No mesmo jornal, artigo de Cesariny sobre A. M. Lisboa, a 11 de Dezembro.

1959 - Cheio que nem um ovo de coisas surrealistas é o ano de 1959.
Cesariny continua a sua colaboração em «Diálogo» e, enquanto isso, no mesmo suplemento do «Diário Ilustrado», A. Margarido, por várias alturas, pronunciou, do alto da sua tribuna crítica, veredictos: em 28 de Maio ao livro «Festa Pública», de V. Martinho e a «Carta-Sincera para José Gomes Ferreira», de L. Pacheco; a 1 de Agosto, sobre «Pirâmide» 2, saída em Junho, e «Pirâmide» 1, saída em Fevereiro; a 5 de Setembro, sobre o livro «Nobilíssima Visão».
No mesmo «Diálogo», Luís Pacheco critica a 2 de Maio o Picto-abjeccionismo de Cesariny e, a 9 de Maio, Virgílio Martinho assina o artigo «Do Surrealismo até à Presença de Mário Cesariny de Vasconcelos» e, a 22 de Agosto, J. P. Ferreira, que não desiste, arremete Sobre dois livros Surrealistas: «Mitos Maiores e Menores», de Cesariny e «Alfred Jarry», de A. M. Lisboa.
Cesariny não tem mãos a medir: publica «Nobilíssima Visão», fala de «A Crítica com que nos ocupam» (In «Diálogo», 21 de Fevereiro), dá entrevista a Portela Filho (in Diário do Lisboa, 3 de Abril) e a Maria Virgínia de Aguiar (in «Diário Ilustrado», 14 de Maio), esta por altura da sua exposição de pintura na galeria Divulgação do Porto. Ao «Diário de Lisboa» envia ainda uma carta sobre «O Surrealismo e a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», que sai a 16 de Abril.
Livros: «Para uma Cultura Fascinante», de Ernesto Sampaio e «O Planeta Precário», de José Sebag.
Artigos a registar: o de Simões In «História da Poesia Portuguesa do Século XX», o de A. Margarido, a 30 de Maio, «Do Surrealismo à Sociologia» (in «Diálogo»), o de Luís Pacheco, «Surrealismo e Sátira (de
André Tolentino a Nicolau Breton)». (in Pirâmide 1), o de Virgílio Martinho, em forma de entrevista (in «Diálogo», 4 de Julho).
Incidente a registar: a 23 de Abril, em «Jornal de Notícias», o depois falecido António Ramos de Almeida chama a guarda por causa de um poema de Pedro Oom, «Um Ontem Cão» e a coisa complica-se com respostas e contra-respostas. A guarda não apareceu.

1960 - Além de «Pirâmide» 3, que deu berro em Dezembro, só a lembrar este ano, a versão, prefácio e notas de Cesariny de «Une Saison en Enfer», de Rimbaud.
Em «Pirâmide» 3, Carlos Loures assina artigo: «Aos Ladrões de Fogo - Poesia, Surrealismo, Controle».

1961 - A intensa actividade de Cesariny dos três anos transactos culmina em 1961: com a publicação do volume «Poesia», editado na Delfos e que compila 11 anos de poemas (1944-1955); com o livro «Planisfério», editado em Julho; com uma «Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito».
De 9 a 15 de Março, por sua iniciativa, realiza-se na Associação dos Estudantes do I.S.T. uma exposição sobre A. M. Lisboa, por altura da qual saiu publicado um texto, até aí inédito, do poeta (in «Diário de Lisboa», 9 de Março), acompanhado de artigo informativo de A. Margarido e depoimentos de A. O'Neil, C. C. Pinto. F. Namora e V. Ferreira. sobre o que entendiam (sic) por surrealismo. Claro que todos mostraram não entender patavina.
Inesperadamente, António Aragão fala «Do Surrealismo e Sua Actualidade» in «Comércio do Porto», 10 de Outubro) e Natália Correia cede entrevistas ao «Jornal de Letras e Artes», a 22 de Novembro.
Gastão Cruz, no artigo sobre livro «Planisfério» (in Jornal de Letras e Artes, 8 de Novembro), mostra quanto o surrealismo serve a todos.
Um livro de V. Martinho: «Orlando em Tríptico e Aventuras».

1962 - A iniciativa de Cesariny continua a marcar o único surrealismo visível: compila os versos de A. M. Lisboa no livro Poesia, alguns ensaios sob o título geral de um deles: Erro Próprio, edições que saem com chancela da Guimarães Editores.
Cesariny é entrevistado para «J. de L. e A .» (29 de Agosto) onde publica artigo «Quatro Notas sobre a Ausência do Rimbaud», a 14 de Novembro, e uma página antológica «Surrealismo-Abjeccionismo», a 17 de Janeiro.
V. Martinho concede entrevista ao Jornal «República», a 14 de Dezembro.
Como toda a gente falava, J.P. Ferreira referiu-se aos livros de A. M. Lisboa (in «Diário Popular», a 14 de Junho) e Álvaro Salema também (in «Diário de Lisboa», 17 de Junho).
António Ramos Rosa reuniu em livro - «Poesia, Liberdade Livre» - alguns artigos onde testemunhara inquietações análogas às surrealistas, embora as suas conclusões - muito informadas nas fontes francesas - nada se identifiquem com uma atitude surrealista ou pró.

1963 - Logo a 9 de Janeiro, Reis Brasil diz o que lhe parece sobre «As Determinantes do ideal Super-Realista», em artigo que «O Primeiro de Janeiro» alberga.
A 30 de Março, na Casa da Imprensa, a propósito da antologia «Surrealismo-Abjeccionismo» que Cesariny vinha organizando e a tipografia desorganizando há anos, realiza-se uma sessão para serem lidas comunicações de António Areal, Afonso Cautela, Ernesto Sampaio, Fernando Alves dos Santos, Manuel de Lima, Cesariny, Pedro Oom, alguns deles surrealistas e outros abjeccionistas, outros nem uma coisa nem outra e outros ainda as duas coisas.
A comunicação de Ernesto Sampaio, saiu publicada no semanário «Noticias da Amadora», meses depois. A 12 de Maio, «Jornal do Fundão» dedica ao assunto duas páginas com artigos de A . Margarido e A. Cautela. A 9 de Maio, Simões diz de sua justiça (Diário de Notícias): mostra, mais uma vez, não ter percebido.
A 16 de Maio, um artigo sobre a antologia em Jornal de Notícias, Porto, assinado por A. Cautela, que escreve no mesmo jornal sobra «O Surrealismo e o que se Traduz».
Na «série negra» da referida Antologia em 1958 aparece o artigo «A Filosofia e a Arte Perante o seu Destino Revolucionário, de Jean Schuster - Gérard Legrand, que, traduzido por Luís Pacheco, deu propósito a que Afonso Cautela inserisse em 14 de Agosto (in «Jornal de Letras e Artes») um artigo longo intitulado : «O Surrealismo é uma filosofia?»
A 6 de Novembro Fernando Barros ataca o artigo e o autor (mais o autor que o artigo) no mesmo jornal, ao que A . C. replicava a 4 de Dezembro. Enquanto isto, publicava o artigo «Realismo Fantástico - Parêntesis ou Ponto Final no Surrealismo» («Diário de Noticias», 25 de Julho), encerrando-se este ano fatídico do surrealismo em português.

1964 - A Associação do Instituto Superior Técnico edita em opúsculo as conferências, ali realizadas, entre as quais a de Ernesto Sampaio, sobre surrealismo, texto imprescindível, num compilação de textos portugueses sobre Surrealismo que urge fazer (e editar),
A 30 de Novembro, um artigo de A. Cautela no jornal «República» sobre «Uma Informação de França sobre Surrealismo em Portugal», onde se denuncia o equívoco do historiador francês Jean Louis Bédouin que se referira ao surrealismo em Portugal com base nas infidedignas palavras de um seu apóstata: José Augusto França.

1965 - Livro « A Cidade Queimada», de Cesariny, edição Ulisseia de 300 exemplares: com ilustrações de A. do C. Seixas.

1966 - Talvez o mais valioso documento, não do surrealismo mas do abjeccionismo português, «Crítica de Circunstância», de Luís Pacheco, participante como editor dos feitos surrealistas. Devem-se-lhe os textos (folhas volantes) mais curiosos sobre actividades surrealistas aqui supostas ou acontecidas, sempre mordazes pela anedótica ambiguidade e pelo escárnio implacável. .
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, em 6/2/1972, no Jornal «Diário de Coimbra», no suplemento literário dirigido por José Matos-Cruz■

SURREALISMO & SURREALISTAS-5

1-6-datas-md-ls- s&s-datas- segunda-feira, 24 de Junho de 2002

SURREALUSITANO(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, em 6/2/1972, no Jornal «Diário de Coimbra», suplemento literário dirigido por José Matos-Cruz


Da incompreensão que entre nós tem rodeado o surrealismo, podem culpar-se os próprios surrealistas que, em matéria doutrinária e crítica, pouco ou nada fizeram que esclarecesse os menos esclarecidos, que informasse os mal informados. A poesia, só por si, não adquire impulsão no meio público e é preciso alguma «doutrina», por muito que isso custe aos poetas.
Se aqui e agora pouco ou nada se sabe do surrealismo e sua importância na encruzilhada intelectual do nosso tempo, é também porque muito pouco se tem feito por isso. Os críticos olham com desconfiança as manifestações de inspiração surrealista, na Universidade é Sartre o mais longe que se pode ir em matéria de vanguarda, mas tudo isto se compreende, e tudo isto está certo. Pois só fora das academias convém falar de
surrealismo, lembrar quanto ele significa de anti-ordem cultural vigente.
Útil, pois, parece a compilação dos poucas textos sobre surrealismo aparecidos em meio tão hostil, textos que pertençam quer a surrealistas, quer aos abjeccionistas, quer apenas aos que, sem preconceitos prévios, vão para o surrealismo com algo mais do que aparato erudito e minhocas estéticas na cabeça.
O grupo que desde 1947 se encarregou de agir, em português, de acordo com os manifestos surrealistas de André Breton, vinha com vinte anos de atraso actuar num meio histórico com um atraso de duzentos.
Faltando aqui a vitalidade cultural que o surrealismo exige, agiu ele pelo avesso e, em vez de novas crenças, de novas mitologias propostas à criação poética, de uma resoluta aventura para o imaginário, tivemos na melhor das hipóteses uma visão desmistificada das realidades circunjacentes -visão que alguns praticaram sob o nome de abjeccionismo - e pouco mais.
Houve, claro, valores individuais, poetas que deram muito boa conta de si, com obra de inspiração automática. isto é, surrealizante. Mas o movimento, além dessas manifestações individuais, pouca influência exerceu como tendência e força de opinião, influência que, por isso ou apesar disso, importa retomar, de modo a que prossiga o processo de vigilância crítica, nunca antes tentado e necessário para obviar aos escapismos, conformismos e obscurantismos mentais de toda a ordem, novos e velhos academismos das letras, artes e ciências, por aqui tão abundantes ainda em 1966:
Por isso, nestas páginas, tentámos retomar o «fio ao discurso», apanhar outra vez a ponta da Meada Surrealista, ganhar um pouco daquela «esperança desesperada» que nos permita fazer face à vil tristeza imposta.
Seis anos, entretanto, decorreram após a laboração deste trabalho, que, se, por um lado, já necessita de acrescentamentos, nem por isso perdeu actualidade.

MÁRIO CESARINY SEMPRE-VI

1-4 - 58-10-05-ls> terça-feira, 20 de Maio de 2003 – cesariny-6-s&s>

COLECÇÃO «A ANTOLOGIA EM 1958»:

 ALGUNS MITOS MAIORES E ALGUNS MITOS MENORES PROPOSTOS À CIRCULAÇÃO PELO AUTOR , MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS, LISBOA, 1958
 EXERCÍCIO SOBRE O SONHO E A VIGÍLIA DE ALFRED JARRY, SEGUIDO DE O SENHOR CÁGADO E O MENINO, DE ANTÓNIO MARIA LISBOA, LISBOA, 1958

(*) Este texto de Afonso Cautela terá ficado inédito ou foi publicado algures, a saber onde. Tem, pelo menos, uma data de origem: 5-Outubro-1958

Pertence a António Maria Lisboa o melhor manifesto surrealista sobre surrealismo, havido em Portugal . Ali se compendia o verdadeiro estatuto do bom surrealista. E como regra de vida , não conheço outra mais tirânica onde se fale tanto de liberdade, repetida e em caixa alta, bem como o amor, que ali é sempre múltiplo (quando não é único) e de várias pernas, creio que altas também.
Na exposição, intervalam-se fugas para o imaginário, o que não pode nem deve faltar no ritual do bom sacerdote surrealista, em plena missa (Erro Próprio é uma conferência-manifesto).
Como os mitos crescem à proporção que decresce o invólucro físico que os sustém, a morte de António Maria Lisboa abriu o ciclo mítico. E assim, o André Breton português, em vida, se transmuda no Rimbaud português, depois de morto.
Exumam-se os inéditos e os renitentes prestam-lhe culto póstumo. De cócoras, admiramos o mito desincarnado. Mas é que admiramos mesmo. À parte os «à-partes» de magia negra, em Erro Próprio deparamos com a austeridade que só os iluminados possuem. A nossa costela irracionalista não deixa de se sentir apoiada quando lê um bom surrealista, como é o caso sem discussão de António Maria Lisboa.
Revela-se, é certo, como em todos os sacerdócios, uma aceitação incrítica da fé regulamentar e, tratando-se de uma religião (eles não querem que lhe chamem religião) não teríamos nada que falar em CRÍTICA, se, tal como aqui a grafamos, em caixa alta, António Maria Lisboa a não tivesse grafado também (e julgamos a versão presente conforme com a edição original):
«Criticar , eis a nossa função positiva. A crítica, para nós, é a acção agressiva dum indivíduo que se opõe e contrapõe a outro. Quaisquer espécies de considerações compreensivas e elogiativas não podem ser consideradas como tal. Criticar pressupõe não o gostar ou desgostar , (...) mas não aceitar e impor (...).»
Valha-nos Santo André (Breton) nesta aflitiva conjuntura, pois já que «quaisquer espécies de considerações compreensivas e elogiativas não podem ser consideradas como tal», como «crítica» - António Maria Lisboa nos impõe («não aceitar e impor» diz ele) um modo crítico único de falar dele (e deles) , modo, portanto, que nem crítico é. Nem sequer nos é permitida a satisfação de urdir «considerações compreensivas» sobre si (e os outros) , nós que tanto gostamos de compreender e admirar, quando o caso é para tanto. Tudo isto, claro, em nome da tal liberdade que ali, no manifesto, se grafa também de coturnos altos.
Há, como se vê, nas falas surrealistas uma constante sobreposição de contrários, um ser e não ser ao mesmo tempo, que foi a grande faca de dois gumes com que eles se entretiveram a cortar manteiga no Verão... Não vamos prestar-nos ao jogo, à esgrima. Queremos apenas registar, citando o texto mais autorizado da nossa literatura surrealista, aquele passo que pode originar mais equívocos dos que já são constitucionalmente próprios de um tal género de dialéctica.
*
De uma outra conformação é O Senhor Cágado e o Menino, sem intuitos de catequese e apenas auto-biográficos, o que fica bem nestas cavalarias, a mais altas se não devendo abalançar os cavaleiros. Ali se vê o arquétipo de auto-biografia surrealista e que, como tal, nos não parece de seguir, para evitar o pânico e o acrescente de mais alguns cágados de má catadura ao jardim zoológico nacional, tão rico já de espécies exóticas. Neste Cágado, mostra A.M.L., dentro das contradições vertebrais inerentes (inerente ao Cágado, entenda-se) uma rigorosa coerência de métodos , de pensamento e de conduta.
Deixou companheiros, mas não creio que venha a deixar discípulos . Nem mesmo os que lhe disputam os inéditos à dentada. É o que nos faz desconfiar a reprodução quase simultânea do texto sobre Jarry, no livro em epígrafe e de que vimos falando e nas Folhas de Poesia Nº 3.
Desejaríamos só e por amor a estas rigorosas coisas surrealistas que um outro (ou ambos) dos editores nos informasse de qual é a versão legítima, já que se verificam variantes notáveis de uma para outra das impressões do mesmo (cremos que o mesmo) texto. Na sucessão de números naturais ali aparecida , por exemplo, qual será a verdadeira e a apócrifa: a que repete o 6 ou a que o dá singelo? Precisamos de assentar nestas altas matemáticas, para rigoroso desanuviamento da crítica e para respeito da memória dos mortos. Amen.
Para desespero dos surrealistas ortodoxos, o pensamento parece encaminhar-se (a menos que a destruição nuclear o desencaminhe por uma vez, para sempre, ainda bem e felizmente) até à terceira força, síntese das antinomias que acenderam guerra entre 1900 e 1950 e da qual guerra a batalha entre racionalistas e irracionalistas não foi a menos brava.
Além disto, os poetas, cansados do imaginário e dos amorosos amando na última estrela da Galáxia, e porque incarnam a liberdade , não consentem no «afastamento imediato da chamada vida prática», não querem renunciar a viver todas as experiências, no mundo e fora dele, aqui morrer, em vida, e, depois, de morte certa e macaca. Dispensam-se de obedecer a esta que foi uma das muito rígidas disciplinas impostas pelo papado surrealista, como nova «internacional».
É de Henri Lefèbvre a paráfrase (cito de memória) : «Poetas do Mundo, uni-vos», num ensaio que é simultaneamente a apologia da «vida quotidiana» e o processo quase mortal a que submeteu o surrealismo.
Lê-se no Erro Próprio, manifesto de António Maria Lisboa:
« (...) pedia aos que assistem a esta conferência a máxima preparação : quer pelo recolhimento, quer por leituras lentas (...) quer, ainda, pelo afastamento imediato da chamada vida prática; »
Nessa e em muitas outras exigências, o surrealismo mostrou pouco respeito por tudo quanto se dizia respeitar: o amor que não existe fora da vida quotidiana, de que é mesmo o motor e a razão; a liberdade, que perde imanência e, portanto, conteúdo, fora do mundo quotidiano dos homens quotidianos, onde diariamente se deve perder e diariamente se tem de reconquistar; a crítica , que não admite outro plano que não seja o do humano concreto e perde todo o sentido fora da esfera das relações sociais; a individualidade, coarctada no surrealismo por um formulário de normas apertadas, tão apertadas que ser adepto do Grupo Surrealista, em certa altura, foi equivalente de excomungação prévia ou eminente.
Nos que mantiveram fidelidade ao templo, a obra traz sempre o aspecto de membro destacado de um corpo central, o corpo místico do surrealismo ortodoxo, apostólico e bretoniano... E na igreja se reúnem todos os surrealistas do mundo. Mário Cesariny devia, por isso, e graças a uma individualidade que o distinguia à légua, como herege no seio da pia congregação, ter sido excomungado da igreja surrealista nacional. E só não foi por não se poder excomungar a si próprio...
Eis como parece haver alguma utilidade de encarar estes mitos maiores e menores propostos à circulação pelo autor. No referido manifesto de A.M.L. , já eles se anunciavam:
«Impossibilidades editoriais trouxeram até hoje (Dezembro de 1949) por publicar «Algumas Entidades Míticas Propostas à Circulação » de que foi autor Mário Cesariny de Vasconcelos e (que) consiste num jogo de Cabala Fonética com o qual se pretende uma cada vez maior assimilação do irracional.»
Quase dez anos corridos, as impossibilidades transformaram-se em possibilidades editoriais e o livro vem a público . Seguindo à risca a palavra de A.M.L. , transcreve-se ainda:
«Muito para além da chamada Obra de Arte , e tanto para além, a Cabala Fonética abriu, entre nós, o caminho que se pretende – pois nos concretiza e dispersa, nos arruina e constroi (...).
Nos «arruina» , diz. Mas logo acrescenta , no contraponto tão característico da Religião da Ambiguidade: «e constrói». Vá lá o diabo saber se afinal arruina ou se afinal constrói.
Vistos a frio e sem hóstia, estes mitos parecem-nos um importante (mas imprudente , como deixar as cuecas a corar ao sol, na varanda) parcela da Obra (eles não querem que se chame Obra) de Cesariny, já que desmontam a máquina surrealista e o seu processo estilístico.
É, digamos, a gramática surrealista, o que põe à mostra a morfologia e a sintaxe do animal, e nem só a fonética como queria A.M.L.. O ponto da crítica em que nos coloca é, portanto, o filológico, e para filologias preferimos as de Aristóteles, cujo enterro já não precisa de fazer-se, porque está feito há muito.
Permita-se-me citar um epigrama feliz: o dos assassinos, decomposição morfológica de assa-ssinos e que é francamente uma coisa com graça. Todo o livro, aliás, se assinala como um sintoma de saúde, um fortíssimo abanão na nossa arqueologia literária, uma refrescante cerveja para as horas escaldantes do pântano. Com experiências destas, nada continua (nada se «constrói») mas tudo pode começar (tudo se «arruina») . Que mais não seja o despertar do dragão, neste país ocidental do Ocidente e que é saber rir, a tempo, e sobre os devidos e supra-ditos objectos de sala.
Faro (ou Ferreira,?), 5 de Outubro (República) de 1958

P.S.: Tal como foi escrito no verbo iluminado de António Maria Lisboa : «Quaisquer espécies de considerações elogiativas não podem ser consideradas como crítica .» Como crítico, esforçámo-nos por obedecer ao mandato e não damos o direito aos autores de se melindrarem porque os não elogiámos mais. Tudo o resto e adstritas confusões com personagens do mundo real , é pura coincidência.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela terá ficado inédito ou foi publicado algures, a saber onde. Tem, pelo menos, uma data de origem: 5-Outubro-1958

MÁRIO CESARINY SEMPRE-V

cesariny-5> sábado, 22 de junho de 2002 - «surrealismo & surrealistas» e «obituário ac»

SURREALISMO-ABJECCIONISMO: UMA SESSÃO NA CASA DA IMPRENSA(*)

(*) Esta notícia foi publicada no semanário «Jornal de Letras e Artes», em 10/4/1963

Conforme já noticiámos, realizou-se uma sessão na Casa da Imprensa para apresentar a antologia «Surrealismo-Abjeccionismo, organizada pelo poeta Mário Cesariny de Vasconcelos e editada pela «Minotauro». A sessão destinava-se, ainda, a estabelecer um convívio, breve mas tão estreito quanto possível, entre o público e alguns dos autores incluídos na colectânea. Na sua maior parte, são autores com obra fragmentariamente publicada, cuja produção corresponde a uma posição incompatível com as classificações tácitas, visando antes uma realidade inesperada, capaz de suscitar novas tomadas de consciência.
No decorrer da sessão foram lidos alguns textos que constituíram, para um público jovem na sua maior parte, uma verdadeira surpresa, pelo carácter de violência de que se revestiam. Foi impressionante verificar a reacção desse público que de forma entusiástica aderiu aos textos apresentados. Mário Cesariny deu agora um pouco da claridade necessária para que se possa ao menos vislumbrar as linhas de força de uma expressão que, dentro dos limites marcados pela conspiração do silêncio, não tem deixado de procurar uma via de comunicação com o público.
À margem do vasto programa, traçado com método e lucidez por Cesariny, ficaram bem legíveis os pontos em que se processa o inevitável embate dos temperamentos que na colectânea se reunem, se-
parados por destinos diversos mas convergindo num ponto de revolta a todos comum.
Isto significa a verificação de um objectivo idêntico, aspecto em que Mário Cesariny abre, à literatura portuguesa actual, uma nova e audaciosa perspectiva. A sua irreverência perante o já catalogado e as delimitações anteriores, objectiva-se num acto de justiça, que assume ao mesmo tempo a importância de apelo a uma revisão de valores. Essa revisão abalará, fatalmente, a serenidade de muitas hierarquias que se foram instaurando de modo arbitrário e despótico. Ao traçar o quadro surrealismo - abjeccionismo, Cesariny repudia, por exclusão, muitas expressões artísticas e literárias que disfrutam de larga reputação, mas que carecem da força que mantém a permanente tensão, os antagonismos extremes que impedem a paralização do espírito de rebeldia da obra de arte.
Assim se define a terrível beleza interior da arte, quer dizer, a veemência que a conserva intacta, submetida a uma atitude de denúncia que. cada vez mais se avoluma. E a antologia «Surrealismo-Abjeccionismo» é um documento colectivo de carácter artístico. Só depois transparece o resultado ulterior que lhe está implícito.
Foram lidos textos de Afonso Cautela, Almada Negreiros, António José Forte, António Santiago Areal, Ernesto Sampaio, Irene Lisboa, Luís Pacheco, Manuel de Lima, Mário Cesariny de Vasconcelos e Virgílio Martinho.
A sessão terminou com a leitura de uma peça de Mário Cesariny, uma sátira na linha das obras do «Judeu», em termos de actualidade. O mesmo clima virulento de desumanização, personagens transformadas em títeres movidos por um fatalismo implacável, pouco compatível com as tentativas de redenção. Pelo menos com a redenção fácil inerente a um programa que se anteponha ao espírito da tragédia.
Estavam expostos na sala, além das fotografias dos autores incluídos, algumas das obras plásticas reproduzidas na antologia e certos textos elucidativos das posições surrealista e abjeccionista.. No intervalo, foram oferecidos ao público exemplares dos livros que constituem a colecção «A Antologia em 1958» .
- - - -
(*) Esta notícia foi publicada no semanário «Jornal de Letras e Artes», em 10/4/1963

MÁRIO CESARINY SEMPRE-IV


cesariny-4> surrealismo & surrealistas - notas de leitura

A ANTOLOGIA - UM POEMA COLECTIVO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do semanário «Jornal do Fundão» - «Nova Literatura» - , coordenação de Artur Portela Filho, em 12/Maio/1963

Tavira,23 de Abril de 1963 - Perante esta antologia de Mário Cesariny - Surrealismo-Abjeccionismo - pode perguntar-se o que significa o traço entre um e outro ismo: se união, se desunião. Significará que se quis opor surrealismo e abjeccionismo ou uni-los? Pode perguntar-se também se abjeccionismo é uma forma particular de surreaIismo. Ou se é um «surrealismo evoluído». Ou se foi uma das heterodoxias a que a ortodoxia surrealista podia ter dado origem.
Pode perguntar-se ainda se abjeccionismo será outra palavra para aquilo que na «história da literatura» ficou conhecido por decadentismo. Pode perguntar-se finalmente se, entre um e outro ismo, outros sinais, além do traço de união, são possíveis; exemplificando,
Surrealismo = abjeccionismo?
Surrealismo < abjeccionismo?
Surrealismo > abjeccionsimo?
Surrealismo + abjeccionismo ?

Estou em crer que Cesariny desejou isso mesmo: que se perguntem coisas. E que das perguntas outras perguntas surjam. E que as respostas sejam perguntas. Estou em crer, também, que as perguntas são as respostas...
A variante de Pedro Oom da citação (muito citada) de Breton, que abre a antologia, autoriza a ambiguidade, o ser e não ser, o dizer e desdizer ou contra-dizer, autoriza a dialéctica que, para não se negar se continua afirmando na negação e que para se continuar afirmando tem de continuar negando.
Este - o da Ambiguidade - é como já se deixa ver o campo exacto da Poesia, onde é permitido perguntar tudo mas onde a resposta só vem pelas vias de acesso que cada qual invente.
A resposta, qual-quer resposta, não se dá, recebe-se. Não se aprende, sabe-se. Não se ensina, cria-se. O dado--resposta ou resposta-dado negam o movimento.
Responder será substituir o insubstituível. Responder será resignar-se, quem responde, a um estado de coisas susceptível de não ser esse mesmo estado logo a seguir.
Resignemo-nos a responder sabendo, com Heraclito, que a resposta não tem outro mérito que o de situar, para os outros, o insituável em si próprio e para si próprio. Sirvam as palavras de signo ou ponto fixo, provisório, para apontar, no movimento, o lugar onde é possível entrar no rio sem molhar os pés. Sirvam os ismos, quaisquer ismos, não para estabilizar o instável, situar o insituável, estatificar o dinâmico da Poesia mas, para lhe assinalar os possíveis grampos de abordagem (para a salvar de abordagens suspeitas, inclusive). E permitir que a Poesia desempenhe a «função social» que lhe é possível enquanto é tempo.
Caracterizada negativamente pelo que não é, não porque deseje afirmar (ou negar) qualquer coisa mas porque não deseja afirmar o que outros, de ‘largo alcance publicitário e editorial, continuam gritando, a Poesia contida nesta antologia, apenas é, o que imediatamente a distingue de todas as que, a vários títulos, o não são. Não afirma nem nega nada - este conjunto de textos, desenhos e fotografias; mas, pelo facto de aparecer, afirma e nega algo a ela exterior.
Para uso exotérico, Mário Cesariny entendeu que devia usar a sigla mais mortífera, a que tem mostrado maior poder destruidor dos passarinhos (líricos ) e passarões (neo-realistas) que nos chilreiam de volta.
Surrealismo é a sigla. Serve simultaneamente de espantalho e ponto de referência. Não que o surrealismo caiba nos autores ali aparecidos, nem que os autores ali aparecidos, em conjunto ou de per si, caibam no surrealismo. É apenas ponto de convergência , de referência e de passagem (obrigatória) para uma aventura em que Cesariny se lançou, com ímpeto igual ao que o fez escrever poemas ou pintar quadros.
Digamos que Cesariny quis escrever, aqui, um poema colectivo, e, sem o querer, polémico. As obras incluídas não funcionam em si e por si, nem em função de um critério objectivo: incluem-se em função de um Poeta - Cesariny - e de um poema-espécie-de-colagem. Ímpeto crítico ou polémico, se o tem, estou em crer que não é intencional ou pelo menos é tão intencional como outros poemas seus. Outro fio ou intento unificador não descortino numa antologia de certo modo heterogénea e desconcertante - (para os críticos). Intento crítico quer dizer, evidentemente, intento de servir para fora, via exotérica; intento que a religue a outras realizações «congéneres» - com vista ao arrolamento pelos historiadores da literatura nas histórias da literatura...
- - - -

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do semanário «Jornal do Fundão» - «Nova Literatura» - , coordenação de Artur Portela Filho, em 12/Maio/1963

MÁRIO CESARINY SEMPRE-III


cesariny-3> surrealismo & surrealistas - notas de leitura - publicados ac de 1963

CRÓNICA DO MAU TEMPO: SURREALISMO-ABJECCIONISMO - UMA ANTOLOGIA DE INDESEJÁVEIS (*)

(*)Assinado por Henrique P. Ventura, pseudónimo de Afonso Cautela, este texto foi publicado no suplemento literário «Letras e Artes» do semanário «Notícias da Amadora», provavelmente no ano de 1963.
1963 - Entre autores e textos impublicáveis ou malditos, entre inéditos e edições do autor, Cesariny entendeu reunir, num feixe só, a documentação gráfica e literária suficiente, «de acordo com o propósito inicial».
Primeiro passo e primeiro volume de uma possível antologia de excluídos ou antologia do Obsceno, ninguém como Mário Cesariny de Vasconcelos para empreender a desintoxicação do ambiente. A sua obra, pelo oxigénio próprio, é das poucas, das raras que podem desviciar a viciada atmosfera. E não uso metáfora. O fenómeno é físico. Além de mágico, é físico.
Surrealismo-Abjeccionismo, na tradição de Mário Cesariny e este na tradição a que Ernesto Sampaio chama «a única real tradição viva» (à página 68 da obra), usa de um vigor desusado, de uma força compulsória-explosiva notável. Primeiro o vácuo, depois a corrente de ar. E depois muitas constipações. Isto é, a acção físico-química da Poesia. Uma antologia de indesejáveis, esta, no indesejável tempo-i-mundo-nosso.
Os espíritos positivos não deixam de clamar, bem alto, para afogar o susto, que não acreditam em génios ignorados. Eu, que não sou espírito positivo, também não acredito. Mas do escrever ao publicar é que vai a diferença, o busílis, o abismo. O espinho cravado no sono das glórias constituídas. A posteridade prega cada parte!
De qualquer modo, a primeira vantagem vai ganha. Quem joga seguro, não perde tudo. Pode perder o melhor, mas não perde tudo. O inseguro, porém, tem encantos, tem até mais encanto. Ali, no silêncio, pode não estar nada mas (para o editor) pode estar a galinha dos ovos de oiro. É vê-los então (à dentada, à unhada, à facada) para saber quem leva os ovos sem matar a galinha, quem leva a galinha sem partir os ovos. Disto não se aperceberam os leitores, e fingem que não os críticos.
Mostra a história da literatura (que para estes serviços domésticos tem seu préstimo) que os vivos de hoje são os mortos de ontem. Também é verdade e a história ensina que os editores de hoje vivem (bem) à custa dos escritores sem editor de ontem. Mas que isto e aquilo, servindo de lição, não sirva contudo de consolo (para os que se calaram, foram obrigados a calar-se, e fizeram eles muito bem), nem de pretexto (para fundar uma Sociedade Portuguesa de Escritores) nem para alguém supor que compra a glória de amanhã ao preço da vil pobreza e do anonimato solitário de hoje. As coisas como estão até estão muito bem e não se deve falar dos que se calaram.
«Ceux qui vivent, vivent des morts», (Antonin Artaud). Que seria de nós sem a reserva da literatura maldita que os tempos abendiçoaram? Que seria do consumo externo e interno - que seria da nossa balança de pagamentos - sem o Fernando Pessoa e família? Que seria da família? E do Veiga, do Pedro Veiga? Mas principalmente o que será dos cronistas de hoje e das glórias em uso se algum Fernando Pessoa se lembrar de estar chocando por aí outra ninhada?

(*)Assinado por Henrique P. Ventura, pseudónimo de Afonso Cautela, este texto foi publicado no suplemento literário «Letras e Artes» do semanário «Notícias da Amadora», provavelmente no ano de 1963.

MÁRIO CESARINY SEMPRE-II


1-4 -66-09-15-S&S- terça-feira, 29 de Abril de 2003-cesariny-2


ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE SURREALISMO - AINDA (*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) , em 22/6/1967]

15/Outubro/1966
- Inclui cartas, comunicados colectivos, esboços de manifestos, conferências, tábuas cronológicas, reproduções fotográficas, textos polémicos, etc., o volume que Mário Cesariny de Vasconcelos elaborou sob o título de “A Intervenção Surrealista” para a Editora Ulisseia.
Pelo título se poderia concluir que são surrealistas, na opinião do coordenador, quantos ali intervieram umas vezes por influxo da corrente francesa com esse nome, outras vezes sob a pressão de circunstâncias e acontecimentos, quase sempre no desejo de marcar posição em relação a coisas directamente circundantes, adjacentes. Mas que de todo esse heteróclito conjunto de documentos resulte uma unanimidade de propósitos, eis desde logo a questão que se põe, a pergunta que se faz.
Se é certo que cada surrealista entende à sua maneira os dados fundamentais de um movimento que André Breton codificou mas não limitou, é bem possível que a unanimidade tenha de ser substituída, neste e noutros casos, por uma variedade de intentos e de posições individuais que, apesar do grupo (forma-do, a formar-se ou a desfazer-se) não participaram de um propósito colectivo.
Se houve ou não houve tal propósito colectivo, quer dizer, se houve ou não houve surrealismo em Portugal, se as manifestações surtas com esse rótulo podem, de perto ou de longe, aparentar-se com as congéneres manifestações ocorridas em outros idiomas, seria porventura a pergunta que as pessoas interessadas fazem de há muito e que calculavam ir finalmente encontrar respondida no interventor livro de Cesariny.
No entanto, por agora, parece-me mais viável analisar a utilidade da colectânea independentemente de responder a tal pergunta (a que, diga-se já, o livro não responde) e de satisfazer ou não a princípios que, começando por não estar definidos em português, expostos e proclamados, acabam também por não ser da intenção explícita ou implícita do coordenador. Intencional ou não, o coordenador fez deste livro o seu definitivo testamento “em branco” e também, de passagem, o tribunal onde sova os acusados que lhe apetece e solta as iras recalcadas.
Aos absolvidos de tão temível cólera, subentende-se que Cesariny os considera de seu lado, não definitivamente surrealistas, talvez, mas inofensivos à causa. Do resto, não se salva ninguém; aos condenados que serviram de pano de fundo, de alvo e de pretexto para haver surrealismo “à moda de Lisboa”, trata-os o insigne poeta com o sarcasmo, o desprezo, a auto-suficiência que em tal auto de fé se requeriam necessários mas que ele aplicaria com melhor justiça e proveito a outros sectores bem mais acres e culposos. A divisória estabelecida serve para um ajuste de contas quer com os surrealistas que nunca o foram, quer com os que estavam de fora e de-sejaram meter lá o bedelho ou a colherada crítica. A ver isto, “a gente que ainda estava à espera” e, entre essa gente a pessoa con-vidada a escrever sobre “A Intervenção Surrealista” deve pensar três vezes e, se nutre simpatias pelo surrealismo, evitar que o expurguem da confraria; se não nutre, preparar-se para uma saraivada em forma de comunicado colectivo.
Os surrealistas sabem, mas há mais alguém que também sabe: claro que houve aqui para toda a irreverência intelectual, um re-conhecimento tardio, torpe ou ignorante; de tal se podem queixar não só os que Cesariny acolhe sob a sua asa protectora mas quantos não tiveram, porque não quiseram, patrono ou protector, traduzido ou não do francês. Que estamos no País mais anti-poético do Planeta, também me parece e têm razão as investidas que contra académicos e neo-académicos são historiadas, no volume. Que o poeta dificil ou impossivelmente porá pé em ramo verde nesta terra calcina-da por academias que tão poderosas fortalezas erguerem, para seu uso e proveito, - também eles têm razão. Mas só os surrealistas? Só os que sob o rótulo Cesariny congrega? Só os que, não tendo outro lugar comum onde figurar, lhes valeu a amizade do autor de “Pena Capital” para passarem à história e à literatura?
Como, a não ser por favor, se justificariam hoje em letra de forma os destroços poéticos de H. R. Pereira e Pedro Oom, os mais contrários ao conceito surrealista da poesia como oficio da existência, como realização e acto absorventes, como extensão de responsabilidades a todos os instantes e recantos da vida?
Como a não ser por favor, se justificaria a inclusão do texto “Pelaguin”, de Carlos Eurico da Costa, já que por intrínseca qualidade poética em nada se recomenda e muito menos como expressão polémica, crítica ou etc?
Esparsos rascunhos que estavam lá guardados na gaveta, não podem, só porque Cesariny os antologia, porque se incluem de cho-fre numa intervenção chamada surrealista, adquirir magicamente o mérito e representatividade que nunca tiveram nem teriam.
Inversamente, a ter de avaliar o mérito do surrealismo por tais amostras, onde iríamos cotar o surrealismo?
Pretexto para reunir algumas brincadeiras de alguns jovens que depois arranjaram mais que fazer e se marimbaram na poesia, não teria o Poeta Mário sido logrado no seu propósito e traído por excessiva boa fé?
Do surrealismo cada um abichou o que lhe apeteceu e calhava. Agora, incluído entre os ortodoxos, possivelmente até já nem se lembrava. A quem vier depois, (a quem “ainda estava à espera”) e se queira servir do livro para instrução, escusado será repetir que pouco mais lhe acontece do que ver frases, abaixo-assinados, car-tas pessoais (com os rancores sine que non), esboços de poemas, esboços de ideias, esboços de intenções, esboços de esboços, e uma tábua de datas a servir de memorando.
Nunca os surrealistas liderados por Cesariny quiseram saber de quem os entendesse, embora os víssemos iradíssimos sempre que os não entendíamos. Nada adianta portanto ao esclarecimento (embora adiante muitíssimo à alegre confusão que a tantos agrada) do surrealismo ou de algo que esteja fora e além dele, o caderno de equívocos, ambiguidades, boca-dos de bocados de afirmações ( o fragmento do fragmento, tão famoso e que tanto serviu para desculpar consequências como inculpar causas), insinuações com aparência de profundas - eis a que se resume, em balanço afinal, “A Intervenção Surrealista”.
Levemente irritante é a tendência do surrealismo ali com-pilado para não selectivar os alvos dos seus remoques. Indiscriminadamente se atiram ao péssimo e ao mau, sem se preocuparem em atingir os pontos-chave da Abjeccção e declarando-se lesionados quando alguém os chama pelos nomes. Com enorme berreiro, já não querem outra coisa, já não elegem outra luta. Bem podiam ter ocupado o seu (deles) tempo com coisas diferentes das zangas e zaragatas pessoais. E talvez ninguém fosse ao ponto de lhes pedir virtudes tão vulgares como um pouco de inteligência ou de compreensão crítica, se eles não tivessem, sempre aflitos, procurado uma tão decantada intervenção nos negócios da cidade e desejado fazer-se, a todo o transe, homens atentos à história, presentes na circunstância, íntegros e verticais, antes quebrar que torcer, etc., etc.
A pretensão de dizer o que nunca foi dito com palavras que nunca foram escritas — preocupação central, ao que consegui perceber, dos diligentes textos redigidos por Cesariny - admite-se, creio eu, como toda a expressão ou voz poética, enquanto forma única de dizer o indizível, admite-se para usos e abusos de imaginação criadora, admite-se como disposição prévia convencionada para se enfrentarem as “vozes do silêncio” de que os poetas são os porta-vozes. Mas quando se trata de manifestar, de escrever textos para agir em concreto, de falar para intervir, - para defender dos fariseus o “dourado” património — entender-se-á porventura o uso da cifra hermética, da esotérica palavra e da iniciática visão para iniciados?
A avaliar pelas actividades surrealistas do Café Gelo, nada restaria a um poeta, além de cantar e desistir. Também da presente colectânea se não avista para a alternativa - poesia ou po-lítica - uma saída. E essa saída (seriam os surrealistas os primeiros e últimos a sabê-lo, se fossem de facto surrealistas) existe, pode ser compreendida dentro das limitações conhecidas. Ao surrealismo - segundo o que pode apurar-se destes textos - nada
mais resta do que um resignado regresso a fontes ocultistas. Aí pretende imitar os que em França tentaram reatar tradições de épocas soterradas não apenas como curiosidade teórica mas como prática quotidiana.
Dentro da História que é a nossa, as mágicas desse estilo são não só impossíveis como suspeitas: a fuga à Abjecção por ignorância dela é uma forma mais ou menos triste de colaborar com ela e só uma via que a tome por termo de oposição constante - a via abjeccionista - deixa de .ser menos que utopia e mais que escapismo.
Da via abjeccionista, entretanto, está Cesariny decidido também a dianteira como se as palavras e o que elas significam pertencessem a pessoas ou grupos de pessoas! Surripiar também o abjeccionismo (como fizeram para o surrealismo) com fins esotéricos, parece-me abusivo, tanto mais que a posição abjeccionista - uma filosofia da História como qualquer outra - se distancia bastante dos optimismos surrealistas (jamais ceder ao cor-de-rosa seria o que de melhor nos ensinaram os “transfugas” do surrealismo).
Fiquem-se estes surrealistas, pois, já que teimam, a produzir textos “originais” para si mesmos, sem termos de ligação que os prendam à realidade histórica, à vulgaridade quotidiana; fiquem-se a imitar truques zénicos respondendo alhos a bugalhos e julgando assim que estão a intervir; fiquem-se nas pequenas manobras publicitárias; fiquem-se hipocritamente puristas num mundo corrompido, cinicamente convencidos de uma exclusividade poética, de um satanismo barato, de uma predestinação de iniciados; fiquem-se, enfim, a ruminar para si mesmo (à custa do surrealismo que pouco tem a ver com isso) enquanto o apodrecimento à sua volta não diminui nem aumenta; fiquem-se a escrever em cursivo pena de pato as belas palavras - Poesia, Liberdade, Amor; fiquem-se enfim com suas artes e letras. “A gente que ainda estava à espera” - finalmente - é que deixou definitivamente de estar à espera.
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) , em 22/6/1967