mezei - gato leitor – revisão: 2001-12-27
DA PATAFÍSICA AO SURREALISMO
É talvez um lapso bastante reprovável que o livro «Le Matin des Magiciens» nunca cite Alfred Jarry nem tenha salientado a importância da Patafísica (por ele fundada como «ciência da excepção») para o realismo fantástico de que aquele livro é um manifesto.
Em contrapartida, dedicam os autores -- Louis Pauwels e Jacques Bergier -- bastante espaço e muito justamente, a Charles Fort, outro autor que procurava nos EUA o que Jarry procurava em França: a ciência da excepção ou ciência do particular. Deveria estudar-se este paralelismo entre o autor de «Gestes et Opinions du Docteur Faustroll» e o autor do «Livro dos Danados».
«O movimento assimétrico e espiral (...) anima os mais importantes símbolos de Jarry» -- escrevem Marcel Jean e Arpad Mezei na sua obra «Génèse de la Pensée Moderne». Seja ou não assim, deve registar-se esta observação e relacionar-se com o parentesco descoberto por Ruy Launoir em «Clefs pour la Pataphysique»(Ed. Seghers): «Porque será que o único estudo do Doutor Sandomir especificamente dedicado à «Prospectiva» se intitula «Michel Nostradamus ou L'Avenir est-il un Poème?». Contrariamente ao que um positivismo apressadamente compreendido poderia levar a crer, o método divinatório de Nostradamus não aparece como uma compensação imaginária à impotência que resultaria do desconhecido das leis da natureza e da história» (...)
O método prático de Nostradamus, cuja eficácia tem sido regularmente reconhecida, ironiza indirectamente sobre a precaridade das previsões da ciência moderna, incapaz de reconhecer o imaginário e a aberração, nela e fora dela, para deles fazer uso conscientemente.
Registem-se duas curiosas coincidências: «Tautologias» é o título de um livro do poeta Raul de Carvalho e a noção de «tautologia» é uma das mais importantes para entender a Patafísica «doutrinada» por Alfred Jarry.
«O Amor em Visita», poema de Herberto Helder, é o título de uma obra de Alfred Jarry, que não está longe de inspirar alguns dos postulados a que a obra de Herberto pode referir-se: a obra e principalmente a sua estranha personalidade de sempre «marginal».
AFONSO CAUTELA
terça-feira, 24 de julho de 2012
O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT
1-2- 69-11-04-ls> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan
A EXPERIÊNCIA ABJECCIONISTA E O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT
JUSTIFICAÇÃO (POLÍTICA) DO HUMOR NEGRO(*)
"Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).
4-11-1969 - Se já muitos observadores, a principio renitentes, aceitam os autores do absurdo ou do irrisório, incluindo-os no entanto sob a designação de vanguarda - onde os colocam por comodidade de exposição... -,mais difícil é reconhecerem em Samuel Beckett ou
Jean Genet, Pinter ou Artaud, Kafka ou Ionesco, sentido social ní-tido.
Em que medida podem os autores do absurdo - humor negro ou irrisório, como se preferir - ser autores de massas e até autores políticos?
Políticos, em sentido estrito, não o serão. Mas de massas creio que sim, porque o mundo de Samuel Beckett - tomado como pa-radigma dos autores "infernais" - é um mundo susceptível de ser compreendido e aceite por maiorias. Porque são as maiorias oprimidas que vivem as humilhações, o grotesco, o irrisório de Samuel Beckett e dos seus anti-heróis. São maiorias os que sentem (ou pressentem) a sua alienação, o seu abandono, a sua inferioridade psíquica e orgânica. Mais mesmo do que uma situação económica de opressão, as figuras de Samuel Beckett vivem o aviltamento e a degradação resultantes dessa opressão - por vezes hereditária. Envelhecem e apodrecem, julgando, no entanto (e aí surge o factor de ironia que torna humorística a situação trágica, que torna irrisório e risível o absurdo) alimentar altos ideais ao satisfazer ou pretender satisfazer as comezinhas necessidades primárias.
O mundo de Beckett evidencia, até ao paroxismo, o relativismo de tudo. O espectador assiste às mesquinhas ambições das figuras e delas se ri ou compadece. Mas logo nelas pensa de outra maneira, quando lhe é sugerido que as suas próprias ambições se tornam também mesquinhas e risíveis se forem referidas a outro termo mais exigente da escala. E assim por diante.
Inserido no jogo das relações humanas o princípio da relatividade - pressuposto pela morte de Deus - tudo nos parecerá ridículo e irrisório. Nenhum dos nossos esforços terá significado e nenhum gesto mais consistência do que os movimentos larvares, moribundos, frustrados das larvas humanas que são as personagens que vemos, no palco, desintegrar-se supondo que vivem, ou chamando vi-da a essa desintegração. "Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).
Em função disto, poderá acusar-se Samuel Beckett e os auto-res do absurdo ou humor negro de se preocuparam demasiado com o Absoluto? De serem, portanto, metafísicos e nada dialécticos?
O Absoluto a que estes autores, directa ou indirectamente, se referenciam, fará deles os arautos de uma metafísica ou de uma difícil e futura dialéctica?
A verdade é que sem a experiência - própria ou alheia - do Absurdo (a que se pode dar o nome de relativo) e sua vivência – ao nível existencial ou da recriação artística - não pode haver superação, nem problemática, nem dialéctica. Sem o ponto-limite a que os autores do "humor-negro" levam a existência humana, sem esse peso do trágico que ela comporta, não há projecto de acção criadora sincero. Sem a travessia do que pode considerar-se o extremo do niilismo, não há optimismo com justa noção da realidade. Para que o optimismo não caia no primarismo idealista, é necessário o ante-cedente de que os autores do absurdo foram os mais lúcidos cronistas.
Faziam falta e são imprescindíveis à marcha dialéctica da História, esses autores do nada, abjeccionistas ou teóricos da frustração e da revolta. A revolta é condição sine qua non - no plano psíquico - da revolução, a via pela qual esta amadurece e se torna adulta. Se humaniza.
Eis a justificação política (ou trans-politica?) para o que alguns observadores demasiado superficiais consideram a gratuita "decadência" do humor negro, do irrisório, do absurdo.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter sido publicado no suplemento literário d’ «A Capital», quando era coordenado por Maria Teresa Horta e corresponde a uma fase em que as intuições fulcrais dos anos cruciais começavam a tomar forma, depois das experiências surrealista e existencial (que posso resumir na palavra abjeccionismo, antecedente directo da ideia ecológica.
A EXPERIÊNCIA ABJECCIONISTA E O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT
JUSTIFICAÇÃO (POLÍTICA) DO HUMOR NEGRO(*)
"Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).
4-11-1969 - Se já muitos observadores, a principio renitentes, aceitam os autores do absurdo ou do irrisório, incluindo-os no entanto sob a designação de vanguarda - onde os colocam por comodidade de exposição... -,mais difícil é reconhecerem em Samuel Beckett ou
Jean Genet, Pinter ou Artaud, Kafka ou Ionesco, sentido social ní-tido.
Em que medida podem os autores do absurdo - humor negro ou irrisório, como se preferir - ser autores de massas e até autores políticos?
Políticos, em sentido estrito, não o serão. Mas de massas creio que sim, porque o mundo de Samuel Beckett - tomado como pa-radigma dos autores "infernais" - é um mundo susceptível de ser compreendido e aceite por maiorias. Porque são as maiorias oprimidas que vivem as humilhações, o grotesco, o irrisório de Samuel Beckett e dos seus anti-heróis. São maiorias os que sentem (ou pressentem) a sua alienação, o seu abandono, a sua inferioridade psíquica e orgânica. Mais mesmo do que uma situação económica de opressão, as figuras de Samuel Beckett vivem o aviltamento e a degradação resultantes dessa opressão - por vezes hereditária. Envelhecem e apodrecem, julgando, no entanto (e aí surge o factor de ironia que torna humorística a situação trágica, que torna irrisório e risível o absurdo) alimentar altos ideais ao satisfazer ou pretender satisfazer as comezinhas necessidades primárias.
O mundo de Beckett evidencia, até ao paroxismo, o relativismo de tudo. O espectador assiste às mesquinhas ambições das figuras e delas se ri ou compadece. Mas logo nelas pensa de outra maneira, quando lhe é sugerido que as suas próprias ambições se tornam também mesquinhas e risíveis se forem referidas a outro termo mais exigente da escala. E assim por diante.
Inserido no jogo das relações humanas o princípio da relatividade - pressuposto pela morte de Deus - tudo nos parecerá ridículo e irrisório. Nenhum dos nossos esforços terá significado e nenhum gesto mais consistência do que os movimentos larvares, moribundos, frustrados das larvas humanas que são as personagens que vemos, no palco, desintegrar-se supondo que vivem, ou chamando vi-da a essa desintegração. "Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).
Em função disto, poderá acusar-se Samuel Beckett e os auto-res do absurdo ou humor negro de se preocuparam demasiado com o Absoluto? De serem, portanto, metafísicos e nada dialécticos?
O Absoluto a que estes autores, directa ou indirectamente, se referenciam, fará deles os arautos de uma metafísica ou de uma difícil e futura dialéctica?
A verdade é que sem a experiência - própria ou alheia - do Absurdo (a que se pode dar o nome de relativo) e sua vivência – ao nível existencial ou da recriação artística - não pode haver superação, nem problemática, nem dialéctica. Sem o ponto-limite a que os autores do "humor-negro" levam a existência humana, sem esse peso do trágico que ela comporta, não há projecto de acção criadora sincero. Sem a travessia do que pode considerar-se o extremo do niilismo, não há optimismo com justa noção da realidade. Para que o optimismo não caia no primarismo idealista, é necessário o ante-cedente de que os autores do absurdo foram os mais lúcidos cronistas.
Faziam falta e são imprescindíveis à marcha dialéctica da História, esses autores do nada, abjeccionistas ou teóricos da frustração e da revolta. A revolta é condição sine qua non - no plano psíquico - da revolução, a via pela qual esta amadurece e se torna adulta. Se humaniza.
Eis a justificação política (ou trans-politica?) para o que alguns observadores demasiado superficiais consideram a gratuita "decadência" do humor negro, do irrisório, do absurdo.
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(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter sido publicado no suplemento literário d’ «A Capital», quando era coordenado por Maria Teresa Horta e corresponde a uma fase em que as intuições fulcrais dos anos cruciais começavam a tomar forma, depois das experiências surrealista e existencial (que posso resumir na palavra abjeccionismo, antecedente directo da ideia ecológica.
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LEITURAS 2013,
surrealismo e surrealistas
A IDEIA ECOLÓGICA AC EM 1973
1-3 - 73-04-12-ie- quarta-feira, 4 de Dezembro de 2002-scan
A CONSCIÊNCIA ORIGINAL DA UNIDADE PERDIDA (*)
«os que teimam em resistir, em manter a imagem do homem, o rosto humano do homem. "Liberté, couleur d'homme" (André Breton). Ora a condição sine que non desse "rosto humano" e desse rosto vivo da vida, é a consciência ou perspectiva ecológica. »
["Diário do Alentejo", 12/Abril/1973] - Que o mundo seja, todo ele e em matéria de lucidez crítica, uma imensa leprosaria, ou, se se prefere, um asilo de alienados, de imbecis, de histéricos e de delinquentes senis, enfim: a gente já conhece, já não liga e passa.
Mas que as minorias, os raríssimos nos quais reside afinal a nossa derradeira esperança de homens ainda humanos, se passem, inopinadamente, para o campo da Abjecção, eis o maior e inominável desespero. Eis o maior motivo de pessimismo. Se as minorias são o sal da Terra, então só nos poetas, nos raros artistas e escritores e em alguns filósofos que tenham ainda um pouco de profetas residiria a nossa única e última esperança.
No meio do fanatismo das ideologias, no meio do obscurantismo que se desculpa de causa política, no meio da estupidez que se vangloria de "combater" tudo quanto seja vivo, se subsiste ainda um resto de esperança seria apenas para acreditar nos poucos e raros e últimos poetas que haja neste tempo e mundo.
Quer dizer: nos últimos que teimam em resistir, em manter a imagem do homem, o rosto humano do homem. "Liberté, couleur d'homme" (André Breton)
CONSCIÊNCIA OU PERSPECTIVA ECOLÓGICA
Ora a condição sine que non desse "rosto humano" e desse rosto vivo da vida, é a consciência ou perspectiva ecológica. É a noção intuitiva e consciente, calma mas exaltante, de que habitamos todos o mesmo planeta e o mesmo universo, de que tão importante é o homem na sua cama, na sua casa, na sua oficina de trabalho, na rua e no seu lugar de ócio, como o sol na sua rota cósmica, a árvore na floresta, o peixe no rio, a ave no céu.
Tão importante é a dor humana como a da ave ou da planta e tão importante o direito à subsistência material como o direito aos imponderáveis afectivos, imaginativos, artísticos, que qualificam a existência.
Poeta, é o que mantém, ainda, apesar de tudo e contra todos, essa consciência original da unidade perdida, o que teima em religar, pela palavra simbólica, esses elementos da mesma unidade e do mesmo esplendor cósmico que uma civilização atomizante, homicida, pulverizou e dilacerou.
Poeta, seria o que ainda não se deixou vencer pelas mitologias estúpidas, pelos alibis, pelos slogans do especialismo, do cientifismo, do tecnicismo, do divisionismo estéril e criminoso (criminoso porque estéril), estes sim, os principais mecanismos ao serviço de todas as ideologias no processo de aviltamento humano e de abjecção.
Ora a forma de colaboracionismo com a Abjecção hoje mais directa é destituir a consciência ecológica do seu lugar prioritário em relação a tudo o que se passa sobre o planeta terráqueo (só há uma maneira de se destituir a ecologia dessa prioridade: é mudar de planeta).
Porque ela (consciência ecológica) unifica onde os outros dividem, pesa e dignifica onde os outros segregam e degradam, porque ela defende a vida onde os outros atulham de química, porque ela respeita a criação onde os outros perpetram sistemático biocídio, porque ela sustenta o amor e a liberdade onde os outros, por um prato de lentilhas, se vendem à escravidão do consumismo e à histeria das violências paternalistas (incluindo a violência das cirurgias, das vacinas ou de outras a quem ninguém alude - porquê?).
Precisamente porque não é a vida de um só homem que me preocupa, mas a vida de todos os homens (incluindo os que morrem na Indochina com desfolhantes) é que me preocupa um metro quadrado de floresta e vice-versa. Porque me preocupa saber, por exemplo, se cada folha de papel em branco que é gasta (que eu gasto) a aproveitei no verdadeiro sentido ou se andei também a desperdiçar, com ela, floresta.
E preocupa-me saber isso, não só pela tal razão do ecossistema (todas as formas de vida são interdependentes, não sou eu que o digo, mas os cientistas); não só pela razão do ecossistema, que é razão mais que suficiente, mas porque só a consciência do Ecocídio é hoje consciência humana do homem, simultaneamente (pre) ocupada a nível universal e a nível individual.
POLUENTES E ANTI-POLUENTES
Quando falo de consciência ecológica (a tal que o “slogan" da palavra "poluição" tenta reduzir demagogicamente e também a um dilemazinho caseiro entre poluentes e anti-poluentes, a um problema portanto doméstico de lixo que se produz e de lixo que logo a seguir se varre, indo todos p’ra casa satisfeitos) penso em todos os homens que morrem porque o ambiente inumano os assassina, a curto ou longo prazo: ambiente que é a casa, a rua, a oficina, a cidade, o país, a cultura, a ideologia, o partido, todos os círculos concêntricos de que o indivíduo é o centro e dentro dos quais está inserido, envolvido e de que fatalmente é função.
Quando falo de meio inumano penso, por exemplo, num dos múltiplos capítulos que os palradores da "poluição" sistemática e cautelosamente omitem: as doenças de ambiente, que são quase todas, quer as congénitas como o mongolismo, quer as infecto-contagiosas como a tuberculose, quer as endémicas como o paludismo e a cólera, quer as degenerativas como o cancro e as cardíacas, quer as traumáticas como os acidentes de viação e os acidentes de trabalho, quer as tóxicas como... a toxicomania, etc etc.
A causa das causas é sempre de ambiente; os homens sofrem, porque o ambiente os faz sofrer, porque lhes cria carências - desde a fome ao afecto - , porque os aliena, porque os traumatiza, porque os violenta, porque os intoxica, porque os adoece, porque os tiraniza, porque os escraviza, porque centenas de anos de pseudo-civilização em vez de pura e simplesmente lhes humanizar o ambiente natural apenas lho degradou, sem, em troca, lhes dar um ambiente artificial mas humano.
ATENÇÃO SIMULTÂNEA AO TODO UNIVERSAL E AO LOCAL
O que a consciência ecológica permite (e só ela, especìficamente, permite) é a justa hierarquia de todos os seres viventes e da sua relacionação, sem segregações, sem racismos, sem favoritismos, sem padrões ou cânones paterna listas. Só a consciência ecológica é uma interconjugação de criaturas, é uma atenção simultânea ao todo universal e ao local, ao regional, ao individual.
Para amar a pessoa humana não tenho que desprezar a árvore, e simultaneamente, como nos quer fazer crer a odiosa ideologia que preside à Engrenagem de esmagamento e em que essa Engrenagem traduz todo o seu ódio à pessoa humana (como diariamente comprovará, quem lê jornais ou vê TV, sem necessitar que lho esteja aqui a comprovar), e em que essa Engrenagem induz até os melhores, até os mais sensíveis e dotados, os raros (antes) a manterem o sentido da unidade, da simultaneidade, da vida, dentro e contra a Engrenagem maciçamente homicida.
Má fé é acusar a Ecologia de preferir a árvore ao homem, quando a Ecologia é o esforço sobrehumano de resistência à vaga homicida que precisamente pretende sobrepor (e com que sanha, Deus nosso) ao homem e à árvore (aos seres vivos no seu conjunto) o objecto, o inerte, o inorgânico o químico, o material, o mecânico, o motorizado, enfim, toda a quinquilharia electro-doméstica, mecânico-tecnicista e burocrática que destitui, ofende, traumatiza, degrada, adoece e mata, e mata, e mata a vida (seja a de um homem seja a de uma ave, seja a de um planeta, já aconteceu à Lua, a tal dos poetas e românticos...).
Este o dilema e não, e nunca homem contra árvore.
PRÉMIO NOBEL DA LEGUMINOSA SECA
Quando o senhor Norman Borlaug, prémio Nobel da leguminosa seca, alto funcionário da FAO e dizem que inventor da maior burla do século que é a pomposamente chamada "revolução verde" - um dos maiores obstáculos a que o Terceiro Mundo efectivamente se emancipe e faça a revolução que lhe aprouver -, quando o senhor Borlaug e outros senhores Borlaug gritam que histéricos são os defensores da Natureza porque condenam urbi et orbi a chacina do DDT ( burla de primeira água perpetrada contra o Terceiro Mundo e a independência efectiva do Terceiro Mundo), quando vem um outro senhor funcionário da FAO, Suvana Puma, repetir a papel químico a gritaria do senhor Borlaug, e tudo isso em nome da fome que dizem combater (?) mas que efectivamente pretendem alimentar, é outro falso dilema, é mais um capítulo do intérmino folhetim da demagogia para-científica e para-técnica.
Antes do DDT, esses delinquentes senis não resolveram o "problema da fome", porque não lhes interessava resolvê-lo e porque a fome é apenas um aspecto da totalidade ambiente que importa resolver; como não hão-de resolvê-lo é óbvio e vê-se, com DDT, antes e depois do DDT.
O que um ecologista deverá demonstrar aos senhores Borlaug, aos senhores prémios Nobel da pólvora, aos senhores todos servidores da Engrenagem (fomentadora da miséria e da Abjecção) é que Fome e DDT estão de acordo. O que um ecologista sabe - embora todos lhe cortem a fala quando ele o tenta - , é que o DDT é o último alibi de uma manobra - , "distrair e adiar" - típica da Abjecção para alongar a fome e o subdesenvolvimento. Assim como os terrores da explosão demográfica são outro sofisma, outro falso dilema, outra burla e outro capítulo da romanesca demagogia melodramática para emocionar temperamentos nervosos.
A fome resolve-se de um dia para o outro, sem DDT. E só sem DDT se poderá resolver. A qualidade - para um ecologista - passa a ser condição sine qua non da quantidade. Já que tudo o mais está do outro lado, a nós fica a especialidade da qualidade.
Condição sine qua non para que a fome desapareça (mas não só a fome, todas as carências, doenças, sofrimentos, alienações, degradações, humilhações, aberrações e torturas) é que desapareça a Engrenagem homicida de tecno-burrocratas, com os seus Nobel na lapela, funcionários ou não dos prestigiosos organismos da mentira internacional organizada.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no «Diário do Alentejo», (Beja) , em 12 de Abril de 1973, graças à atenção e hospitalidade do meu querido e inesquecível amigo José António Moedas
A CONSCIÊNCIA ORIGINAL DA UNIDADE PERDIDA (*)
«os que teimam em resistir, em manter a imagem do homem, o rosto humano do homem. "Liberté, couleur d'homme" (André Breton). Ora a condição sine que non desse "rosto humano" e desse rosto vivo da vida, é a consciência ou perspectiva ecológica. »
["Diário do Alentejo", 12/Abril/1973] - Que o mundo seja, todo ele e em matéria de lucidez crítica, uma imensa leprosaria, ou, se se prefere, um asilo de alienados, de imbecis, de histéricos e de delinquentes senis, enfim: a gente já conhece, já não liga e passa.
Mas que as minorias, os raríssimos nos quais reside afinal a nossa derradeira esperança de homens ainda humanos, se passem, inopinadamente, para o campo da Abjecção, eis o maior e inominável desespero. Eis o maior motivo de pessimismo. Se as minorias são o sal da Terra, então só nos poetas, nos raros artistas e escritores e em alguns filósofos que tenham ainda um pouco de profetas residiria a nossa única e última esperança.
No meio do fanatismo das ideologias, no meio do obscurantismo que se desculpa de causa política, no meio da estupidez que se vangloria de "combater" tudo quanto seja vivo, se subsiste ainda um resto de esperança seria apenas para acreditar nos poucos e raros e últimos poetas que haja neste tempo e mundo.
Quer dizer: nos últimos que teimam em resistir, em manter a imagem do homem, o rosto humano do homem. "Liberté, couleur d'homme" (André Breton)
CONSCIÊNCIA OU PERSPECTIVA ECOLÓGICA
Ora a condição sine que non desse "rosto humano" e desse rosto vivo da vida, é a consciência ou perspectiva ecológica. É a noção intuitiva e consciente, calma mas exaltante, de que habitamos todos o mesmo planeta e o mesmo universo, de que tão importante é o homem na sua cama, na sua casa, na sua oficina de trabalho, na rua e no seu lugar de ócio, como o sol na sua rota cósmica, a árvore na floresta, o peixe no rio, a ave no céu.
Tão importante é a dor humana como a da ave ou da planta e tão importante o direito à subsistência material como o direito aos imponderáveis afectivos, imaginativos, artísticos, que qualificam a existência.
Poeta, é o que mantém, ainda, apesar de tudo e contra todos, essa consciência original da unidade perdida, o que teima em religar, pela palavra simbólica, esses elementos da mesma unidade e do mesmo esplendor cósmico que uma civilização atomizante, homicida, pulverizou e dilacerou.
Poeta, seria o que ainda não se deixou vencer pelas mitologias estúpidas, pelos alibis, pelos slogans do especialismo, do cientifismo, do tecnicismo, do divisionismo estéril e criminoso (criminoso porque estéril), estes sim, os principais mecanismos ao serviço de todas as ideologias no processo de aviltamento humano e de abjecção.
Ora a forma de colaboracionismo com a Abjecção hoje mais directa é destituir a consciência ecológica do seu lugar prioritário em relação a tudo o que se passa sobre o planeta terráqueo (só há uma maneira de se destituir a ecologia dessa prioridade: é mudar de planeta).
Porque ela (consciência ecológica) unifica onde os outros dividem, pesa e dignifica onde os outros segregam e degradam, porque ela defende a vida onde os outros atulham de química, porque ela respeita a criação onde os outros perpetram sistemático biocídio, porque ela sustenta o amor e a liberdade onde os outros, por um prato de lentilhas, se vendem à escravidão do consumismo e à histeria das violências paternalistas (incluindo a violência das cirurgias, das vacinas ou de outras a quem ninguém alude - porquê?).
Precisamente porque não é a vida de um só homem que me preocupa, mas a vida de todos os homens (incluindo os que morrem na Indochina com desfolhantes) é que me preocupa um metro quadrado de floresta e vice-versa. Porque me preocupa saber, por exemplo, se cada folha de papel em branco que é gasta (que eu gasto) a aproveitei no verdadeiro sentido ou se andei também a desperdiçar, com ela, floresta.
E preocupa-me saber isso, não só pela tal razão do ecossistema (todas as formas de vida são interdependentes, não sou eu que o digo, mas os cientistas); não só pela razão do ecossistema, que é razão mais que suficiente, mas porque só a consciência do Ecocídio é hoje consciência humana do homem, simultaneamente (pre) ocupada a nível universal e a nível individual.
POLUENTES E ANTI-POLUENTES
Quando falo de consciência ecológica (a tal que o “slogan" da palavra "poluição" tenta reduzir demagogicamente e também a um dilemazinho caseiro entre poluentes e anti-poluentes, a um problema portanto doméstico de lixo que se produz e de lixo que logo a seguir se varre, indo todos p’ra casa satisfeitos) penso em todos os homens que morrem porque o ambiente inumano os assassina, a curto ou longo prazo: ambiente que é a casa, a rua, a oficina, a cidade, o país, a cultura, a ideologia, o partido, todos os círculos concêntricos de que o indivíduo é o centro e dentro dos quais está inserido, envolvido e de que fatalmente é função.
Quando falo de meio inumano penso, por exemplo, num dos múltiplos capítulos que os palradores da "poluição" sistemática e cautelosamente omitem: as doenças de ambiente, que são quase todas, quer as congénitas como o mongolismo, quer as infecto-contagiosas como a tuberculose, quer as endémicas como o paludismo e a cólera, quer as degenerativas como o cancro e as cardíacas, quer as traumáticas como os acidentes de viação e os acidentes de trabalho, quer as tóxicas como... a toxicomania, etc etc.
A causa das causas é sempre de ambiente; os homens sofrem, porque o ambiente os faz sofrer, porque lhes cria carências - desde a fome ao afecto - , porque os aliena, porque os traumatiza, porque os violenta, porque os intoxica, porque os adoece, porque os tiraniza, porque os escraviza, porque centenas de anos de pseudo-civilização em vez de pura e simplesmente lhes humanizar o ambiente natural apenas lho degradou, sem, em troca, lhes dar um ambiente artificial mas humano.
ATENÇÃO SIMULTÂNEA AO TODO UNIVERSAL E AO LOCAL
O que a consciência ecológica permite (e só ela, especìficamente, permite) é a justa hierarquia de todos os seres viventes e da sua relacionação, sem segregações, sem racismos, sem favoritismos, sem padrões ou cânones paterna listas. Só a consciência ecológica é uma interconjugação de criaturas, é uma atenção simultânea ao todo universal e ao local, ao regional, ao individual.
Para amar a pessoa humana não tenho que desprezar a árvore, e simultaneamente, como nos quer fazer crer a odiosa ideologia que preside à Engrenagem de esmagamento e em que essa Engrenagem traduz todo o seu ódio à pessoa humana (como diariamente comprovará, quem lê jornais ou vê TV, sem necessitar que lho esteja aqui a comprovar), e em que essa Engrenagem induz até os melhores, até os mais sensíveis e dotados, os raros (antes) a manterem o sentido da unidade, da simultaneidade, da vida, dentro e contra a Engrenagem maciçamente homicida.
Má fé é acusar a Ecologia de preferir a árvore ao homem, quando a Ecologia é o esforço sobrehumano de resistência à vaga homicida que precisamente pretende sobrepor (e com que sanha, Deus nosso) ao homem e à árvore (aos seres vivos no seu conjunto) o objecto, o inerte, o inorgânico o químico, o material, o mecânico, o motorizado, enfim, toda a quinquilharia electro-doméstica, mecânico-tecnicista e burocrática que destitui, ofende, traumatiza, degrada, adoece e mata, e mata, e mata a vida (seja a de um homem seja a de uma ave, seja a de um planeta, já aconteceu à Lua, a tal dos poetas e românticos...).
Este o dilema e não, e nunca homem contra árvore.
PRÉMIO NOBEL DA LEGUMINOSA SECA
Quando o senhor Norman Borlaug, prémio Nobel da leguminosa seca, alto funcionário da FAO e dizem que inventor da maior burla do século que é a pomposamente chamada "revolução verde" - um dos maiores obstáculos a que o Terceiro Mundo efectivamente se emancipe e faça a revolução que lhe aprouver -, quando o senhor Borlaug e outros senhores Borlaug gritam que histéricos são os defensores da Natureza porque condenam urbi et orbi a chacina do DDT ( burla de primeira água perpetrada contra o Terceiro Mundo e a independência efectiva do Terceiro Mundo), quando vem um outro senhor funcionário da FAO, Suvana Puma, repetir a papel químico a gritaria do senhor Borlaug, e tudo isso em nome da fome que dizem combater (?) mas que efectivamente pretendem alimentar, é outro falso dilema, é mais um capítulo do intérmino folhetim da demagogia para-científica e para-técnica.
Antes do DDT, esses delinquentes senis não resolveram o "problema da fome", porque não lhes interessava resolvê-lo e porque a fome é apenas um aspecto da totalidade ambiente que importa resolver; como não hão-de resolvê-lo é óbvio e vê-se, com DDT, antes e depois do DDT.
O que um ecologista deverá demonstrar aos senhores Borlaug, aos senhores prémios Nobel da pólvora, aos senhores todos servidores da Engrenagem (fomentadora da miséria e da Abjecção) é que Fome e DDT estão de acordo. O que um ecologista sabe - embora todos lhe cortem a fala quando ele o tenta - , é que o DDT é o último alibi de uma manobra - , "distrair e adiar" - típica da Abjecção para alongar a fome e o subdesenvolvimento. Assim como os terrores da explosão demográfica são outro sofisma, outro falso dilema, outra burla e outro capítulo da romanesca demagogia melodramática para emocionar temperamentos nervosos.
A fome resolve-se de um dia para o outro, sem DDT. E só sem DDT se poderá resolver. A qualidade - para um ecologista - passa a ser condição sine qua non da quantidade. Já que tudo o mais está do outro lado, a nós fica a especialidade da qualidade.
Condição sine qua non para que a fome desapareça (mas não só a fome, todas as carências, doenças, sofrimentos, alienações, degradações, humilhações, aberrações e torturas) é que desapareça a Engrenagem homicida de tecno-burrocratas, com os seus Nobel na lapela, funcionários ou não dos prestigiosos organismos da mentira internacional organizada.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no «Diário do Alentejo», (Beja) , em 12 de Abril de 1973, graças à atenção e hospitalidade do meu querido e inesquecível amigo José António Moedas
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HORIZONTES DA PROSPECTIVA EM 1970
1-2 - domingo, 27 de Abril de 2003 –70-05-09-S&S>
CRÍTICA DA SCIENCE FICTION: DAR VOZ AOS FUTUROS POSSÍVEIS(*)
[(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), coluna «Futuro», 24-10-1970 ]
9-5-1970
A procurar a mais correcta imagem de um mundo futuro, sabre o qual se possa apoiar uma acção prospectiva inteligente, parecia evidente que fosse a ficção científica uma das principais fontes onde ir procurar essa imagem.
No entanto, na literatura de ficção científica muito pouco se pode aprender, pois a maioria dos autores, em vez de imaginarem livremente um futuro possível, ou vários futuros possíveis, limitam-se a prolongar e a levar às últimas consequências o limitado, caseiro e burguês presente que conhecem.
E quanto mais limitado é esse presente - no tempo e no espaço - mais desinteressante se apresenta o futuro imaginado. Quanto mais truncada e chauvinista é a visão da actualidade, menos imaginação revelam as ficções de amanhã.
Quer se trate de novela, quer se trate de ensaios, um escritor que não ousa imaginar o mundo em mutação, pouco ou nada contribui para esclarecer e alargar o horizonte da Prospectiva, dentro e fora da literatura.
É também bastante errado e releva de uma observação superficial, a crença de que a literatura do futuro será a ficção científica. Que, portanto, a mais avançada vanguarda literária de hoje, e o género prospectivo, moderno ou revolucionário por excelência seria esse.
Não há dúvida de que os escritores do futuro terão de entrar em linha de conta com a revolução tecnológica - mas, tal como hoje, serão os aspectos sociais e psicológicos (em suma, humanos) os que lhe irão interessar, a existência dos indivíduos e suas relações, o seu grau de liberdade e de alienação, enfim, a Ética do progresso (e não a técnica), a alma do Fundo.
Frisar a paisagem técnica e científica como faz quase toda a ficção científica, é ainda uma espécie de novo riquismo cultural que a mentalidade desses escritores não soube, na maioria, evitar.
No fundo, o problema continuará a ser o da imaginação e, ligado com este, o da experiência ou experiências humanas que a imaginação traduz. No fundo, o que caracteriza a maior parte da ficção científica é a mesma falta de imaginação que caracteriza a má literatura - qualquer género que ela cultive.
O mais importante, neste como em outros capítulos da literatura dita fantástica (aquela onde a imaginação dos seus criadores, mais livre mas onde, por isso, è posta à prova com mais exigência e insistência) é que um novo posto de observação, uma nova óptica, um novo ângulo de análise, de observar e recriar a realidade se apresente.
Na raiz da literatura prospectiva está a descoberta das vozes que até aqui tinham permanecido sem voz e que a imaginação do escritor (do poeta) reproduz como se sua fosse. Ou, se for ele a viver essas experiências, não precisa de as imaginar, basta relatá-las, basta entrar na corrente confessional do autobiográfico.
Não é por acaso que muitos livros de confissões têm muito mais interesse como obras de imaginação, do que muitas das delirantes visões fantasistas (fantásticas?) de mundos marciano-cósmicos.
Por isso, também, se conclui que a literatura pode e deve ser feita por todos (e assim será no futuro, quando a imaginação estiver finalmente assimilada a experiência humana).
Por isso a Ray Bradbury há quem continue a preferir os diários de Franz Kafka, inegavelmente mais abertos ao futuro e mais revolucionários. Porque imagina formas de humano até então ignoradas. Por isso se apresenta a literatura, também, como uma espécie de arqueologia, como uma peculiar arqueologia: desenterrar o que nunca fora visto, começa a ser objecto de fascinante busca.
A fascinante literatura do futuro está aí: nas mil e uma formas que o "homem, esse infinito" pode assumir, ou já assumiu, embora no limbo do silêncio e do esquecimento. A literatura do futuro se encarregará de "dar à luz" o que no limbo e nas trevas permanecera.
Quando se fala de prospectiva na literatura ou de literatura prospectiva, o que se pretende é falar de imaginação. Aí está a palavra, ainda e sempre: imaginação.
Porque o "homem, esse infinito" não é tão limitado, nem tão pequeno como a literatura de costumes o fez, porque a ficção científica também não deixa de enveredar pelos meamos preconceitos.
Ao eleger os grandes escritores prospectivos, o que iremos citar é os grandes escritores da imaginação, alguns deles catalogados na filosofia, outros na religião, outros na literatura em sentido estrito.
Numa antologia da imaginação ( de escritores da imaginação) incluiria em primeiro lugar aqueles que me parecem ser os grandes visionários da humanidade, ou seja, de humanidades possíveis, de futuríveis, aqueles que me dão experiências humanas para mim inéditas.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), coluna «Futuro», 24-10-1970
CRÍTICA DA SCIENCE FICTION: DAR VOZ AOS FUTUROS POSSÍVEIS(*)
[(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), coluna «Futuro», 24-10-1970 ]
9-5-1970
A procurar a mais correcta imagem de um mundo futuro, sabre o qual se possa apoiar uma acção prospectiva inteligente, parecia evidente que fosse a ficção científica uma das principais fontes onde ir procurar essa imagem.
No entanto, na literatura de ficção científica muito pouco se pode aprender, pois a maioria dos autores, em vez de imaginarem livremente um futuro possível, ou vários futuros possíveis, limitam-se a prolongar e a levar às últimas consequências o limitado, caseiro e burguês presente que conhecem.
E quanto mais limitado é esse presente - no tempo e no espaço - mais desinteressante se apresenta o futuro imaginado. Quanto mais truncada e chauvinista é a visão da actualidade, menos imaginação revelam as ficções de amanhã.
Quer se trate de novela, quer se trate de ensaios, um escritor que não ousa imaginar o mundo em mutação, pouco ou nada contribui para esclarecer e alargar o horizonte da Prospectiva, dentro e fora da literatura.
É também bastante errado e releva de uma observação superficial, a crença de que a literatura do futuro será a ficção científica. Que, portanto, a mais avançada vanguarda literária de hoje, e o género prospectivo, moderno ou revolucionário por excelência seria esse.
Não há dúvida de que os escritores do futuro terão de entrar em linha de conta com a revolução tecnológica - mas, tal como hoje, serão os aspectos sociais e psicológicos (em suma, humanos) os que lhe irão interessar, a existência dos indivíduos e suas relações, o seu grau de liberdade e de alienação, enfim, a Ética do progresso (e não a técnica), a alma do Fundo.
Frisar a paisagem técnica e científica como faz quase toda a ficção científica, é ainda uma espécie de novo riquismo cultural que a mentalidade desses escritores não soube, na maioria, evitar.
No fundo, o problema continuará a ser o da imaginação e, ligado com este, o da experiência ou experiências humanas que a imaginação traduz. No fundo, o que caracteriza a maior parte da ficção científica é a mesma falta de imaginação que caracteriza a má literatura - qualquer género que ela cultive.
O mais importante, neste como em outros capítulos da literatura dita fantástica (aquela onde a imaginação dos seus criadores, mais livre mas onde, por isso, è posta à prova com mais exigência e insistência) é que um novo posto de observação, uma nova óptica, um novo ângulo de análise, de observar e recriar a realidade se apresente.
Na raiz da literatura prospectiva está a descoberta das vozes que até aqui tinham permanecido sem voz e que a imaginação do escritor (do poeta) reproduz como se sua fosse. Ou, se for ele a viver essas experiências, não precisa de as imaginar, basta relatá-las, basta entrar na corrente confessional do autobiográfico.
Não é por acaso que muitos livros de confissões têm muito mais interesse como obras de imaginação, do que muitas das delirantes visões fantasistas (fantásticas?) de mundos marciano-cósmicos.
Por isso, também, se conclui que a literatura pode e deve ser feita por todos (e assim será no futuro, quando a imaginação estiver finalmente assimilada a experiência humana).
Por isso a Ray Bradbury há quem continue a preferir os diários de Franz Kafka, inegavelmente mais abertos ao futuro e mais revolucionários. Porque imagina formas de humano até então ignoradas. Por isso se apresenta a literatura, também, como uma espécie de arqueologia, como uma peculiar arqueologia: desenterrar o que nunca fora visto, começa a ser objecto de fascinante busca.
A fascinante literatura do futuro está aí: nas mil e uma formas que o "homem, esse infinito" pode assumir, ou já assumiu, embora no limbo do silêncio e do esquecimento. A literatura do futuro se encarregará de "dar à luz" o que no limbo e nas trevas permanecera.
Quando se fala de prospectiva na literatura ou de literatura prospectiva, o que se pretende é falar de imaginação. Aí está a palavra, ainda e sempre: imaginação.
Porque o "homem, esse infinito" não é tão limitado, nem tão pequeno como a literatura de costumes o fez, porque a ficção científica também não deixa de enveredar pelos meamos preconceitos.
Ao eleger os grandes escritores prospectivos, o que iremos citar é os grandes escritores da imaginação, alguns deles catalogados na filosofia, outros na religião, outros na literatura em sentido estrito.
Numa antologia da imaginação ( de escritores da imaginação) incluiria em primeiro lugar aqueles que me parecem ser os grandes visionários da humanidade, ou seja, de humanidades possíveis, de futuríveis, aqueles que me dão experiências humanas para mim inéditas.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), coluna «Futuro», 24-10-1970
EDGAR MORIN E O DESAFIO SURREALISTA
1-2 - domingo, 27 de Abril de 2003-70-06-07-S&S
O DESAFIO ESOTÉRICO E A HERANÇA SURREALISTA (1)
[(1) – Prefácio provável ao livro em projecto "A Experiência surrealista", ensaios polémicos - I (1960-1970)]
7/Junho/1970
Se o surrealismo não tivesse aplanado o terreno, ainda hoje constituiria uma perigosa heresia ouvir e aceitar o desafio que das vozes esotéricas chegam até à cultura ocidental, instalada nos seus fracassos, roída nas suas antinomias e contradições, afogada na proliferação de conhecimentos particulares e na análise sem síntese, na hipertrofia da análise e na atrofia da síntese.
Cada um poderá, do surrealismo, retirar o que mais lhe importe, sofrê-1o e vivê-lo com maior ou menor intensidade. Ele não deixa de constituir uma etapa histórica nesse caminho percorrido a medo para a Grande Obra, para o Ponto Central, para a Suprema Unidade, enfim, para uma coexistência entre ocultismo e ciência revelada.
Hoje, o tema do zen-budismo, por exemplo, já constitui matéria de dissertação para respeitáveis autores e revistas de pensamento, A alquimia começa a não ser confundida com primário misticismo. E a arte fantástica descobre-se como filão rejuvenescedor da arte moderna, sem desdenhar as suas filiações cabalísticas e herméticas.
Enfim, após quarenta anos de polémica, o surrealismo conseguiu tornar correntes e até lugares-comuns alguns dos seus dados fundamentais, na época pioneira tão rudemente combatidos ou desprezados. Combatidos principalmente em nome do progressismo.
Torna-se hoje mais fácil aceitá-lo como ponto de convergência de muita coisa que importa dizer e que seja dita. Torna-se hoje possível tomá-lo como encruzilhada da mais recuada (no tempo) linhagem esotérica e das vanguardas que preparam hoje a arte e o pensamento de amanhã. Até das que anunciam uma revolução cultural.
Quando menos se esperava, vimos a contestação de Maio, em França de 1968, sacar do surrealismo muitas palavras de ordem e slogans de cartaz ou parede.
Edgar Morin considera o surrealismo "poético, no soberano sentido da palavra, o movimento que se fundamenta numa noção total e radical do homem. É – afirma - a primeira pré-figuração na história da humanidade, daquilo que poderia ser um movimento antropológico, em relação aos movimentos limitados em seus meios e seus fins, em relação ao humanismo exangue."
Isto dito por Edgar Morin não é dizer pouco.
Não deixa, portanto, o surrealismo de mostrar insólitas virtualidades e até pelas heterodoxias a que deu lugar se enriquece.
O "realismo fantástico" que data de 1960 - Le Matin des Magiciems - veio prolongar (desvirtuar, segundo os ortodoxos renitentes) e provar as mil metamorfoses possíveis da experiência surrealista.
O desafio do "oculto" continua a ser um facto e a heresia fascina cada vez mais os que procuram o rosto total do homem.
Neste livro, pois, a uma perspectiva bastante pessoal do surrealismo - testemunho que só tem o valor de ser uma das interpretações possíveis do surrealismo - acrescenta-se uma documentação relativa ao que, dentro e fora da ortodoxia, perto ou certo foi escrito e feito a pretexto.
Não pretende este livro retirar aos surrealistas de facto o direito de serem eles a fazer, em Portugal, a verdadeira história do movimento, e a se apresentarem como os autênticos e únicos porta-vozes. Mas pareceu-me que um testemunho sobre o surrealismo tal o vi, vivi e conheci, mesmo muito à margem, tem ao menos o mérito de mostrar que até aos mais relapsos, até aos mais incapazes de o merecer e seguir, até aos heterodoxos e heréticos ele teve, tem e terá o condão de fascinar, e marcar de maneira decisiva.
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(1) - Prefácio provável ao livro em projecto "A Experiência surrealista", ensaios polémicos - I (1960-1970)
O DESAFIO ESOTÉRICO E A HERANÇA SURREALISTA (1)
[(1) – Prefácio provável ao livro em projecto "A Experiência surrealista", ensaios polémicos - I (1960-1970)]
7/Junho/1970
Se o surrealismo não tivesse aplanado o terreno, ainda hoje constituiria uma perigosa heresia ouvir e aceitar o desafio que das vozes esotéricas chegam até à cultura ocidental, instalada nos seus fracassos, roída nas suas antinomias e contradições, afogada na proliferação de conhecimentos particulares e na análise sem síntese, na hipertrofia da análise e na atrofia da síntese.
Cada um poderá, do surrealismo, retirar o que mais lhe importe, sofrê-1o e vivê-lo com maior ou menor intensidade. Ele não deixa de constituir uma etapa histórica nesse caminho percorrido a medo para a Grande Obra, para o Ponto Central, para a Suprema Unidade, enfim, para uma coexistência entre ocultismo e ciência revelada.
Hoje, o tema do zen-budismo, por exemplo, já constitui matéria de dissertação para respeitáveis autores e revistas de pensamento, A alquimia começa a não ser confundida com primário misticismo. E a arte fantástica descobre-se como filão rejuvenescedor da arte moderna, sem desdenhar as suas filiações cabalísticas e herméticas.
Enfim, após quarenta anos de polémica, o surrealismo conseguiu tornar correntes e até lugares-comuns alguns dos seus dados fundamentais, na época pioneira tão rudemente combatidos ou desprezados. Combatidos principalmente em nome do progressismo.
Torna-se hoje mais fácil aceitá-lo como ponto de convergência de muita coisa que importa dizer e que seja dita. Torna-se hoje possível tomá-lo como encruzilhada da mais recuada (no tempo) linhagem esotérica e das vanguardas que preparam hoje a arte e o pensamento de amanhã. Até das que anunciam uma revolução cultural.
Quando menos se esperava, vimos a contestação de Maio, em França de 1968, sacar do surrealismo muitas palavras de ordem e slogans de cartaz ou parede.
Edgar Morin considera o surrealismo "poético, no soberano sentido da palavra, o movimento que se fundamenta numa noção total e radical do homem. É – afirma - a primeira pré-figuração na história da humanidade, daquilo que poderia ser um movimento antropológico, em relação aos movimentos limitados em seus meios e seus fins, em relação ao humanismo exangue."
Isto dito por Edgar Morin não é dizer pouco.
Não deixa, portanto, o surrealismo de mostrar insólitas virtualidades e até pelas heterodoxias a que deu lugar se enriquece.
O "realismo fantástico" que data de 1960 - Le Matin des Magiciems - veio prolongar (desvirtuar, segundo os ortodoxos renitentes) e provar as mil metamorfoses possíveis da experiência surrealista.
O desafio do "oculto" continua a ser um facto e a heresia fascina cada vez mais os que procuram o rosto total do homem.
Neste livro, pois, a uma perspectiva bastante pessoal do surrealismo - testemunho que só tem o valor de ser uma das interpretações possíveis do surrealismo - acrescenta-se uma documentação relativa ao que, dentro e fora da ortodoxia, perto ou certo foi escrito e feito a pretexto.
Não pretende este livro retirar aos surrealistas de facto o direito de serem eles a fazer, em Portugal, a verdadeira história do movimento, e a se apresentarem como os autênticos e únicos porta-vozes. Mas pareceu-me que um testemunho sobre o surrealismo tal o vi, vivi e conheci, mesmo muito à margem, tem ao menos o mérito de mostrar que até aos mais relapsos, até aos mais incapazes de o merecer e seguir, até aos heterodoxos e heréticos ele teve, tem e terá o condão de fascinar, e marcar de maneira decisiva.
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(1) - Prefácio provável ao livro em projecto "A Experiência surrealista", ensaios polémicos - I (1960-1970)
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JEAN-LOUIS BÉDOUIN: 20 ANOS DE SURREALISMO
1-2 - domingo, 27 de Abril de 2003 – 64-11-13-S&S>
O SURREALISMO EM PORTUGAL (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no jornal «República», (Lisboa) , 13-11-1964
O livro apareceu nas edições Denoel, de Paris, em 1961 e tinha por título "Vingt Ans de Surréalisme" (1939-1959) .
Autor: Jean-Louis Bédouin.
O capitulo IX era dedicado a "O Surrealismo no Mundo" e na página 109 falava-se de Portugal. Aí se diz que também cá houve surrealismo mas, entre os nomes citados, apenas brilha o de José Augusto França como promotor principal das actividades surrealistas no país.
Dos possíveis ou únicas surrealistas de facto - António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos - nem o nome nem o cheiro. E também nem o nome nem o cheiro de outros que, sem serem surrealistas ou surrealizantes (mas vindos do surrealismo ou indo para o surrealismo) restaram e restam irredutíveis à mediocridade que submergiu a chamada poesia moderna entre nós, academicismo de que José Augusto França representou e representa um dos mais sólidos pilares.
Tudo leva a crer que Bédouin foi iludido na sua presumível boa fé.
Admite-se que não pudesse ou quisesse dedicar ao assunto mais espaço das 325 páginas do seu livro; admite-se que a documentação disponível não fosse abundante: admitir-se-iam até inexactidões ou lacunas; e, atendendo à extensão que o movimento surrealista ganhou por todo o mundo, admite-se ainda que nem sempre pudesse informar-se, com minúcia, do que foi o surrealismo fora da pais francês.
De lamentar é que as informações nem sempre tenham ido pela via mais segura e a pessoa consultada não tenha sido a mais idónea ou menos imparcial (honesta). O porta-voz encarregado de bichanar a Jean-Louis Bédouin o conto (do vigário) do que foi o surrealismo em Portugal, trai-se no entanto e aliás pelo excessivo, evidente e deselegante parcialismo com que o faz. Eficaz, sim senhor, mas imprópria maneira de auto-propaganda para estrangeiro e França verem.
É certo que o processo conjunto de segregação desagregação, usual no grupo surrealista francês, teria também de suceder aqui. E sucedeu. Mas a confusão foi maior, porque mais confusa começou par ser também a base do movimento, o ponto de onde partiu.
Se nunca houve uma definição prévia, exaustiva, intelectual e minuciosamente clara a que se pudesse chamar as "teses ou fundamentas ou dados da surrealismo em Portugal", também se não podia depois, convictamente, fundamentar purgas e excomunhões. Até porque nunca se soube bem quem tinha autoridade - adquirida, conquistada, conferida para proceder a elas.
Mas organizados ou não em grupos, creio que deveriam ter interessado ao historiador Jean-Louis Bédouin os que, fora ou dentro, segregados ou por segregar, se mantiveram, através dos surtos colectivos ou do "behaviour" individual, mais perto dos postulados do surrealismo francês.
Referir apenas os grupos que expressamente (e quase sempre abusivamente) usaram letreiro de "surrealistas", dá (como de facto deu no livro "Vinte Anos de Surrealismo") em resultado lembrar nomes que nunca o foram (o que logo ficou visível, em França, meses ou anos depois das primeiras desavenças), outros que deixaram de o ser e outros que ficaram assim-assim-pouco-mais-ou-menos na inércia do empurrão que apanharam. O recurso a letreiros facilita o trabalho do cronista mas falsifica-o. Mais difícil mas mais certo é indagar de quem foi. E não quem diz que é, que foi ou que vai ser daqui a bocadinho.
Acredita-se que a boa fé de Bédouin tivesse sido iludida e disso, mais do que lastimar-se, devem os bons surrealistas portugueses culpar-se por não ter havido nunca
1º) uma base teórica ou manifesto, de tipo diferente da "manifesto poético" de António Maria Lisboa;
2º) Uma base em que “incarnasse”a teoria, um núcleo ou grupo insolvente;
3º) Uma historiação ou simples balanço das actividades surrealistas, surrealizantes, proto, cripto ou pseudo-surrealistas, sem esquecer a linha de fronteira marcada pelos ataques ao surrealismo par parte dos não-surrealistas e anti-surrealistas confessos (no fim e no fundo, apenas ignorantes bem aventurados do que fosse surrealismo).
Injusto e injustificado é que na referida resenha o sr. Bédouin exclua os nomes de António Maria Lisboa e Mário Cesariny, que inclua nomes já declarados (auto-declarados) exclusos, e que dê, em vez de um retrato decente do pouco surrealismo que aqui conseguiu sobreviver, este retrato de família estilo álbum pessoal, que se pode ler e dar a ler às visitas mas impróprio para pôr em público e apenas para mandar de... França para França.
---
(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no jornal «República», (Lisboa) , 13-11-1964
O SURREALISMO EM PORTUGAL (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no jornal «República», (Lisboa) , 13-11-1964
O livro apareceu nas edições Denoel, de Paris, em 1961 e tinha por título "Vingt Ans de Surréalisme" (1939-1959) .
Autor: Jean-Louis Bédouin.
O capitulo IX era dedicado a "O Surrealismo no Mundo" e na página 109 falava-se de Portugal. Aí se diz que também cá houve surrealismo mas, entre os nomes citados, apenas brilha o de José Augusto França como promotor principal das actividades surrealistas no país.
Dos possíveis ou únicas surrealistas de facto - António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos - nem o nome nem o cheiro. E também nem o nome nem o cheiro de outros que, sem serem surrealistas ou surrealizantes (mas vindos do surrealismo ou indo para o surrealismo) restaram e restam irredutíveis à mediocridade que submergiu a chamada poesia moderna entre nós, academicismo de que José Augusto França representou e representa um dos mais sólidos pilares.
Tudo leva a crer que Bédouin foi iludido na sua presumível boa fé.
Admite-se que não pudesse ou quisesse dedicar ao assunto mais espaço das 325 páginas do seu livro; admite-se que a documentação disponível não fosse abundante: admitir-se-iam até inexactidões ou lacunas; e, atendendo à extensão que o movimento surrealista ganhou por todo o mundo, admite-se ainda que nem sempre pudesse informar-se, com minúcia, do que foi o surrealismo fora da pais francês.
De lamentar é que as informações nem sempre tenham ido pela via mais segura e a pessoa consultada não tenha sido a mais idónea ou menos imparcial (honesta). O porta-voz encarregado de bichanar a Jean-Louis Bédouin o conto (do vigário) do que foi o surrealismo em Portugal, trai-se no entanto e aliás pelo excessivo, evidente e deselegante parcialismo com que o faz. Eficaz, sim senhor, mas imprópria maneira de auto-propaganda para estrangeiro e França verem.
É certo que o processo conjunto de segregação desagregação, usual no grupo surrealista francês, teria também de suceder aqui. E sucedeu. Mas a confusão foi maior, porque mais confusa começou par ser também a base do movimento, o ponto de onde partiu.
Se nunca houve uma definição prévia, exaustiva, intelectual e minuciosamente clara a que se pudesse chamar as "teses ou fundamentas ou dados da surrealismo em Portugal", também se não podia depois, convictamente, fundamentar purgas e excomunhões. Até porque nunca se soube bem quem tinha autoridade - adquirida, conquistada, conferida para proceder a elas.
Mas organizados ou não em grupos, creio que deveriam ter interessado ao historiador Jean-Louis Bédouin os que, fora ou dentro, segregados ou por segregar, se mantiveram, através dos surtos colectivos ou do "behaviour" individual, mais perto dos postulados do surrealismo francês.
Referir apenas os grupos que expressamente (e quase sempre abusivamente) usaram letreiro de "surrealistas", dá (como de facto deu no livro "Vinte Anos de Surrealismo") em resultado lembrar nomes que nunca o foram (o que logo ficou visível, em França, meses ou anos depois das primeiras desavenças), outros que deixaram de o ser e outros que ficaram assim-assim-pouco-mais-ou-menos na inércia do empurrão que apanharam. O recurso a letreiros facilita o trabalho do cronista mas falsifica-o. Mais difícil mas mais certo é indagar de quem foi. E não quem diz que é, que foi ou que vai ser daqui a bocadinho.
Acredita-se que a boa fé de Bédouin tivesse sido iludida e disso, mais do que lastimar-se, devem os bons surrealistas portugueses culpar-se por não ter havido nunca
1º) uma base teórica ou manifesto, de tipo diferente da "manifesto poético" de António Maria Lisboa;
2º) Uma base em que “incarnasse”a teoria, um núcleo ou grupo insolvente;
3º) Uma historiação ou simples balanço das actividades surrealistas, surrealizantes, proto, cripto ou pseudo-surrealistas, sem esquecer a linha de fronteira marcada pelos ataques ao surrealismo par parte dos não-surrealistas e anti-surrealistas confessos (no fim e no fundo, apenas ignorantes bem aventurados do que fosse surrealismo).
Injusto e injustificado é que na referida resenha o sr. Bédouin exclua os nomes de António Maria Lisboa e Mário Cesariny, que inclua nomes já declarados (auto-declarados) exclusos, e que dê, em vez de um retrato decente do pouco surrealismo que aqui conseguiu sobreviver, este retrato de família estilo álbum pessoal, que se pode ler e dar a ler às visitas mas impróprio para pôr em público e apenas para mandar de... França para França.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no jornal «República», (Lisboa) , 13-11-1964
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surrealismo e surrealistas
DO ESOTÉRICO AO EXOTÉRICO: A AMBIGUIDADE SURREALISTA
1-2 -63-03-16-S&S> domingo, 27 de Abril de 2003-novo
A APOSTA EXOTÉRICA E A APOSTA ESOTÉRICA: A AMBIGUIDADE SURREALISTA QUE ACEITA AS DUAS
O PITAGORISMO PARA EXEMPLO DESTA AMBIGUIDADE
16-3-1963 (inédito)
A ambiguidade do surrealismo e a desconfiança sistemática com que continua a ser recebido pelos homens inteligentes, explicam-se por ser o surrealismo uma tentativa (a única, nos tempos históricos) de colocar, frente a frente, reconhecendo a validade de ambas, as duas correntes ou orientações do pensamento; a que se designaria de exotérica e a que se diria esotérica.
O surrealismo não defende exclusivamente o esotérico contra o exotérico. Aposta num e noutro, parecem-lhe duas soluções ou saídas para o homem; mas guarda-se o direito de criticar o legada exotérico (humanista), da mesma maneira que os hipertrofiados representantes deste têm, não criticado como seria de esperar de uma posição inteligente de homens inteligentes, mas hostilizado, deturpado ou pura e simplesmente ignorado o legado esotérico.
Por isso a face polémica do surrealismo teria de acentuar a implacabilidade da crítica aos conceitos e preconceitos exotéricos e aos humanismos neles baseados.
Era necessário denunciar muita fraude na pretensa intocabilidade racionalista. Seria necessário denunciar o dogmatismo da razão e muitas das suas intrínsecas contradições. E também a impossibilidade de, só por si, conduzir o homem ao homem.
Assim o fez e continua fazendo o surrealismo. Não para dar como radicalmente improcedente a hipótese ou aposta racionalista-humanista-exotérica, mas para acostumar os homens inteligentes a olhá-la não como única saída mas como termo de uma alternativa ou (talvez melhor) como termo complementar de outro termo a ter em vista e a levar em consideração: o esotérico.
Não se pretende o regresso a nenhuma barbárie antes do pensamento lógico e da ciência. Vivemos num mundo onde, queiramos ou não, a ciência tem direitos e poderes inalienáveis. Mas – dizem os surrealistas – queremos a coexistência pacífica desse e do outro mundo, milenariamente divorciado e obliterado, por culpa do dogmatismo racionalista.
Queremos o esotérico, em absoluta igualdade de direitos com o exotérico, e enquanto hipótese, aposta ou saída possíveis do homem. O homem surrealista não está, afinal, contra todas as tradições mas procura as fontes e origens de uma tradição em que ciência e poesia, profano e sagrado, exotérico e esotérico não se guerreiem mas antes se completem.
O pitagorismo, é um dos pontos mais curiosos a que pode remeter-se essa tradição, (Paracelso, Mesmer e Gurdjieff podiam ser outros três pontos, indicados ao acaso) tradição que o surrealista reclama e valoriza.
Pouco ou nada se sabe de uma tradição esotérica, já pela própria natureza do ensino hermético, já pela hostilidade a que sempre esteve sujeita por parte de universidades, igrejas e estados.
As práticas mágicas e ocultistas foram sistematicamente perseguidas e sabotadas por fanáticos da fé, por fanáticos da política e por fanáticos da ciência.
É justo que uma violenta animosidade se mantenha contra os detentores de qualquer desses poderes e é incrível que o caminho de reabilitação da corrente esotérica seja penoso, atribulado, forçosamente polémico.
RESUMINDO E CONCLUINDO:
em última análise e se bem compreendido (não apenas com boa inteligência mas também de boa fé) o esotérico não deseja expulsar (embora às vezes pareça que sim) o exotérico mas coexistir pacificamente com ele, enquanto o exotérico quis, quer e parece continuar querendo o condomínio exclusivo dos seus conceitos e preconceitos - sabotando, sonegando, destruindo todas as tentativas de reabilitar a tradição esotérica; posto o que o surrealista é forçada a usar uma atitude polémica e até vindicativa, sem que pretenda com isso o domínio do mundo em seu exclusivo proveito, riem a exclusão do legado, hipótese, saída ou aposta racionalista-humanista-exotérica.
É esta ambiguidade que torna o surrealista, aos olhos do fanático da ciência, da lógica ou da razão (resta saber se a ciência, a lógica e a razão não terão fatalmente de conduzir ao fanatismo e ao dogma - sendo este um dos problemas que o surrealista se preocupa em pôr e mais irrita o anti-surrealista), um monstro bifronte.
Mas quem garante a um e a outro que o homem não seja esse monstro 'bifronte” e que para o homem encontrar o homem não seja necessária encontrar-se, primeiro em imagem, nesse monstro de duas cabeças que para o monstro só cabeça (o lógico, o cientista, o filósofo) tão assustador parece?...
A APOSTA EXOTÉRICA E A APOSTA ESOTÉRICA: A AMBIGUIDADE SURREALISTA QUE ACEITA AS DUAS
O PITAGORISMO PARA EXEMPLO DESTA AMBIGUIDADE
16-3-1963 (inédito)
A ambiguidade do surrealismo e a desconfiança sistemática com que continua a ser recebido pelos homens inteligentes, explicam-se por ser o surrealismo uma tentativa (a única, nos tempos históricos) de colocar, frente a frente, reconhecendo a validade de ambas, as duas correntes ou orientações do pensamento; a que se designaria de exotérica e a que se diria esotérica.
O surrealismo não defende exclusivamente o esotérico contra o exotérico. Aposta num e noutro, parecem-lhe duas soluções ou saídas para o homem; mas guarda-se o direito de criticar o legada exotérico (humanista), da mesma maneira que os hipertrofiados representantes deste têm, não criticado como seria de esperar de uma posição inteligente de homens inteligentes, mas hostilizado, deturpado ou pura e simplesmente ignorado o legado esotérico.
Por isso a face polémica do surrealismo teria de acentuar a implacabilidade da crítica aos conceitos e preconceitos exotéricos e aos humanismos neles baseados.
Era necessário denunciar muita fraude na pretensa intocabilidade racionalista. Seria necessário denunciar o dogmatismo da razão e muitas das suas intrínsecas contradições. E também a impossibilidade de, só por si, conduzir o homem ao homem.
Assim o fez e continua fazendo o surrealismo. Não para dar como radicalmente improcedente a hipótese ou aposta racionalista-humanista-exotérica, mas para acostumar os homens inteligentes a olhá-la não como única saída mas como termo de uma alternativa ou (talvez melhor) como termo complementar de outro termo a ter em vista e a levar em consideração: o esotérico.
Não se pretende o regresso a nenhuma barbárie antes do pensamento lógico e da ciência. Vivemos num mundo onde, queiramos ou não, a ciência tem direitos e poderes inalienáveis. Mas – dizem os surrealistas – queremos a coexistência pacífica desse e do outro mundo, milenariamente divorciado e obliterado, por culpa do dogmatismo racionalista.
Queremos o esotérico, em absoluta igualdade de direitos com o exotérico, e enquanto hipótese, aposta ou saída possíveis do homem. O homem surrealista não está, afinal, contra todas as tradições mas procura as fontes e origens de uma tradição em que ciência e poesia, profano e sagrado, exotérico e esotérico não se guerreiem mas antes se completem.
O pitagorismo, é um dos pontos mais curiosos a que pode remeter-se essa tradição, (Paracelso, Mesmer e Gurdjieff podiam ser outros três pontos, indicados ao acaso) tradição que o surrealista reclama e valoriza.
Pouco ou nada se sabe de uma tradição esotérica, já pela própria natureza do ensino hermético, já pela hostilidade a que sempre esteve sujeita por parte de universidades, igrejas e estados.
As práticas mágicas e ocultistas foram sistematicamente perseguidas e sabotadas por fanáticos da fé, por fanáticos da política e por fanáticos da ciência.
É justo que uma violenta animosidade se mantenha contra os detentores de qualquer desses poderes e é incrível que o caminho de reabilitação da corrente esotérica seja penoso, atribulado, forçosamente polémico.
RESUMINDO E CONCLUINDO:
em última análise e se bem compreendido (não apenas com boa inteligência mas também de boa fé) o esotérico não deseja expulsar (embora às vezes pareça que sim) o exotérico mas coexistir pacificamente com ele, enquanto o exotérico quis, quer e parece continuar querendo o condomínio exclusivo dos seus conceitos e preconceitos - sabotando, sonegando, destruindo todas as tentativas de reabilitar a tradição esotérica; posto o que o surrealista é forçada a usar uma atitude polémica e até vindicativa, sem que pretenda com isso o domínio do mundo em seu exclusivo proveito, riem a exclusão do legado, hipótese, saída ou aposta racionalista-humanista-exotérica.
É esta ambiguidade que torna o surrealista, aos olhos do fanático da ciência, da lógica ou da razão (resta saber se a ciência, a lógica e a razão não terão fatalmente de conduzir ao fanatismo e ao dogma - sendo este um dos problemas que o surrealista se preocupa em pôr e mais irrita o anti-surrealista), um monstro bifronte.
Mas quem garante a um e a outro que o homem não seja esse monstro 'bifronte” e que para o homem encontrar o homem não seja necessária encontrar-se, primeiro em imagem, nesse monstro de duas cabeças que para o monstro só cabeça (o lógico, o cientista, o filósofo) tão assustador parece?...
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