sexta-feira, 20 de julho de 2012

AFONSO CAUTELA RESPONDE A FERNANDO BARROS

polémica-63- scan domingo, 23 de junho de 2002

FILOSOFIA E SURREALISMO:
RESPOSTA DE AFONSO CAUTELA A FERNANDO BARROS (*)

(*)Este texto de Afonso Cautela respondia a um artigo de Fernando Barros, aparecido na 1ª página do semanário «Jornal de Letras e Artes», 6 de Novembro de 1963, intitulado «A Filosofia não é um Realismo»


De Afonso Cautela recebemos, com o pedido de publicação, o seguinte esclarecimento, a propósito de um artigo de Fernando Barros:

Ajudado pelo que li dos filósofos mais ou menos surrealistas e dos surrealistas mais ou menos filósofos, tive o atrevimento de publicar, neste «Jornal de Letras e Artes», um comentário em torno de filosofia e surrealismo, comentário que foi honrado com outro de Fernando Barros, neste mesmo jornal, dia 6 de Novembro último.
Pelo que pude compreender das suas palavras, de imensa profundidade especulativa e, por isso, um tanto confusas para «a quase total incapacidade especulativa de A. C.» deduzo que será bastante difícil travar um diálogo proveitoso. F. B. e A. C. não divergem apenas na maneira de ver (de pensar), o que seria óptimo e poderia dar lugar à útil controvérsia; divergem também, e isso é que é pior, na maneira de ser, no carácter.
Pelo que pude concluir das suas linhas, parece-me que:
a) enquanto F. B. se preocupa, com ar de mestre, em dar lições - A. C. nunca se preocupou nem se preocupará em dar lições a ninguém e quando muito limita-se a recebê-las, ainda quando as não pediu e não tem outro remédio;
enquanto F. B. se ocupa a apontar inexactidões» (que não aponta) e «erros» (que vai apontando ao longo de seis colunas e tal) da minha prosa, e pretende – textualmente - «destruir, ainda que sumariamente, determinadas afirmações» de A. C. - digo-lhe que, mesmo sumariamente, não me senti nada destruído e que jamais me ocuparia de apontar erros e inexactidões nos textos dos outros, muito menos no artigo ou artigos de F. B., onde inexactidões e erros é o que não há-de faltar também;
enquanto F. B. salienta a «quase total incapacidade especulativa» de A. C., pergunto a F. B, duas coisas e peço-lhe outras duas; pergunto a F. B.:
- ou acha que vale a pena perder tempo e artigos com este seu desconhecido admirador (e aluno involuntário), e nesse caso porque não pergunta muito concretamente, muito claramente o que quer, para eu concreta e claramente lhe responder ?
- ou para avisar os leitores das inexactidões, erros, desleituras, faltas de autoridade, gralhas etc., do A. C., por que malbarata assim o tempo e tanta capacidade especulativa ?
Agora as duas coisas que peço a F. B.:
- que para a próxima vez a sua tão ampla capacidade especulativa ande a par da sua capacidade apreensiva da incapacidade dos outros e da sua capacidade expressiva;
-que para a próxima, a sua ampla bossa filosófica se revela não só em profundidade mas também em claridade, que é virtude sobejamente cartesiana, ergo filosófica.
Satisfeitas estas condições mínimas, eu preferia, se for caso disso, que gastássemos tempo e colunas, não a mostrar os erros um do outro mas precisamente a errar, no sentido filosófico da palavra errar, a errar na procura do caminho ou caminhos para a verdade, convidando os leitores que quisessem fazer-nos companhia a errar também, por aqui, a dialogar, virtudes altamente filosóficas estas duas - errar e dialogar - que convém ir praticando conforme é higiénico, salutar, democrático. Aliás só por isso - para errar e dialogar - me permiti anteontem algumas irreverências à filosofia e me permito agora, em resposta a F. B., algumas irreverências mais.

b) enquanto, por motivo da alínea anterior, F. B. empunha o sacramental ponteiro do professor que ensina e a palmatória do juiz que castiga, - A. C., embora não lhe tivesse encomendado o serviço nem o sermão, humildemente ouve a lição mas humildemente se recusa às palmatoadas; e ouve a lição, pois é tudo quanto pode fazer, numa emergência assim, o aprendiz que sempre fui, sou e serei, não só da filosofia mas de coisas bem mais gratas que filosofia e filósofos (ainda por cima e às vezes, caturras).

c) enquanto, ainda por força das alíneas transactas, F. B. se auto-confere a máxima autoridade em matéria filosófica, autoridade que não me interessa refutar, confessa-se A. C. o ignorante que nunca deixou de se confessar nas já algumas ocasiões em que outros mestres, de cátedra fixa ou ambulatória, lhe saíram ao caminho, sempre e sempre com o ponteiro da autoridade nas unhas, a palmatória do castigo em riste, o fel no coração.

d) quanto a confusões, peço licença ao mestre mas F. B. é que ameaça lançar tudo na confusão:
1º) confundindo o meu artigo e voltando-o do avesso, artigo onde, se nem tudo era claro, F. B. conseguiu pôr tudo ainda mais escuro;
2º) contribuindo com a sua desmedida capacidade especulativa e sua terminologia filosófica de especialista, para deixar a zero os que ainda não estavam e abaixo de zero os que já estavam.
Tenha paciência F. B. mas olhe que até para confundir é preciso talento.

e) Enquanto F. B., por tudo isto e concluindo, mostra que a sua maneira de ser é em tudo antípoda da minha, - A. C. propõe:
1.°) que F. B. mande imprimir fotocópias, muitas fotocópias do seu diploma em catedrático de filosofia, diploma que desde logo lhe conferirá a autoridade de magister dixit e o poder de examinador infalível que em tão boa ou má hora veio malbaratar comigo, (nas colunas de um jornal que é para ser lido por todos e nem só por catedráticos), fotocópias ou provas que logo providenciará para que sejam divulgadas em todos os órgãos de informação do país;
2º) que só depois disto valerá a pena encetar um diálogo entre os modos de ver e pensar de F. B. e A. C., já que tão incompatíveis se me afiguram (e indialogáveis) os modos de ser.

II

Agora as divergências que me parece haver, quanto a modos de ver, entre F. B. e A. C.:

f) Enquanto F. B., directa ou indirectamente, mostra tomar partido pela filosofia em geral e por uma sacola filosófica em particular - A. C., que não tem partido, nem clube, nem sacola, pede-lhe que concretize melhor o partido, clube ou escola filosófica em que milita.
Esclareço entretanto que o meu partido não é nem seria jamais o dos sobresuficientes, venham eles em nome da filosofia - que é a forma mais salgada de sobresuficiência - ou em nome do que vierem.

g) Enquanto F. B., em vez de apresentar o seu conceito de filosofia, se limita a transcrever (de onde!) o que Hegel «supõe» ser filosofia - A. C. dir-lhe-ia (repetir-lhe-ia) o que supõe ser filosofia caso F. B. se dignasse primeiro dizer o que, ele e não o Hegel, supõe que seja. A menos que ele e o Hegel sejam ou pensem o mesmo. Neste caso que o diga.

h) Marginalmente, F. B. parece querer que a filosofia seja uma actividade especializada, uma ciência particular, semelhante à física e à matemática. Pelo menos deixa transparecer isso, quando diz que para falar de filosofia é indispensável uma linguagem técnica e tão especializada como a daquelas ciências.
Enquanto F. B. parece, com isto, perfilhar o conceito de filosofia como ciência e enquanto eu não lhe contesto tal direito se de facto assim é, - A. C. dir-lhe-ia que não é esse nem outro o meu conceito de filosofia. Mas, para lhe dizer qual é, gostaria que primeiro F. B. me esclarecesse do seu. Até porque já o disse no meu artigo e apenas me compete repisar, re-esclarecer o que lá ficou. Quem precisa de concreta e claramente apresentar uns conceito de filosofia, é portanto F. B. que diz tê-lo e não A. C. Dou-lhe a prioridade que lhe pertence.
1) Enquanto F. B. parece não deixar dúvidas de que alinha numa escola filosófica definida, - A. C. uma vez mais declara não ter escola, clube nem partido filosófico, pedindo no entanto a F. B. que explique o dele, que nomeie o dele, que defina o dele, pois é impossível que um filósofo tão às direitas como F. B. não tenha um ismo de estimação: neo-positivismo, neo-hegelianismo, neo-tomismo, marxismo, personalismo, existencialismo qualquer coisa enfim que lhe fique bem e a gente a saber para ficarmos também muito satisfeitos.
Se acaso é pelo neo-positivismo ou pela filosofia como ciência que torce (e ora nos leva a crer que sim, ora nos leva a crer que não), aproveito para lhe dizer que:
1º) um filósofo que assim entende a filosofia, não deve descer a falar com ignorantes de tão pouca capacidade especulativa;
2º) não deve sequer usar a linguagem de toda a gente, que é esta - a das palavras - mas a linguagem adequada: álgebra, logística, ou lá o que é.
E se F. B. me permite uma brevíssima incursão no «moi haissable», ai está, lhe digo, uma coisa que os jovens neo-positivistas meus amigos nunca me souberam explicar e que talvez F. B., que para mestre só lhe falta a cátedra (ou talvez nem), saiba: porque continuam a usar a linguagem das palavras, se a ciência da filosofia (dizem-no eles) tem de usar linguagem de rigor e essa só pode ser a linguagem matemática?
Afinal, quem tinha mais motivos para sentir a própria casa invadida, seria o escritor quando os filósofos se metem a escrever com palavras, pois estas, tenham os filósofos santa paciência, foram, são e hão-de ser sempre o domínio único do escritor. Afinal era o escritor que se devia queixar do filósofo e não, como acontece tão lamuriosa e insistentemente, o filósofo a queixar-se do escritor. Ora bolas para os filósofos.

j) Enquanto F. B. considera que pensar é actividade tão especializada que só os homens devidamente aparelhados (diplomados!) para tal estão por ele autorizados a pensar, - A. C. pensa (ousa pensar, se desta vez, e só por esta vez, F. B. o autoriza a tanto) que o pensamento, na acepção kantiana, por mim citada no outro artigo, de «conhecer por conceitos», não deve nem pode estar condicionado pela autoridade ou autorização de ninguém, venha essa autoridade ou autorização em nome do uma filosofia, de um estado, de um partido, de uma igreja, de uma escola.
Enquanto o critério de F. B, sobre o pensar e a liberdade de pensar se me afigura assim um tanto autoritário (para não dizer pior) - A. C. confessa não perfilhar um tal autoritarismo nem consentir o dos outros quando sobre o pensamento dele se queiram, discricionariamente, exercer; bom ou mau, fraco ou forte que seja esse pensamento e haja ou não haja um polícia F. B. a mandá-lo calar, a mandá-lo dis-pensar.
1) Corolário da anterior, uma coisa há bastante inquietante no discurso de F. B.: censura-me ele o «ter opiniões».
Seja qual for o conceito filosófico de opinião, acaso ter opiniões será, mesmo (repito) do ponto do vista mais estreita e estreitamente filosófico, algo de condenável ou censurável?
Se F. B. acha que sim, - A. C. acha que não. Ter opiniões, desde que a verdade não seja única, ou imposta como única, parece-me um elementar direito do homem, ainda que não venha exarado na deontologia para uso dos bons costumes universitários. Ter ideias, pensamentos, opiniões - mas acaso F. B. nos nega também esse direito? Era só o que faltava...

III

Enunciado, nestes preliminares, o diferendo entre as maneiras de ser e de ver de F. B. e A. C., vejamos o que é necessário, para não alongar muito, deixar ainda expresso de modo a obviar a futuras maiores confusões.
De um ângulo escolar ou escolástico, nada mais fácil do que definir. Definir filosofia ou seja o que for. Definir, para o mestre que ensina e o aluno que decora a lição, é fácil.
Para um espírito livre, porém, definir é o que há de mais difícil, mas começar por reconhecer a dificuldade eis, desde logo, um acto bastante filosófico, suponho eu.
Reconhecer a dificuldade não foi mais nem menos do que fiz no meu artigo. Talvez o fizesse em termos menos convenientes e a partir de postulados equívocos. Admito. Mas dado que se tratava de comentar um texto de Schuster e Legrand, pareceu-me oportuno lembrar o artigo deste último que se intitula, como geralmente os surrealistas sabem, Le Surréalisme est-il une philosophie? Foi este título um ponto de partida (mau ponto de partida, admito) de onde tentei apanhar o fio à meada, bastante empeçada, confesso, do referido folheto. Apenas apontei o que de «função filosófica» (entre aspas) pudesse haver no surrealismo que, organizada ou desorganizada, o pudesse aparentar a uma filosofia ou a um filosofar.
Não falando das inúmeras gralhas que inçaram o artigo (e não quero desculpar a possível obscuridade do que disse com a nuvem de gralhas que o sobrevoou), é bem possível que a intenção de pôr em claro e em ordem o opúsculo editado por Cesariny tivesse resultado malograda.
Mas bem: não peço a F. B. desculpa do malogro, peço apenas que não veja mais nem menos do que lá havia. E o que lá havia, vou resumi-lo no mínimo possível de palavras.
1-Não havia lá, é claro, uma derramada simpatia pela filosofia mais ou menos universitária e arredores, mais ou menos oficial e oficiosa; não havia zelo por nenhuma ontologia ou ideologia; e, mesmo por aquilo que me parece restar com utilidade na filosofia - a sua função de método, de crítica - também não estava obrigado a nenhumas reverências especiais.
Posso agora dizer a F. B. que a filosofia me parece útil unicamente como crítica e depois como método: como análise (pensar, creio eu, aprende-se, não se ensina) e depois como esquema aplicável à acção política. Inspirar, conduzir, planear a acção - eis a função que me parece fundamental na filosofia. Tal função, no entanto, dada como aceite, não vinha ao caso discuti-la porque no meu artigo se punham em causa outras filosofias, outras funções que da filosofia se querem conferir: as ontologias e as ideologias. Contra estas e contra estas o artigo se dirigia.
Particularmente em relação às ontologias, quis eu dizer que o pensamento lógico-filosofia como ciência, única que, como digo, me parece ter alguma utilidade e função - exercido sobre o que escapa ao controle ou organização da lógica, resulta inútil, ridículo, digno de gargalhada e às vezes socialmente perigoso.
Não que me recusasse a pisar terreno «metafísico» mas para pisar esse terreno são necessários meios adequados, meios que apenas posso resumir numa palavra: Poesia, sendo os filósofos com seu quê de poetas e os poetas com seu quê de filósofos (esses que os professores não sabem, aflitos, onde catalogar) os que, na fronteira dos géneros, na fronteira das artes, na fronteira do conhecimento, se me afiguram os espíritos verdadeiramente revolucionários, os tais que vinha à baila tratar, a propósito de um folheto com o título A Filosofia e a Arte Perante o Seu Destino Revolucionário. Quis eu dizer que os espíritos criadores, os que imprimem a marcha revolucionária ao espírito humano, saem dos géneros, das ordens, das ortodoxias, das instituições, embora, como também disse, os historiadores desta e daquela especialidade, ordem, instituição ou ortodoxia os façam figurar nesta e naquela história.
2 - Falar da filosofia e da arte perante o seu destino revolucionário conforme o mote dado pelo folheto em causa, não é preconizar o famoso acto surrealista puro - atirar na rua e ao acaso - quando se trate de pensar o homem que nessa rua passa, as suas relações sociais e os propósitos de transformar as condições materiais dessas relações. Poesia é uma coisa, Política é outra.
A rasteira, aliás, é muito comum em França, lançada principalmente pelos impenitentes inimigos do surrealismo; aqui, e para pasmo dos da casa, a rasteira é utilizada agora por alguém que parece mais amigo do que inimigo do surrealismo.
Não creio, no entanto, que F. B. tivesse usado o expediente por má fé, confiado no olho comum daqui. Não creio. Creio, sim, que ele entendeu ou virá a entender o plano em que unicamente se poderia formular e discutir a pretensa acção revolucionária do surrealismo, ou da filosofia e da arte vistas num conspecto surrealizante: e é esse plano, não o da dialéctica de classes, não o da transformação da mentalidade que antecede, acompanha e se sucede, no tempo, à outra transformação.
O pensamento filosófico ou científico, até onde serve para conduzir, inspirar, planear e dirigir a acção, claro que sim, que terá irrevogavelmente de subordinar-se aos termos de rigor, de clareza, de ciência, de lógica, de positividade que lhe confiram coerência; e terá, sem dúvida, um lugar, um papel, uma função. Quem disse ou poderia dizer o contrário? Não é com delírios e discursos automáticos que se governa um país. Nenhum surrealista, creio eu, por muito fora do juízo lógico que estivesse, quis, quer ou quererá tal coisa. E muito menos eu, que não sou filósofo, nem surrealista, nem político.
Mas então porque se insiste no amálgama? Ou porque, sob a capa da profundidade especulativa, se confundem as coisas tão elementares, que estas, sim, devem ser respeitadas porque dizem respeito a todos e por muita ou pouca bossa especulativa que os sujeitos em controvérsia exibam?
Para os homens comuns, entre os quais me incluo, a maior altitude ou profundidade do voo ou mergulho especulativos importam menos do que a honestidade e clareza com que se deslindem e elementarmente se formulem os pontos elementares que à maioria importam.
Que um especialista venha ensinar um leigo, o leigo agradece a lição, que não pediu, e boa tarde.
Mas que o faça em termos mais acessíveis. Para benefício da musa que tanto ama - a filosofia -que o faça confundindo menos e esclarecendo mais.
Censura-me F. B. a terminologia não técnica. Surrealistas, provavelmente, ter-me-iam censurado falar de surrealismo com tão poucas metáforas.
Mas enfim, porque não foi por encomenda de ninguém - surrealistas e filósofos - que escrevi, escrevo e escreverei, fica F. B. autorizado a não se (pre)ocupar muito (nada) com meus rigores terminológicos, ocupando-se antes em dizer afinal o que pretende e ao que vem. Porque era o que todos, afinal, gostaríamos de saber.

IV

Para não alongar mais esta resposta, nada direi sobre as questões levantadas na alínea c) de F. B. Ficará para outra ocasião, se ocasião houver.
Não posso deixar esquecido, porém, um ponto fundamental, e cujo não esclarecimento poderá dar origem a futuras especulações do especulativo F.
Se F. B. quer saber, sinto-me autorizado a escrever irreverências sobre a filosofia, especialmente enquanto ontologia e ideologia, sem que por isso me considere «a traficar com problemas tão graves como são os do conhecimento e, portanto, os da liberdade». Com os do conhecimento, talvez. Com os da liberdade, não.
Esta sua inferência dos problemas do conhecimento para os da liberdade é que me parece audaciosa. Queira demonstrá-la, p. f.
Que uma atitude mais iconoclasta e menos sisuda ou ortodoxa para com os filósofos e a filosofia seja considerada «traficar com o conhecimento», vá lá, embora a palavra «traficar» me pareça, além de feia, pouco própria na boca de um filósofo que se arroga tantos rigores de nomenclatura.
Mas que isso signifique traficar também com os problemas da liberdade, alto lá! - não me parece uma inferência inevitável. Creio poder conciliar uma posição iconoclasta para filósofos e instituições filosóficas com o amor da liberdade e o máximo respeito por ela. Uma coisa não impede a outra, antes pelo contrário. F. B. até sabe certamente que um filósofo contemporâneo definia filosofia como a actividade iconoclasta por excelência.
Fora da acção política e de qualquer sistema em que a minha responsabilidade social esteja directa e proporcionalmente implicada, claro que sim, que o meu desrespeito pela filosofa que rege esse sistema será o desrespeito à liberdade (condicionada) que esse mesmo sistema proporcionalmente até faculta.
Mas a liberdade de que falam os surrealistas e aquela de que (suponho) falava o folheto de Schuster e Legrand, não é a liberdade dentro de um sistema fechado de relações sociais, ou liberdade impropriamente dita; é, segundo creio, a liberdade propriamente dita que o homem, qualquer homem tem, fora dos circuitos de responsabilidade e liberdade limitadas que são os grupos organizados, hierarquizados e (vá lá) industrializados, de deixar errar o homem que erra, que pensa, que sonha, que escreve, que utopiza, que imagina, até onde o corpo lhe adoeça e os abismos o tentem: e, é claro, até onde não haja algum filósofo F. B. de cacetete na mão.
Não se deve confundir esta liberdade - a da imaginação - com a liberdade no contexto social e político, contexto que é o dos filósofos enquanto membros ou funcionários desse contexto mas que não é o daqueles «filósofos» que, embora a contra-gosto catalogados na história da filosofia, são dela ou de qualquer outra ordem instituída, os conhecidos e sempre punidos hereges. E que só são «filósofos» para os que lá, na filosofia, primeiro os meteram e de lá depois os querem tirar.
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes» (Lisboa), em 4/12/1963

QUANTO MAIS FANTÁSTICO MAIS REAL

planète-9-surrealismo

DO PENSAMENTO LÓGICO AO ANALÓGICO: O SURREALISMO E A REABILITAÇÃO DO FANTÁSTICO(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República» (26/3/1966) e no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) em 7/4/1966


26/3/1966

Fenómeno relativamente moderno (apenas com vinte e tal séculos de existência), específico do pensamento racionalista, das regras lógicas, dos princípios imutáveis da razão, e mais tarde da civilização mecânica ou industrial, o homem cindido ou homem profano não compreende o «fantástico» e as obras que aparecem com o rótulo de «arte fantástica», constituem apenas, na sua maioria, produtos ou subprodutos de uma mentalidade atrofiada, sem inventiva nem poder imaginativo, devendo nós encarar a literatura que se designa de «fantástica», como um resíduo, hoje insignificante, de manifestações muito mais antigas, um dos poucos sinais que restam para avaliar, em certa época da história, as relações do homem com o universo, a sua participação e o seu enquadramento harmónico nas leis da Natureza.
Subjectivo e objectivo, visível e invisível, noite e dia, vigília e sonho, micro e macrocosmos - eis algumas das antinomias que para os homens de certas épocas, lugares e mentalidades não existiam. Assim como não existia o «destino», nome que mais tarde seria dado apenas à ignorância das leis que regem o mundo dos homens em perfeita consonância com o mundo das coisas. Por desconhecerem essas leis, muitos classificam de loucuras tudo quanto foge à lógica comum, esquecendo-se de que rigorosas leis regem a imaginação criadora e rigorosos limites definem o fantástico.
Esquece o homem cindido, que sair da zona onde reinam soberanamente os princípios vectores da razão (identidade, causalidade e contradição), princípios directores do conhecimento científico, nem sempre significa cair no arbitrário puro, no delírio fantasista, no vácuo da irresponsabilidade. Não há dúvida que a linguagem dos símbolos se assemelha muito à linguagem dos loucos mas nem sempre um estado de alienação mental se resolve em obra de arte e nem sempre uma obra de arte «fantástica» resulta de um estado demencial. O único ponto de contacto da arte fantástica com a arte dos loucos, dos primitivos e das crianças, é afinal um ponto negativo: a sua arte, tal como a arte fantástica ou pensamento analógico, não conhece e não obedece à lógica comum dos adultos civilizados considerados normais e mentalmente sãos.
Após muitos séculos de descrença e descrédito que, pretensamente cépticos, apenas acrescentaram a uma superstição outra superstição (à superstição e dogmas da fé, a superstição e dogmas da razão), o fantástico na arte e na literatura viu-se a pouco e pouco reabilitado. Lentamente, muito lentamente, até os mais sisudos e de bom senso (sempre os últimos a ver as sensatas evidências) resolveram levar a sério o «fantástico». Talvez porque os surrealistas o andem a proclamar há quarenta e dois anos. Sabe-se hoje que ao homem nada é impossível e acreditar no fantástico não significa já acreditar em petas e anedotas de bruxa, mas acreditar n' «o homem, esse infinito», de que falam pessoas tão respeitáveis como o senhor Teilhard de Chardin.
Concluíram eles que a realidade hoje é que é fantástica. Comparadas ao que o homem já conseguiu e ainda pode conseguir, na exploração do mundo visível, nada significam já as mais ousadas ficções literárias. Júlio Verne viu-se ultrapassado em menos de um século pela realidade e as fantasias ou antecipações por ele formuladas parecem-nos hoje, de tão ingénuas, quase ridículas. Acreditar no fantástico é, assim, para muito boa gente, acreditar no progresso, na infinita capacidade de progresso do homem e de modo algum preconizar um retrocesso.

«Oh minha alma, não aspires à eternidade mas esgota o campo do possível!».
Este pensamento de Píndaro, que Camus escolheu para epígrafe do seu ensaio sobre O Mito de Sísifo, poderia constituir o lema de quantos perfilham a crença na evolução humana, os que se encontram na vanguarda de um «realismo fantástico» ou «humanismo evolucionário», os «contemporâneos do futuro», os que, parafraseando Novalis, afirmam: quanto mais fantástico mais real. Porque o conhecimento da realidade, conhecimento que caminha através de tantas dificuldadas e tacteios, nunca será completo nem esgotará toda a complexidade do universo sem ir além daquilo que nos dá o conhecimento positivo, científico, experimental. Operação de vanguarda do conhecimento racional, a hipótese ou intuição comanda todas as outras operações da investigação científica. A imaginação estimula e fecunda a inteligência.
Na verdade, há quarenta anos que os surrealistas batalham para conseguir esse objectivo, para de-sabismar o homem do homem, para efectivar um verdadeiro humanismo dialéctico, para reunificar o homem cindido ou dividido, para descobrir o ponto central onde todas as antinomias se fundem. E há quarenta anos também que eles reclamam a autonomia do imaginário, do pensamento analógico relativamente ao pensamento lógico, do simbólico frente ao realista. E há quarenta anos que eles afirmam que surrealidade é apenas e unicamente a realidade total do homem total, a realidade do homem não alienado, do indivíduo religado ao universo e às forças cósmicas, ele próprio uma força da Natureza; não sendo, portanto, possível nem desejável que se exclua do visível o invisível, do possível o impossível, do real o seu lado mais real chamado fantástico.

O FANTÁSTICO SURREALISTA E A ANTECIPAÇÃO ABJECCIONISTA

Embora com alguns pontos de contacto, o “fantástico” e a “antecipação” têm, cada um à sua parte, características próprias que os separam e distinguem. Do “fantástico” à “antecipação” vai uma distância maior do que se supõe, distância que pode ficar definida pela que separa o “surrealismo” e o “realismo fantástico” do “abjeccionismo”.
Enquanto os dois primeiros movimentos participam de uma visão romântica e optimista da história (e do futuro) as antecipações abjeccionistas caracterizam-se fundamentalmente por uma consciência crítica aguda da história e uma denúncia realista dos factos. Sem expansões vitalistas, a antecipação “abjeccionista” desmonta o mecanismo da abjecção que caracteriza as sociedades presentes e próximas futuras.
Nas novelas e novelistas de “antecipação” há implícita uma “filosofia da História” que não tende, regra geral, para o cor-de-rosa. Ao apresentar as sociedades, não como se encontram (o estádio crítico ou de putrefacção em que se encontram) mas num estado paroxístico e definitivamente concentracionário, estas novelas e estes novelistas desempenham uma missão de alarme e aviso com certa função didáctica...
A verdadeira literatura de horror é hoje a de antecipação e não a que se filia nos vampiros domésticos da tradição gótica; esta literatura de antecipação, também rejeita, explicita ou implicitamente, as antecipações optimistas clássicas: Campanella, Platão, Júlio Verne e Tomás More; não se filia sequer em Edgar Poe (que deu origem a um outro tipo de raciocínio romanesco: a novela policiária) mas sim em Franz Kafka, o primeiro grande autor de antecipações abjeccionistas na literatura moderna.
As chamadas “fícções científicas”, que se caracterizam por uma inconsciência crítica da Abjecção e portanto por uma doce visão do futuro, entroncam directamente no Júlio Verne e na tradição feérica que ele renovou.
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República» (26/3/1966) e no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) em 7/4/1966



O SURREALISMO DE LOUIS PAUWELS


pedagogia da imaginação-ac-cf>sexta-feira, 20 de Julho de 2012

O SURREALISMO DE LOUIS PAUWELS: PEDAGOGIA DA IMAGINAÇÃO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 29. 11.1972, no suplemento«Literatura e Arte», coordenado por Maria Teresa Horta

Quando os postulados e propósitos iniciais do surrealismo começaram a sofrer um natural processo deteriorativo por parte de epígonos e exploradores do sucesso, não nos devemos admirar que se procurassem novas vias para o exercício da imaginação — ainda que essas vias se chamassem realismo fantástico ou prospectiva.
Aceitando o desafio da tecnologia, houve alguns autores empenhados em demonstrar, a partir dela, duas coisas:
que a inteligência especulativa e calculatriz nunca substituiria a imaginação;
que, antes pelo contrário, a tecnologia dos computadores não só abria uma esperança à actividade mental, deixando-a livre das tarefas subservientes do cálculo e da informação para a projectar em full-time na criação poética;
como, ela própria, permitia novas mil combinações capazes de servir (ao lado do non-sense, do cadáver esquisito, do automatismo, etc) o pensamento analógico ou poético e um aparelho de controlo capaz de tornar a crítica à obra muito mais precisa, muito mais rigorosa, afastando, portanto, do templo os vendilhões.
Quer dizer, a tecnologia dos computadores abria uma dupla esperança, ao contrário do que os pessimistas profetizavam, supondo que chegara a época do "robô", do homem-máquina, do sujeito totalmente alienado à mecânica, sem margem para imaginar outra coisa que não fosse o círculo vicioso e tautológico das suas alienações.
A tecnologia dos computadores dava à imaginação, finalmente, o estatuto de actividade soberana e autónoma, especificamente humana, a única insubstituível (por enquanto) por qualquer máquina. Aquilo que se pressentia há séculos era agora materialmente comprovado.

Nesta reabilitação e neste esclarecimento, é de salientar o papel que a obra de Louis Pauwels e Jacques Bergier — publicada em 1960 com o título Le Matin des Magiciens —, discutida embora quer por surrealistas atrasados quer por racionalistas míopes, veio desempenhar. Incluir no processo reabilitatório da imaginação, a ciência e sua técnica (um pouco ao contrário do surrealismo que não quis aceitar esse desafio, que o preferiu ignorar e que acabaria, portanto, por se deixar ultrapassar por ele) o realismo de Louis Pauwels, que se confessa grandemente subsidiário do surrealismo (como não podia deixar de ser, se era a imaginação que estava em jogo) aceita da ciência e da técnica o seu desafio, querendo ver depois onde, servindo-se dela, a podia superar, a podia dis-pensar.
Quaisquer que sejam as objecções de ordem prática, de ordem política que se coloquem a movimentos como o realismo fantástico e a prospectiva (nem todas as objecções são tão pertinentes e justas como a ignorância dos lados às vezes leva a supor), de um único ponto de vista essas duas correntes (assim como o surrealismo e sua pertinaz intervenção) nos podiam, nos deviam interessar: numa sociedade que pretende submergir tudo e todos na vácua mediocridade do senso comum, ou de uma estreita racionalidade de onde o melhor do homem é expulso e escorraçado, ou de um dogmatismo esclerosante, — essas duas correntes são propostas, desafios, hipóteses da imaginação à imaginação, que em nada perturbam outras hipóteses, que em nada impedem uma acção prática, que em nada colidem com propósitos de mudar o mundo, de transformar a vida. Antes pelo contrário. Nunca a imaginação contrariou essa mudança, antes é ela que, sempre, a visiona, antecipa, pressente e torna urgente.
Desta perspectiva, nenhum autor ou corrente me parecem desprezáveis, desde que e até ao momento em que se verifique a sua total impossibilidade de estimular o pensamento imaginativo e a heresia poética. Teilhard pode ser tão fascinante e necessário como Marx, porque a leitura de qualquer deles, à parte as aplicações concretas e o aproveitamento oportunista do seu pensamento, é fonte do nosso próprio movimento mental, tenha ele ou não oportunidade de se projectar e aplicar na transformação concreta do mundo e da história. A pedagogia da imaginação, em suma, não me parece prejudicial em nenhuma circunstância.
Nenhum pensamento livre é pernicioso, se o encararmos como estímulo e sequência de uma mesma aventura humana chamada Imaginação — qualidade vectorial que, por enquanto, distingue a espécie humana não só das outras espécies animais como das máquinas por ele — homem — construídas. Enquanto não houver animal ou máquina capaz de imaginar, tal tese parece prestável como rumo de trabalho e útil a quem tenha o ofício de existir, quer dizer, imaginar.
-----

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 29. 11.1972, no suplemento«Literatura e Arte», coordenado por Maria Teresa Horta

SURREALISTAS E NEO-REALISTAS


1-3 -63-03-00-S&S> - quarta-feira, 30 de Abril de 2003-

SURREALISTAS E NEO-REALISTAS

AS DRAMATIS PERSONAE SOB QUE SE METAMORFIZA O ESCRITOR. (*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela, que lhe garantiu um lugarzinho no olimpo dos surrealistas portugueses, foi publicado no livro «Surreal-Abjeccionismo», Ed. Minotauro – Lisboa, Março 1963 : o exemplar guardado na «Biblioteca do Gato» é autografado pelo Mário Cesariny, que mo ofereceu e a quem devo a publicação do artigo.


Contra o que poderão ter pensado e escrito alguns doutrinadores do neo-realismo literário português, não é exclusiva dos neo-realistas a consciência de «intervir», em face das duas guerras que arrasaram a Europa e abalaram o mundo. Nem consta que nos neo-realistas essa consciência tivesse agudamente sido posta em romance.
Tanto contribuíram para impedir a guerra, os neo-realistas, como os surrealistas, como os da «arte pela arte». Todos teriam, crê-se, desejado que a guerra não estalasse; sem contar com os Montherlant que têm feito a apologia da guerra, nenhum escritor digno desse nome a deseja, embora nenhum também tenha poder para parar as metralhas ou regular os relógios das assembleias internacionais, de modo a que mais síncronos andem com os apelos e súplicas dos povos reais.
Na esfera puramente literária, a verdade é esta: mais não puderam nem podem, para a resolução das situações concretas, os combatentes neo-realistas do que os surrealistas.
E dentro da literatura (deixemos de fugir às evidências e falemos claro:) se o escritor alistado dos neo-realistas se afirmava pelo élan combativo, pelo ardor polémico, pela crítica social e do social, pela revolta contra as injustiças, contradições e absurdos, valha-nos Deus: então seria o neo-realismo o último a considerar-se «alistado», «engagé», actuante.
No pino da escala estariam os surrealistas cujo ímpeto destruidor foi e é talvez a sua maior ou única virtude; depois os da «arte pela arte» que, pelo menos entre nós, tiveram um trabalho crítico pondo em ordem a nossa pelintrice cultural; e finalmente os neo-realistas, que, em matéria polémica, não passaram do fogoso mas superficial Rodrigo Soares e mais tarde José Marmelo e Silva em fugazes artigos do Jornal de Notícias; em matéria crítica, de Mário Dionísio, Ramos de Almeida e, fora da escola, João Pedro de Andrade; em matéria metafísica, do Vergílio Ferreira.
Se estamos no domínio da literatura, é dela que temos de falar. Se o neo-realista queria agir sobre as condições materiais, utópico e ridículo foi pensar que com uma literatura materialista o conseguia. Se, no fim de contas, era sobre os espíritos e só sobre os espíritos que importava agir, transformando-os, se a única revolução que se pode pedir à literatura é a pedagogia, certamente que a ficção ou mesmo a crítica neo-realista ajudou muito menos ao preconizado progressismo do que as restantes escolas.
Há uma forma de se dizer a verdade sobre as mentiras sociais que nos faz desconfiar: o romance. O romance-libelo - libelo que o autor coloca na responsabilidade de um personagem imaginário, mas não tão imaginário como os inimaginistas do neo-realismo às vezes o conseguem figurar, e a cuja responsabilidade, portanto, se furta - é uma forma degradada da coragem de afirmar, uma «pessoa não jurídica» e, por isso, não resgatável fora dos limites da ficção.
Só existe uma atenuante: se a obra é de facto obra de arte, actuará a longo prazo: o equivalente do libelo sem máscara, da crítica social directamente expressa, à Antero, à Nietzsche, à Fialho, à Prévert, de uma violência diversa do libelo que procura actuar em circunstâncias específicas e circunscritas, digamos oportunisticamente, segundo ou contra determinados quadros sociais-políticos.
Continuamos, todavia, a admirar mais o poeta, o pensador, o crítico e o polemista que sai à rua sem resguardo de um elenco de figurantes (às vezes figurões... ), as dramatis personae sob que se metamorfiza o escritor.
No neo-realismo, onde devia abundar esta literatura crítica, vemo-la confinada a um jornalismo exíguo, quase sempre de um facciosismo aterrador, ou em páginas dúbias de romance (consulte-se, por exemplo, certos capítulos ambíguos de Olhos de Água). Ainda se por uma verificação estatística nos fosse dado averiguar e demonstrar que algo germinara nos espíritos, a partir desses esconsos gritos de alarme e revolta dados nas caves, ainda se se lhes pudesse reconhecer, por aí, às tais ficções, uma função social - vá que não vá.
Mas se nem isso se verifica, o que nos fica do neo-realismo? Fica, quanto a nós, o cuidado de aproveitarmos todo esse material documental, para a sua utilização não já estética mas etnográfica, antropológica, sociológica e psicológica (?).
Se em vez de doutrinadores exaltados e ficcionistas sem assunto, tivéssemos tido uma geração de investigadores-sociólogos (amadores que fossem) pedir-se-lhes-ia um trabalhinho que julgo de certa importância: saber até onde foi a influência das letras neo-realistas, nas suas ambições de formação de uma classe redentora das restantes.
Muito nos elucidaria, mais do que os discursos do género do de Lefebvre, verificar as estatísticas respeitantes por exemplo a: tiragem dos livros neo-realistas, sua expansão entre as camadas que mais interessaria, desenvolvimento da sua função « didáctica» e mesmo revolucionária, percentis das bibliotecas públicas e particulares no que respeita ainda aos mesmos livros, etc.
Um único escritor se entregou a trabalhos concretos de sociologia cultural: Vítor de Sá. Honra e grande lhe seja prestada, por isso. Dá pena que larvadas vocações de homens de ciência (sociológica, psicológica e antropológica, na trindade estabelecida por Jaspers), o rigor da observação experimental (não era o romance para o percursor do neo-realismo, Zola, experimental?), a documentação exaustiva, a paciente recolha do peculiar, do característico, do toponímico, se tenham transviado ingloriamente para a literatura e que uma geração de estudiosos da gleba e da sua gente nos surgisse uma geração, em grande parte, falhada.
Alves Redol começou a sua vida de escritor com um ensaio etnográfico. Teríamos ganho mais com a sua posterior contribuição ao romance?
Na literatura neo-realista vamos encontrar, não há dúvida, um valioso depósito de documentação, a aproveitar pelo futuro sociólogo, mas contam-se pelos dedos da mão aquelas obras neo-realistas que mais do que bloco-notas, mais do que alta reportagem, mais do que quadros e naturezas mortas da vida popular (sem folclorismo, valha-nos isso), sejam obras para viver de vida e alma própria. Satisfazem como meio, mas não como fim, se querem ser obra de arte, mais ou menos teleológica na sua expressão. E creio que todas querem ser obra de arte.
Em suma: o neo-realismo foi necessário mas não suficiente. «Busca aliviar as penas do trabalho e preparar o homem de amanhã para as realizações futuras», diz Jaime Brasil.
Oxalá, oxalá o tivesse conseguido e não estaríamos nós a pôr-lhe a mínima restrição. Seria contudo necessário, para que viesse a desempenhar o papel relevantíssimo que em verdade lhe cabia, que se lhe houvesse dado o complemento que não deu: a literatura pedagógica sobre que os neo-realistas passaram como gato por lebre, atentos como quiseram estar sempre à valorização da sua arte como arte (embora, claro, não «arte pela arte...») e nunca a arte como meio pedagógico de emancipar os homens.
Talvez isso se compreenda: o seu messianismo político ministrava-lhes uma linha irremediável de evolução das sociedades, linha que, contra oráculos e profecias, não se verificou.
Daí que a literatura construída para satisfazer a determinadas condições que não se prefizeram, se visse no vácuo, por a profecia ter falhado, no prazo previsto.
Jaime Brasil viu-o: «Esta (refere-se à desse ano de 1945) «jovem literatura portuguesa» obstina-se, por enquanto, na ficção em prosa, género que, se encontra grande audiência entre os que lêem, não atinge as camadas profundas da população». Atingir as camadas profundas da população: eis o que os jovens escritores de então não fizeram, nem, menos jovens agora, fazem. E o que é pior: o que muitos jovens de hoje se obstinam também em não fazer e em não querer que se faça.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela, que lhe garantiu um lugarzinho no olimpo dos surrealistas portugueses, foi publicado no livro «Surreal-Abjeccionismo», Ed. Minotauro – Lisboa, Março 1963 : o exemplar guardado na «Biblioteca do Gato» é autografado pelo Mário Cesariny, que mo ofereceu e a quem devo a publicação do artigo.

AMBIGUIDADES DA SCIENCE FICTION

moderno-1- scan sábado, 22 de Junho de 2002 – religar a «realismo fantástico» ou «surrealismo e surrealistas» - notícias do futuro

SER OU NÃO SER MODERNO: OS TEMAS DE ANTECIPAÇÃO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em 13/11/1971, no semanário «Jornal da Costa do Sol», na página de divulgação cultural «Seara», coordenada por António Augusto Menano e Júlio Conrado


Science-fiction é por enquanto a única mot-de-passe de cariz internacional com direito a circular no mundo sorumbático da cultura oficial e suas respeitáveis instituições. E, por enquanto, uma das poucas siglas que não desencadeiam já a risada geral dos néscios e a que recorrem os adeptos da imaginação para fazer valer os seus direitos num mundo que, a pretextos vários, racionalistas e irracionalistas, materialistas ou idealistas, benfiquistas ou sportinguistaa, se sente cada vez mais incomodado com a realidade e o que de surrealidade ela contém; e que, portanto, a pretextos vários, vai continuando a embrutecer a espécie; a empobrecer o homem, esse infinito, das suas infinitas possibilidades, dos seus recursos e valores.
Nunca a imaginação teve simpatia dos imobilistas e académicos (Galileo é o exemplo clássico que todos os académicos, imobilistas e filisteus gostam logo de citar) e Giordanos Brunos há ainda muitos, haverá sempre, embora a fogueira assuma hoje outros aspectos. Mas a science-fiction, porque se mostrou apta a receber até a mediocridade e por isso a engrenar no circuito de consumo a que toda a indústria aspira (incluindo a livreira), tem por enquanto direitos de cidade que vale a pena aproveitar.
Com ela, e apesar das enormidades que em nome dela se praticam, vai entrando nos hábitos do mais relapso ao «realismo fantástico» uma gama de temas e problemas que, de outra maneira, nunca chegariam à rua e ao grande público. Porque vencer as barreiras do academismo (latu sensu) é a tragédia de todo o inovador, do que impulsiona o mundo, do que se antecipa e por isso progride, mas tragédia mais violenta ao nível das elites do que ao nível das massas.
Modernidade não é outra coisa do que a recusa do sistema. Moderno é o poeta que cria outra vias culturais, que põe à prova uma civilização à prova. Moderno é o que mergulha na contra-corrente. Ainda que para alguns (neoacadémicos de hoje) moderno seja o autor de piruetas verbais ou experimentalismos no vácuo.
Tudo isto explica o rancor surdo e os risos cúmplices que a palavra science-fiction ainda pode suscitar. É que, mesmo entre pessoas bem informadas, ainda vigora uma opinião pejorativa sobre os que se debruçam sobre os temas chamados de antecipação, sobre os temas--fronteira ou problemas de ponta, sobre a cultura paralela, dita também fascinante. Enfim, o surrealismo andou anos a ensinar isso tudo e até alguns surrealistas nunca aprenderam. Aos da prospectiva, supõem-nos lunáticos e pobres de espírito fascinados pelo infantilismo de sonhos, mitos, utopias que a idade adulta ou da razão naturalmente deverá rejeitar com ar auto-suficiente e de evidente enfado. Supõem-nos, em melhor hipótese, escapistas: falar ou pensar no futuro e em tudo o que nele se cataliza ( toda uma nova cultura por nascer) seria então para os sensatos - geralmente pessoas muito bem informadas - fugir à realidade presente, às exigências, bem duras e cruas, do que oprime e derrota e avilta.
Ora não será talvez despropositado apresentar uma defesa dos temas que ocupam a science-fiction e seus adeptos, tentando mostrar aos mal informados que o pior mal é tanto o desinteresse das grandes questões contemporâneas, mas exactamente a sua voraz, urgente ambição de tudo estudar e de tudo compreender. Não são lunáticos os que falam do futuro, mas os mais exigentes críticos das abjecções, conflitos e contradições do presente.
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em 13/11/1971, no semanário «Jornal da Costa do Sol», na página de divulgação cultural «Seara», coordenada por António Augusto Menano e Júlio Conrado

A GÉNESE DO PENSAMENTO MODERNO


1-1-mezei - gato leitor – revisão: 2001-12-27

8-2-1992

DA PATAFÍSICA AO SURREALISMO

É talvez um lapso bastante reprovável que o livro «Le Matin des Magiciens» nunca cite Alfred Jarry nem tenha salientado a importância da Patafísica (por ele fundada como «ciência da excepção») para o realismo fantástico de que aquele livro é manifesto. Em contrapartida, dedicam os autores -- Louis Pauwels e Jacques Bergier -- bastante espaço e muito justamente, a Charles Fort, outro autor que procurava nos EUA o que Jarry procurava em França: a ciência da excepção ou ciência do particular. Deveria estudar-se este paralelismo entre o autor de «Gestes et Opinions du Docteur Faustroll» e o autor do «Livro dos Danados».
«O movimento assimétrico e espiral (...) anima os mais importantes símbolos de Jarry» -- escrevem Marcel Jean e Arpad Mezei na sua obra «Génèse de la Pensée Moderne». Seja ou não assim, deve registar-se esta observação e relacionar-se com o parentesco descoberto por Ruy Launoir em «Clefs pour la Pataphysique»(Ed. Seghers): «Porque será que o único estudo do Doutor Sandomir especificamente dedicado à «Prospectiva» se intitula «Michel Nostradamus ou L'Avenir est-il un Poème?». Contrariamente ao que um positivismo apressadamente compreendido poderia levar a crer, o método divinatório de Nostradamus não aparece como uma compensação imaginária à impotência que resultaria do desconhecido das leis da natureza e da história» (...)
O método prático de Nostradamus, cuja eficácia tem sido regularmente reconhecida, ironiza indirectamente sobre a precariedade das previsões da ciência moderna, incapaz de reconhecer o imaginário e a aberração, nela e fora dela, para deles fazer uso conscientemente.
Registem-se duas curiosas coincidências: «Tautologias» é o título de um livro do poeta Raul de Carvalho e a noção de «tautologia» é uma das mais importantes para entender a Patafísica «doutrinada» por Alfred Jarry.
«O Amor em Visita», poema de Herberto Helder, é o título de uma obra de Alfred Jarry, que não está longe de inspirar alguns dos postulados a que a obra de Herberto pode referir-se: a obra e principalmente a sua estranha personalidade de sempre «marginal».

AFONSO CAUTELA