quinta-feira, 19 de julho de 2012

MÁRIO CESARINY SEMPRE-IV


cesariny-4> surrealismo & surrealistas - notas de leitura

A ANTOLOGIA - UM POEMA COLECTIVO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do semanário «Jornal do Fundão» - «Nova Literatura» - , coordenação de Artur Portela Filho, em 12/Maio/1963

Tavira,23 de Abril de 1963 - Perante esta antologia de Mário Cesariny - Surrealismo-Abjeccionismo - pode perguntar-se o que significa o traço entre um e outro ismo: se união, se desunião. Significará que se quis opor surrealismo e abjeccionismo ou uni-los? Pode perguntar-se também se abjeccionismo é uma forma particular de surreaIismo. Ou se é um «surrealismo evoluído». Ou se foi uma das heterodoxias a que a ortodoxia surrealista podia ter dado origem.
Pode perguntar-se ainda se abjeccionismo será outra palavra para aquilo que na «história da literatura» ficou conhecido por decadentismo. Pode perguntar-se finalmente se, entre um e outro ismo, outros sinais, além do traço de união, são possíveis; exemplificando,
Surrealismo = abjeccionismo?
Surrealismo < abjeccionismo?
Surrealismo > abjeccionsimo?
Surrealismo + abjeccionismo ?

Estou em crer que Cesariny desejou isso mesmo: que se perguntem coisas. E que das perguntas outras perguntas surjam. E que as respostas sejam perguntas. Estou em crer, também, que as perguntas são as respostas...
A variante de Pedro Oom da citação (muito citada) de Breton, que abre a antologia, autoriza a ambiguidade, o ser e não ser, o dizer e desdizer ou contra-dizer, autoriza a dialéctica que, para não se negar se continua afirmando na negação e que para se continuar afirmando tem de continuar negando.
Este - o da Ambiguidade - é como já se deixa ver o campo exacto da Poesia, onde é permitido perguntar tudo mas onde a resposta só vem pelas vias de acesso que cada qual invente.
A resposta, qual-quer resposta, não se dá, recebe-se. Não se aprende, sabe-se. Não se ensina, cria-se. O dado--resposta ou resposta-dado negam o movimento.
Responder será substituir o insubstituível. Responder será resignar-se, quem responde, a um estado de coisas susceptível de não ser esse mesmo estado logo a seguir.
Resignemo-nos a responder sabendo, com Heraclito, que a resposta não tem outro mérito que o de situar, para os outros, o insituável em si próprio e para si próprio. Sirvam as palavras de signo ou ponto fixo, provisório, para apontar, no movimento, o lugar onde é possível entrar no rio sem molhar os pés. Sirvam os ismos, quaisquer ismos, não para estabilizar o instável, situar o insituável, estatificar o dinâmico da Poesia mas, para lhe assinalar os possíveis grampos de abordagem (para a salvar de abordagens suspeitas, inclusive). E permitir que a Poesia desempenhe a «função social» que lhe é possível enquanto é tempo.
Caracterizada negativamente pelo que não é, não porque deseje afirmar (ou negar) qualquer coisa mas porque não deseja afirmar o que outros, de ‘largo alcance publicitário e editorial, continuam gritando, a Poesia contida nesta antologia, apenas é, o que imediatamente a distingue de todas as que, a vários títulos, o não são. Não afirma nem nega nada - este conjunto de textos, desenhos e fotografias; mas, pelo facto de aparecer, afirma e nega algo a ela exterior.
Para uso exotérico, Mário Cesariny entendeu que devia usar a sigla mais mortífera, a que tem mostrado maior poder destruidor dos passarinhos (líricos ) e passarões (neo-realistas) que nos chilreiam de volta.
Surrealismo é a sigla. Serve simultaneamente de espantalho e ponto de referência. Não que o surrealismo caiba nos autores ali aparecidos, nem que os autores ali aparecidos, em conjunto ou de per si, caibam no surrealismo. É apenas ponto de convergência , de referência e de passagem (obrigatória) para uma aventura em que Cesariny se lançou, com ímpeto igual ao que o fez escrever poemas ou pintar quadros.
Digamos que Cesariny quis escrever, aqui, um poema colectivo, e, sem o querer, polémico. As obras incluídas não funcionam em si e por si, nem em função de um critério objectivo: incluem-se em função de um Poeta - Cesariny - e de um poema-espécie-de-colagem. Ímpeto crítico ou polémico, se o tem, estou em crer que não é intencional ou pelo menos é tão intencional como outros poemas seus. Outro fio ou intento unificador não descortino numa antologia de certo modo heterogénea e desconcertante - (para os críticos). Intento crítico quer dizer, evidentemente, intento de servir para fora, via exotérica; intento que a religue a outras realizações «congéneres» - com vista ao arrolamento pelos historiadores da literatura nas histórias da literatura...
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do semanário «Jornal do Fundão» - «Nova Literatura» - , coordenação de Artur Portela Filho, em 12/Maio/1963

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