segunda-feira, 30 de julho de 2012

JOÃO PALMA-FERREIRA E AFONSO CAUTELA: POLÉMICA 1959

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CULTURA IMÓVEL E CULTURA FASCINANTE (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, publicado no suplemento literário do «Diário Popular» (30-4-1959), faz parte de uma polémica então havida, entre o crítico João Palma-Ferreira e A.C., naquele jornal e nas seguintes datas:
16-4-1959 - «Uma Pretensa Geração Espontânea» , de J.P.-Ferreira
30-4-1959 - O texto de A.C. a seguir transcrito
07-5-1959 - «Resposta a uma Pasquinada» , tréplica de J.P.-Ferreira




«A propósito do artigo do nosso colaborador sr.dr. Palma Ferreira, publicado neste suplemento no passado dia 16, com o título «Uma Pretensa Geração Espontânea», enviou-nos o sr. Afonso Cautela uma carta a perguntar por quanto lhe pagaríamos a réplica àquele artigo. Claro que não respondemos e, assim, recebemos posteriormente a resposta, que segue:


NA (DES) GRAÇA DOS DEUSES
Costumam os deuses recluir-se no silêncio propiciador do prestígio, da segurança e da comodidade que lhes convém. Costumam os deuses não descer nunca até aos mortais do rés-do-chão, porque a sua morada é nas nuvens, nas cúpulas ou nos terraços dos arranha-céus. Costumam os deuses não deixar por mãos profanas o crédito da sua divindade. Mas um dia o Olimpo agita-se e, nascido de um trovão, Júpiter aparece e fala em nome da Corte. O diálogo que se pedia, em regra, não atinge a almejada cordura. Mas depois de tantos meses a chamá-los para a controvérsia (em que continuamos a acreditar, apesar de tudo), depois de tantas horas a falar de convívio com surdos, depois de a crítica tanto e tanto malhar em ferro frio, sentimo-nos compensados quando um dos deuses, deturpando embora o essencial do idioma que falamos, nos responde bugalhos onde nós disséramos alhos. Valha-nos isso e agradeçamos a João Palma-Ferreira, depois da refrega, este artigo, que o dele, aparecido no «Diário Popular» de quinta-feira, dia 16 de Abril de 1959, me incita a escrever.

ESCORREGAR NÃO É CAIR
Antes de saber ao certo o que o orador quis, com todo aquele discurso, preferimos adiar, inclusivamente para conversa no café e até que ele as venha exigir escritas e publicadas, as respostas de índole pessoal («negócios particulares e ninguém se pode neles imiscuir» - repara o critico, que nem por isso se inibiu de lá meter o nariz), as quais apenas reverteriam para uma recíproca auto-propaganda, de que não desejo servir-me e que não desejo facultar-lhe. Prefiro debater os assuntos de interesse geral que possam pescar-se dessa onda de fel que a caneta, sempre tão matreira, sigilosa, prudente, calculista e calculada do comentarista de poesia não fazia prever. «Não há ninguém que, um dia, na vida, não tenha escorregado numa casca de laranja escondida na valeta» - declara. Infelizmente chegou esse dia para o nosso peralta, cuja compostura deu finalmente em descompostura, cuja fidalguia se desembuçou, cuja peraltice se perdeu, não deixando dúvidas a ninguém de que, pelo menos, a água da valeta (onde todos um dia escorregamos, segundo ele) não era nada limpa.


QUO VADIS, ESCRITOR?
O ilustre crítico não se poupou a esforços para confundir o leitor, usando da pirotécnica sobejamente conhecida em baixa polémica: transcrições arbitrárias, comentários insólitos, uns pozinhos de humor para manter o «estado de graça», uns nomes de escritores vivos para chamar as atenções menos atenciosas, a aparente ordenação dada por um surto de alíneas, onde a única ordem é a alfabética.
Pergunto: Estarei, para responder, obrigado a usar métodos idênticos, sofística semelhante, análoga desonestidade, pespontando de comentários jocosos afirmações fragmentárias desse outro dos poucos artigos que o meu atacante tem a elementar prudência de publicar? Valerá a pena seguir via tão fácil de dar nas vistas e ouvidos? Claro que não. E para conseguirmos obter algum resultado de uma conversa que logo de início foi posta tão baixo pelo provocador, procuremos estabelecer ordem na confusão, responder com honestidade às desonestidades, hierarquizar os assuntos e, finalmente, levantar para plano condigno o que foi atirado ao charco.
No caso de o exegeta querer trepar a alguma banda, além de misericordiosa intenção de abrilhantar um magazine que começou de se embaciar com a retirada dos dez mil, isto é, com a retirada estratégica da falange de colaboradores de brilho e nomeada, - vejamos onde e por onde quer ele ir.

DEZ TOSTÕES PARA QUEM DESCOBRIR
Apesar de tão amofinado, logo no limiar, com o texto de análise e apologia que dediquei aos livros de Ernesto Sampaio e Herberto Helder («Diário de Notícias», 2/4/59), o pássaro não se contenta com tão pobre seara e, preferindo voltear até Agosto de 58, mete o bico noutra. Exuma o caderno Zero-um, (sobre que comete logo de entrada uma inexactidão de pouca monta, afirmando que «ninguém colabora nesse caderno além do próprio A. C.», quando na verdade é que nesse caderno colaboravam também José Augusto Seabra e Domingos Carvalho), e transcreve uma falta que, valha também à verdade, não vinha nada a propósito. Mas ele quis encher o papo e ter entretenga até de manhã. Deixemo-lo saciar-se e vejamos o que se pode mondar, já que nos permitimos ocupar toda a quinta-feira à tarde até de madrugada.
Que tinetas são, em suma, as dele? Na maioria, puras inexactidões, saltos no vácuo, contorcionismos de efeito polémico, pirotecnias, tiros disparados no ar com o alvo em toda a gente e em ninguém. Além destas, abaixo de zero, conseguem descortinar-se, com boa vontade, algumas ocorrências de sinal positivo, que vale a pena discutir para recíproco e público esclarecimento. De outras nos não ocuparemos.
As tinetas que vale a pena exarar são as seguintes:
a) Obnubila-o a possível existência de um novo ismo, descoberta que o magoaria imenso no caso de o tempo vir a confirmá-la;
b) Não perdoa que esse ismo possa ter um nome tão caricato como o de fotosferismo;
c) Dá «dez tostões (duas coroas) a quem conseguir ler a «Luz Central» (...) e encontrar lá (...) Amor.

UM PARÊNTESIS NECESSÁRIO
Antes de circunstanciarmos estas três alíneas coesas e complementares a que confinámos a nossa quota parte no processo, e visto que o adversário preferiu derramar a formulação do dele por cinco átimos díspares e disparatados, bramindo cada qual para seu quadrante - forçoso é que comecemos em a) até nos estatelarmos em e).
De a) a e), com efeito, decorre o processo que o juiz viciou logo na origem. Ele lá as fez e lá as baptizou desta maneira pimpona. Pergunta ele:
«Segundo o dito manifesto, como se poderá atingir essa pretensiosa transformação do Mundo?». E ele mesmo responde:
«Ê o senhor C. que enumera os vários processos mais rápidos e eficientes para a supracitada transformação.»
E, vai daí, eis as alíneas a salvarem de aflições um homem sem assunto. Porque a verdade é só uma: o dito senhor C. não enumerou, não enumera nem enumerará jamais, como o impetuoso atirador escreve e quer, nem sequer os vários processos de matar pulgas, quanto mais os de «transformar o mundo». O que escrevi, isso sim, e me prezo de escrever e pensar em todas as circunstâncias, é isto: «O dever do trabalhador intelectual não é o namoro das estrelas mas a luta, corpo a corpo, com as forças do mal, e a comparticipação efectiva, concreta, indignada na transformação do Mundo».
Uma afirmação destas autorizava alguém, porventura, a induzir os processos que porventura preconizo de «transformação do Mundo»?
Ao cérebro e à sensibilidade do maldoso rapazinho repugna esta minha exasperante mania de que a missão e luta do escritor é hoje a mesmíssima do homem comum e que «a poesia é uma arma» (Raul de Carvalho) sem perceber que os meios de lá chegar não são complexos, nem ínvios, nem subreptícios, nem sequer precisam de tantas alíneas como as que me atribui.
O meio é apenas um: a força da obra de criação que autenticamente o for. Uma obra de arte age por si. E por ela o escritor toma parte na «transformação do Mundo». O ponto está só (só!) em saber onde está esse escritor.
Para sintoma imediato (e sem ironia) eu diria que, depois de tantas provas a favor, o «escritor que importa», o «autêntico criador», o «revolucionário», o «portador, mensageiro e apóstolo da nova criação do homem» será todo aquele contra quem a sanha dos críticos bem educados se virar. O literato de boa educação não pode suportar a luz central, a literatura mal educada. É um teste infalível. E denuncia-se, da maneira que o estamos vendo: malcriadamente…
Como ele reconhece, num dos escassos relâmpagos de lucidez que atravessam as colunatas chilras da sua prosa «Afonso Cautela não desiste de de transformar o mundo a partir da literatura». Pois não, não desisto de transformar o mundo pela literatura. Mas por isso a literatura tem sido para o A. C. muito diversa coisa de «um piquenique da glória» (contestá-lo-á, senhor J. P.-F,?), tem sido aquilo que nunca foi, não é nem será para os que, não comendo os figos, no entanto lhes rebenta a boca, sabe-se lá porquê! Sempre o A. C. pensou (e procurou ser como pensava) da missão do escritor o que a seguir consta.

A MISSÃO DO ESCRITOR
Impossível acreditar nos escritores de ocasião, nos oportunistas, nos «estrategas da glória». A vocação de escritor, se existe, sobrepõe-se a todas as conveniências e circunstâncias, aos deveres de segunda ordem, porque é um dever absoluto. Nada lhe resiste, impele a moral e as mesuras, as tabelas e preços de uso comum, abre na sociedade uma lavra de fogo, chicoteia por dentro as hipocrisias institucionalízadas. Ser escritor é usar uma arma de sucessivas metamorfoses, do azorrague ao lírio, uma arma defensiva dos fracos e ofensiva dos fortes, sempre que necessário. Ser escritor é ter na mão uma pena amargurada mas crente, impulsiva ou mordaz, à qual se sacrifica tudo, pela qual se deu e dá tudo (mesmo quando se não tem e já não se tem nada) e que, dia a dia, exige tudo de nós, sangue e nervos, saúde e trabalho, a vida e a morte. A grande, a interminável muralha da china dos sofrimentos humanos nunca se despega dos olhos assustados ou exaustos do escritor.

LITERATURA DE QUINTAL
Foi isto, acaso e algum dia, em acto ou em conceito, ou sequer em intenção, ou sequer em suspeita, perto ou à distância, a missão do escritor para tão sisudo literato? Como não há-de ele admirar-se que eu entregue à literatura «a transformação do Mundo», se literatura ainda é e continuará a ser para ele a maneira de encaixar, na tribuna da ordem, os reptícios interesses da ordem (pessoal, tribal, partidária) e a remuneração regular do serviço? Claro que essa «literatura» nem para transformar o quintal das traseiras, quanto mais o mundo!...

ONDE A FALTA DE UM «S» PROVOCA CAMBALHOTA
Não contente em viciar a discussão na origem, atribuindo-me o que nunca constou das minhas atribuições, autoriza-se depois o autoritário colunista a despender induções como esta:
«Mas quem são os valores sem idade nem índole de cristalizar? (...) Em primeiro lugar e, sobretudo, são os neo-realistas».
Puro, simples e piedoso disparate, visto que ele leu em onde eu escrevera sem. Basta rever a escritura e isso se saberá. É claro como água que os «valores sem idade nem índole de cristalizar» só poderiam ser os jovens, os independentes, os não reconhecidos, os que a imprensa e edição comercial sistematicamente irradia (com as excepções agora vigorantes, sim senhores, que só vieram confirmar a regra e, talvez, manifestar até que ponto o manifesto do Zero e d'A Planície têm sido ouvidos e pressurosamente remediados…) – e nunca, e jamais os neo-realistas ou outros que nessa imprensa e edição largamente se encontram representados.
Mas o nosso marinheiro tinha de fazer saltar a truta — o neo-realismo — que lhe estava a causar impressão na manga, e não hesita. Só lamentamos que tão má pontaria manifestasse e que, na altura própria, quando abrimos no caderno Zero o debate sobre o neo-realismo, não tivesse aparecido com as mesmas artes de prestidigitador. Não diremos que seja agora demasiado tarde para voltar àquela lebre, mas fica com certeza um pouco fora da volta. Deixemos, pois, o neo-realismo de remissa, até que, esgotados outros objectos de maior virulência nesta controvérsia, a ele possamos voltar. Não deixemos de estranhar, contudo a inusitada condescendência que o nosso marinheiro dedica ao neo-realismo e o miríade de inexactidões que é o prato forte de quem se mete ao mar e tão pouco percebe da pesca.
Estranho também é que alguém, a quem nunca se ouviram palavras entusiásticas de aplauso e admiração para ninguém, venha insinuar-se como protector dos nomes sobre que nos cadernos Zero eu disse opiniões que são, no mínimo, responsáveis e que o opinioso cavaleiro (com suspeita mas ainda não comprovada linhagem nos da Távola e Graal) deveria ter o cuidado de discutir, se era acaso discuti-las o que lhe interessava.
Porque se mostra tão hipocritamente defensor de tanta gente sobre que, «em família», tão pouco favoráveis opiniões urde? Já que a expressão pública destes críticos, que têm no café uma opinião e na tribuna da tarde onde pontificam já a têm do avesso, é sempre a da mais ropiosa hipocrisia, não queiram ao menos iludir o leitor e passar por pobres lagartos, protectores dos «oprimidos» escritores que eu deliberadamente descasquei (quando e como entendi) ou a quem coloquei, por obrigação crítica, reparos ou restrições. Mas reparos ou restrições os que digo para dentro são os que escrevo para fora, para as colunas assinadas.
Poderá ser deselegante, desairoso, imprudente, mortal, expressar sobre contemporâneos vivos uma opinião. Mas não é, com certeza, partilhar da comédia hipócrita a que tais e tantos críticos se prestam, ao veneno das alfurjas literárias onde se destila mais veneno contra tudo e todos (à boca fechada, à porta fechada, sempre em circuito fechado) do que bicas escaldantes pelas goelas abaixo.
O Dr. João Palma-Ferreira, de seu natural apaziguador e evangélico, nunca deu «pancadaria» e assim se canoniza, de bracinhos para o céu, cioso dos que apanharam, de injusto chicote, a justa tareia:
«Em torno disto tudo, pancadaria em muitos que não se incomodam com isso, noutros que se incomodam mas não respondem por causa do escândalo e em alguns que não podem responder».
«Os que não se incomodam» é mentira. Há os que não sabem ler, que é diferente, ou os que não lêem, os que ignoram, os que encolhem os ombros, os que se julgam e nos julgam ainda em 1920, à espera da aurora boreal presencista ou de qualquer equivalente salvação do Mundo.
Há, sim, «os que se incomodam mas não respondem por causa do escândalo». E sem medo ao escândalo foi que o heróico defensor dos «humilhados e ofendidos» escritores - Tomás Kim, Jorge de Sena e os demais nomes que adrega de citar, ainda estou para saber segundo que critério e por que carga de água - queimando-se ele e deixando os outros na galeria a bater as palmas, veio para a arena.
Os outros, áfonos por constituição, sem pio além do lírico, ficaram admirando e bendizendo o discóbulo corajoso capaz de enfrentar a fera…


A ÚLTIMA ALÍNEA
Na última alínea o desvairamento atinge culminâncias:
«O Sr. C., em suma, (e que eu saiba) de tudo só salvou três coisas, para bem do literato, do irmão obreiro e da reforma do mundo: o Amor, Raul de Carvalho e o surrealismo».
Quem julgará ele que vai acreditar num tão arrepiante dislate? Se o hermeneuta parece tão lido nas laudas de quem quis atacar por que não cuidou de verificar que, positivamente e para não andarmos a jogar as palavras, de tudo o que confessei admirar (e não foi pouco, e não foi sem interesse desinteresseiro e apaixonado) salvei até hoje muito mais do que essa trindade a que o cruel justiceiro me quer cingir e condenar?
Não há dúvida, considero o Amor um princípio revolucionário se o virmos fundamentalmente como o oposto da Razão, contra toda a Razão, e Inteligência, e Esperteza, e Ciência, e Sapiência, e Técnica, e Artimanha, e Presciência, e Omnisciência, e Sabichice, de que sofre o mundo e, pelos vistos, os eruditos senhores dele.
Mas além do Amor, muito se salva. Também é verdade que considero Raul de Carvalho um «lírico maior», um «lírico da imaginação», um «poeta absoluto», um «profeta da absoluta terceira verdade». Mas não creio que seja único e várias companhias lhe apontei em Zero-dois. E também é verdade que considero o surrealismo capaz de salvar o mundo, em face da facilidade com que tantos o vão, de olhos tapados, levando à última desintegração; num mundo de inteligentes, de cientistas, de eruditos, de sábios, tudo gente lógica, formada, infalível, geométrica, x + y = z, num mundo de loucos inteligentes, ainda prefiro os inteligentes loucos que são os surrealistas; e que ninguém pode caminhar sem atravessar o surrealismo também me parece já verdade de cartilha elementar.
Mas onde é que tudo isto significa eu salvar apenas o Amor, o Raul de Carvalho e o surrealismo?

CULTURA ACADÉMICA E CULTURA FASCINANTE
Após a ginástica sueca a que o polemista nos obrigou, reatemos o fio das nossas três alíneas; isto é, a discussão de Luz Central, livro de Ernesto Sampaio que pretextou todo este colóquio.
Atribui-me o vidente, por excesso de velocidade, uma pretensão que francamente não tive: a de criar um ismo. Não pretendi tal e muito menos o pretendeu Ernesto Sampaio, porque seria fundamentalmente contraditório -- mas quem poderá deixar de ser contraditório, se se mete a discutir com os esculápios da lógica, da crítica, da filosofia do rigor, que só conhecem a lógica formal? -- pretenderem mais uma teoria, mais uma metafísica, mais uma doutrina duas pessoas que procuram precisamente a abolição da cultura que tem permitido tantas e desvairadas teorias, metafísicas, doutrinas.
Falar eu de uma «nova teoria da Criação Humana» não passou de uma condescendência do mesmo tipo da que levou Ernesto Sampaio a dividir o livro em três tipos de texto - quando nós sabemos só existir ali um texto, uma unidade perfeita de tudo - , não por sua vontade mas conforme a terminologia académica, querendo significar (aqui e no artigo que escrevi) por académica a cultura que, não for «fascinante», termo este muito mais adequado do que qualquer dos ismos propostos e que Ernesto Sampaio usou, já depois de escrito, em 13 de Outubro de 1958, o meu artigo, só aparecido na Imprensa decorrido quase meio ano...
«Cultura Fascinante», de facto expressa com muito mais propriedade o nosso intuito, que não é já o de substituir uma teoria por outra teoria - dentro do mesmo tipo cultural - mas uma cultura por outra cultura.
Falei de fotosferismo e de gravitacionismo como poderia ter falado de essencialismo, de nuclearismo, de qualquer ismo que tivesse a virtude (como parece ter tido) de afitar as orelhas dos que só com ismos as afitam. Usei um ismo, em certo pendor irónico, principalmente para isca. E se o leviano senhor leu mal o que escrevi, releia: «Para prática da crítica futura, à volta com o catálogo dos «ismos», aqui lhe noticiamos o novo «ismo». Para prática da crítica passada, presente e futura - repito e completo agora, - foi que usei a ingenuidade do «fotosferismo», isca que o ratinho mordeu e que, antes de o ter feito guinchar a ele, já me fizera rir a mim.

O PONTO VITAL DA CONTROVÉRSIA
Espera-se que da «cultura fascinante» resulte nova tromba de água do tempestuoso senhor, e então haverá oportunidade de entrar no que afinal interessa, desempeçando a conversa da teia de mesquinharias a que o nosso argonauta a conduziu. Ponto a discutir : a necessária substituição da cultura morta pela cultura viva, da cultura académica pela cultura fascinante, o norte pelo sul, o gelo pelo fogo, a Razão pelo Amor.

ALGUNS PASSOS DE DANÇA
Se o doutor não gostou do fotosferismo, chame-lhe o que quiser, na certeza de que todas essas expressões poderão não dizer a verdade (nunca a verdade pede estar num ismo!) mas dão dela a imagem parcelar, aproximativa, convergente, que é necessário ir ajustando até à coincidência, no centro, do Todo com o Todo: «Todo o conhecimento intelectual é falso: só a vida conhece a vida» - disse alguém, ou, se ninguém disse, digo eu. Os ismos que poderíamos indicar ajudam em linguagem dialéctica a fazer perceber a hermética sabedoria que se preconiza e onde chegaremos com tempo, peso e medida. A luta é desigual, porque se trata de combater com as próprias armas que queremos destruir: as dialécticas. Prefaciaremos, contudo, até onde for possível, a Alegria, a Dor e a Graça — trilogia inconfundível que Leonardo Coimbra também combinou num só livro.
«Coincidências astrológicas» — dirá com um sorrizinho fungado o lógico e racionalista crítico. Pois bem: preferimos a sabedoria dos astros e das bruxas, ao bruxedo e à astrologia barata da pseudo-crítica que não ata nem desata, que não vê, que não viu, em Luz Central o que até Alfredo Margarido viu, na única ou numa das únicas vezes em que acertou: «À procura de uma fundamentação mais extensa anda Ernesto Sampaio, com a sua «Luz Central». (In «Diário ilustrado», 31/Dezembro/58).
Para argúcia tão funda como a do autor do Poema para uma Bailarina Negra, foi um acertar em cheio no alvo. Só talvez lhe escapasse que a «cultura morta» em vez da «cultura fascinante» não permitiu à sua bailarina mais do que dançar em pontas... Vem a propósito relembrar que o referido poema, sacrilegamente comparado ao de Herberto Helder nas tertúlias do Rossio, muito aplaudido pela crítica adstrita, bairrista e muito «inteligente», não passando de uma ficção à base de elementos estilizados e compósitos, sem integração numa vivência, postiço, inautêntico, incaracterístico e despaisado, mau grado a muita paisagem de cenário que por ali se pinta; não tem, embora quisesse ter, força de rio nem de contra-corrente equatorial. Não derruba sequer um dedo do monstro (a «cultura morta»), que continua de cócoras e dormindo, enlevado, nos primores artísticos, arquitectónicos e monumentais do seu fabuloso passado e do seu abastecido presente. Não é uma bailarina negra a dançar numa boite de Paris ou numa adega típica do Bairro Alto o que se exige do poeta, se acaso o poeta quisesse virar do avesso, coma devia, o casaco ao monstro. O que ele teria era de transportar a negra, com armas e bagagens, isto é, com habitat, ascendência e cultura para a Língua portuguesa. E só então chamaríamos a isso um caminho original (percurso de origens) sobre os caminhos andadiços de uma cultura que nunca foi original nem «fascinante», porque foi sempre o pesadelo do Passado (a História) ou a insegurança do Futuro (a Metafísica) a abortar a alvorada de toda e qualquer experiência inaugural.
«Fascinante», sim, chamamos nós ao encargo de destruir, com armas de sangue, luz e nervos, primeiro a dialéctica de que uma civilização inteira se nutriu, e depois a civilização que serviu de esqueleto, de suporte sangrento e de torre de enforcados à dialéctica. Demasiado «fascinante» é tal encargo para aceitarmos qualquer habilidade estilística, sofística ou «científica» como suficiente ou sequer razoável morbo desintegrante. O sangue arterial que substituirá o sangue venoso em intensa circulação por quase todos os interstícios e órgãos da nossa prezada sociedade racionalista e democrática, (incluindo as orgânicas, tirânicas e ditirâmbicas das Américas Central e do Sul em desaparição) ou da Europa e colónias europeias dos continentes africano, australiano e asiático (em decomposição) — o sangue arterial que virá, só pode brotar de uma aventura total, de um mergulho absoluto muito abaixo da corrente da civilização em que os críticos e outras pessoas inteligentes navegam.


A HIPÓTESE HEURÍSTICA
Quando Ernesto Sampaio publicar o seu novo livro - Cultura Fascinante é precisamente o título - cá estamos para voltar a discutir dialecticamente o que, no fundo, não admite dialécticas, mas honra os críticos em exercício e seu cego peregrinar sobre cadáveres, sobre piras mortas, sobre suspiros que já nem os corvos nem a noite ouvem.
Limitar-me-ei, então, ao que fiz com Luz Central: lançar sobre ele uma das hipóteses a cuja luz poderemos interpretá-lo. Pode mesmo ser que Ernesto Sampaio esteja ou venha a discordar da hipótese proposta por mim. Mas é uma, entre outras que deveriam ter surgido, que um livro com o mérito do de Ernesto Sampaio deveria ter feito surgir, não se desse o caso de os críticos dormirem a sono solto e patentearem a mais crassa das indiferenças perante um livro revolucionário, desafiante, magnético e arrebatador como é Luz Central. Se não lhes agrada o fotosferismo, olhem ao menos com olhos de ver para o que lhes está diante dos respeitabilíssimos narizes.

A NOTA FINAL: ÚNICA AFINADA
Vamos finalmente ao pescoço da ave, vamos findar por onde a chilreada começou. E, diga-se, pela única nota, afinada da sinfonia:
«Afonso Cautela (...) parece querer manifestar ou, pelo menos, denunciar o espírito de uma "geração» - afirma o prometedor ensaísta.
Finalmente, depois de tantos tropeços e aleijões, de tanta má-fé e de tanta frivolidade, o pássaro poisou certo e disse bem — quis eu, de facto, manifestar o espírito de uma geração. Com o caderno«Zero» e especialmente com as «mensagens de abertura» (assim as denomina o meu opositor) que estavam previstas para os cinco números, queria ir «reflectindo os anseios de outros jovens», como ele acentua, e nem só os meus. Preocupei-me, de facto, menos em falar no singular do que no plural. E o plural, cuja força de aglutinação, na vida intelectual, é mais forte, é a geração, comunidade que, contrariando os egoismos de grupo, os egoismos de bairro, os egoismos de partido e até os egoismos entre gerações, pode constituir o degrau da solidariedade, do convívio que preconizamos.

AFONSO CAUTELA