domingo, 4 de setembro de 2011

GILBERT CESBRON: O OUTRO DEVER


1-2 - 58-06-15-ls> cesbron-1> segunda-feira, 19 de Maio de 2003

O OUTRO DEVER(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela terá sido publicado no quinzenário «A Planície» (Moura), 15-6-1958

À loucura do padre Pedro, que podemos presenciar ao longo deste livro de Gilbert Cesbron (1), lembrou-se a edição portuguesa de juntar um sensatíssimo texto de Voillaume, certamente para impedir que os leitores se assustassem demasiado.
Voillaume é uma voz idêntica a algumas que, no contexto, ajuízam, do alto da sua comodidade, sobre o santo heroísmo do padre Pedro. Mas o que nele há de louco, heterodoxo e até de herético, e lhe confere, precisamente, a auréola de santidade, não o podemos varrer da memória, venham quantos Voillaume vierem a deitar água na fervura.
O que deste livro admirável podemos colher é que não basta estar, como o director da fábrica que recebe Pedro, o padre-operário, «certo de cumprir o seu dever». Porque o dever de Pedro, o dever de quem soltou as amarras do porto seguro e, por amor de Cristo, se meteu na tempestade, o dever que a nossa consciência desperta e liberta nos ensina e nos ordena é o Dever Maior, o de uma responsabilidade e exigências maiores.
O dever para Pedro não era o de se «arranjar», porque ele sabia e dizia: «se é preciso arranjar-me, temos que nos arranjar todos». Por isso abalou da sua casa, da sua tranquilidade, da paróquia onde apenas teria missa aos domingos e baptizados de primeira classe... « A linha de maior alegria estava no sofrimento dos outros».
Como o filho pródigo tradicional pôde, porém, regressar à casa e à classe de onde partira, já em cheiro de santidade. Nascera operário e o dever que o chamava nada mais fez do que completar a vocação de padre-operário que no bairro miserável de Sagny abriria caminho à luz e à cruz de Cristo. Mas o filho do meio burguês será o filho pródigo sem regresso, aquele que partiu e nunca mais poderá voltar, aquele que Gide evocou, preludiando uma das mais dramáticas encruzilhadas do nosso tempo, no Retour de l'Enfant Prodigue. Enquanto o padre Pedro regressa, não poderá regressar aquele que renunciou à classe onde nasceu, quando a missão que o chama está na classe em luta aberta com a sua.
É preciso, frente a este livro corajoso de Cesbron, compreender o «drama de classes» vivido por uma juventude onde a fome de heroísmo e a fraternidade é maior do que se pensa, porque a vileza da sociedade a oculta, ridiculariza ou mata.
Saídos de uma família com as exigências espirituais comuns à classe, o ideal destes jovens não fica obrigatoriamente prisioneiro da mediocridade circunjacente. Acossado, repelido, perplexo, surpreendido e incompreendido, o jovem encontrar-se-á naquela terra de ninguém, onde não sabe nem pode escutar ninguém e onde ninguém o escuta. Sobre as fossas de sangue que separam os homens, sobre as muralhas de hostilidade que dividem classes e mundos sociais, tenta lançar a bandeira inquietada da cumplicidade. Quantas vezes, oriundas de todas as pessoas felizes e sensatas que o rodeiam, a pobre vítima não ouvirá intimidações como estas: «Isso há-de passar com a idade». «O menino é louco. Pense antes nos sacrifícios dos seus pais para fazerem de si um homem».
Ao mesmo tempo acodem-lhe as palavras de Corção, que conseguiu ler às escondidas da família: «Contanto que se bata e morra pela única causa que não pode perder sem deixar de ser burguês: o seu critério de vitória, o seu culto do sucesso e do prestígio».
Que nenhum pai queira modelar um filho à imagem e semelhança de si próprio. Que nenhum pai julgue fazer a felicidade de um filho, tutalando-o com um jugo onde se atiçam preconceitos de classe e casta. Não pode haver felicidade na vocação frustrada. E a uma carreira de triunfos, deve o pai certificar-se se o filho não preferirá uma outra, de riscos e perigos, ciladas e alçapões, missão e pobreza voluntária. É preciso dizer aos pais, cegos de amor pelos filhos, que há, que pode haver para eles maior glória do que o triunfo, do que o dinheiro, do que a profissão rendosa, do que um lugar egoísta na sociedade.
É preciso dizer aos pais que o dever nem sempre é conforme em geral uma falsíssima moral do trabalho o prescreve, nem se circunscreve aos sucessos escolares, na profissão e na carreira. É preciso gritar-lhes: - O teu filho não falhou. Pode haver luz (a luz da vocação realizada) nos caixotes do lixo sociais onde julgas que o teu filho desceu. E quem sabe se o renegaste por isso!
De qualquer maneira, se ele abalou, é tarde. O filho pródigo não voltará, porque tem fechado o portão de ferro que nunca cede: a classe. A partir de há muito que o exilado apenas consigo conta. Se procurou ainda a conciliação dos monstros, acabou por ver a desigualdade da luta. No meio, ele é apenas a vítima. Estava a tempo de voltar, podia ter calado dentro de si a voz da vocação, podia ter crucificado Cristo sem lhe dar ouvidos, calado todos os apelos que o desnorteiam e endoidecem. Não lhe faltaram as relações familiares e de amizade, a escola e os livros para o demover. Mas mais forte do que a inércia, do que a sensualidade e o mundanismo, do que a corrupção e a futilidade, foi a chama íntima que nele crepitou. A corrente da verdade partiu a corda podre da mentira. Proibiram-no de ler o Bernanos do Diário de um Pároco de Aldeia, o Coccioli de O Céu e a Terra, o Kazantzaki de O Cristo Recrucificado, o Cesbron de Os Santos Vão para o Inferno, e o Gorki de A Mãe, livros heróicos, livros de redenção, livros de libertação; mas esses poucos conseguiram vencer toda a literatura burguesa de abdicação, conformismo e mudez.
Cristo entrou a jorros pela sua janela de menino-família. E ele será, como Bernanos, como Coccioli, como Kazantzaki, como Cesbron, como o Padre Américo, como o Padre Joaquim, um dos acusadores da sociedade que escorraçou Cristo e diariamente o recrucifica.
O apelo de Cristo será mais forte do que as algemas do hábito, dos interesses de classe, do que a rotina, do que a inércia. Cristo vivo acordou nele, Cristo será mais forte do que os afectos de família. É preciso repetir ao pai:
- O teu filho não traiu. Quiseste-lo tranquilo e feliz e rico, mas ele abalou, ao vento e ao frio, a beijar na boca a adversidade, a pobreza, talvez a ignomínia. Cumpriu. Cumpriu o Dever.
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(1) Os Santos Vão para o Inferno, de Gilbert Cesbron, tradução portuguesa de Xavier Coutinho, Porto, 1958 (3.ª edição).

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

TERRY CLIFFORD E A DIÁSPORA TIBETANA


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21-10-1990

Actualidade da tradição: A DIÁSPORA TIBETANA (**)

Se é verdade que o maior progresso da psicofarmacologia moderna, o primeiro grande tranquilizante, veio da pesquisa experimental, em laboratórios do Ocidente, sobre a «Rawolfia Serpentina», planta usada há séculos na Índia no tratamento da loucura, este indício pode sugerir o tipo de relações actualmente existente entre a medicina alopática moderna e os sistemas ou artes de curar mais antigos, como o chinês(acupunctura), o hindu(ayurveda), o helénico (hipocrático), para citar apenas as três grandes correntes de fundo que confluem na medicina sagrada tibetana.
Livros como o de Terry Clifford, « A Cura do Diamante»(*), são um manancial precioso de informação ignorada e por vezes intencionalmente esquecida. Os laboratórios continuam atentos.
Aliás, não sei se ingenuamente, a autora convida os industriais do Ocidente ao estudo aturado dos tantras médicos, para o que têm apenas que aprender a língua tibetana: « Os tibetanos - escreve ela - desenvolveram vasto campo de psicofarmacologia e têm um número enorme de medicamentos psiquiátricos, nenhum dos quais já foi identificado ou experimentado cientificamente no Ocidente.» Ora aí é que a Drª Terry naturalmente se engana: os serviços de psicofarmacologia não costumam tornar públicas as suas investigações laboratoriais e actividades farmacêuticas, até por causa da concorrência que é, tudo indica, feroz. A secreta e laboriosa pesquisa a que os laboratórios ocidentais se dedicam de toda a ciência e arte milenária de curar, é aspecto de que a autora - não sei se ingenuamente - só levanta uma pontinha do véu, como se percebe pela transcrição antecedente. Não são os aspectos parcelares, acidentais e tecnológicos ( o chamado receituário) destas artes o que a ciência ocidental rejeita mas sim a essência da arte, o espírito que a inspira, aquilo que não pode copiar nem estropiar à vontade. Aquilo que não percebe.

OS APROVEITADORES
Apesar de ter esmagado a maior parte da cultura tibetana, a China comunista continua a importar dos Himalaias grande quantidade de medicamentos fitoterápicos, feitos nas altas montanhas do Tibete conforme manda a tradição. Ainda que rejeite o melhor - o sistema global onde esses «específicos» se inserem, onde fazem sentido e onde resultam a cem por cento - a China comunista faz como o Ocidente comercial e capitalista: serve-se da parte (da casca) e deita fora a polpa (o fruto). Quer dizer: instrumentaliza. Serve-se. Usa.
Subdividindo - «para finalidade de estudo» diz ela - a medicina tibetana em «dármica ou religiosa, tântrica ou ióguica e somática ou comum», a Drª Terry não deixa de assinalar, porém, o artifício dessa divisão, já que «as três categorias se integram na prática real.» De facto e por mais que se subdivida, por razões metodológicas, a arte de curar tibetana permanece indivisível, íntegra, holística, conforme vem mostrar a Lisboa, em visita de surpresa, o médico-chefe da equipa do Dalai Lama, Dr. Tendzin Chodrak, ontem chegado ao aeroporto da Portela. E permanece íntegra, una, por uma razão física muito simples: a filosofia que a ilumina e de onde parte, começa por não separar nada, considerando, num a priori óbvio, que tudo é energia, para lá das dicotomias ocidentais entre espírito e matéria. As dicotomias da filosofia ocidental nunca existiram nos sistemas iniciáticos como o da medicina tibetana. Por isso não há necessidade de reunificar o que nunca foi desunificado.E por isso os maiores êxitos terapêuticos dos médicos tibetanos ocorrem no domínio chamado «psiquiátrico».
Esta concepção unitária do universo e da vida é que é o mais difícil ou mesmo impossível de compreender pelos analistas do Ocidente, de formação incuravelmente dualista. Doença esta que nenhuma arte de curar - tibetana, chinesa, hindu ou helénica - conseguirá curar.

Quando os chineses, usando o dualismo ocidental, ocuparam brutal e violentamente o Tibete, em 1959, cem mil tibetanos que conseguiram escapar à chacina foram para o exílio, figurando entre eles grandes lamas mas poucos médicos. Apesar de poucos, eles fizeram a diáspora e o mundo foi tendo conhecimento de que a ciência não chega aos calcanhares da sabedoria. Em matéria de corpo humano, então, não chega sequer ao tornozelo. «Havia afinal mais mundos» como diz o poeta. Que estão agora aí nas nossa mãos.

CURAR É LIBERTAR(DESCOLONIZAR)
A maior acusação que se pode fazer às medicinas iniciáticas como a tibetana é que elas remetem para o doente a principal responsabilidade de cura, isentando de culpas o clínico, que se limita ao papel de professor de saúde. Quem quiser que aprenda a lição, quem não quiser que vá prá faca.
Como diz a drª Terry Clifford, neste estudo que foi sua tese de doutoramento em Psicologia e Religião, «a prática da medicina do Dharma de Buda depende dos nossos próprios esforços do reconhecimento da impermanência, do controle da mente e da diminuição do anseio». Sabendo que responsabilidade é sinónimo de liberdade, esta responsabilização do próprio paciente significa a sua libertação, o que é exactamente o contrário do que faz a medicina colonial em vigor, que põe em total toxicodependência do sistema o doente imprecavido. Deve-se a este facto, unicamente a este facto - liberdade é responsabilidade - o grande êxito da medicina moderna ocidental e o olho vesgo que ela deita às medicinas eternas. Trocando por miúdos, quer dizer portanto que na «alienação» moderna (tal como o sentido psiquiátrico da palavra «alienado» ainda prova...) reside a raiz da questão terapêutica, que aplicada ao colectivo se chama política. Na qual questão, « libertar» ou «descolonizar» ainda não deixou de ser a palavra de ordem.

A reserva etnológica

A provar a sua diabólica perenidade, a medicina tibetana resiste inclusive às incursões «etnológicas» da Drª Terry Clifford que, colocada na perspectiva da sua especialidade universitária - «etnopsiquiatria - , deforma com essa postura a actuante actualidade deste sistema terapêutico. Segundo a autora, «o vasto campo da literatura médica tradicional, sua enorme farmacopeia, seus métodos de diagnóstico e tratamento, seus princípios éticos e seu suporte filosófico e psicológico» contribuem para «a história da medicina, da antropologia médica e da etnopsiquiatria». Esta catalogação etnológica, não só permite a uns quantos fazerem com a ajuda dos «media» o congresso de Vilar de Perdizes - destinado a identificar medicinas heterodoxas com bruxaria - como tranquiliza muito boa gente do sistema estabelecido. Mas não diz a verdade toda, aquilo que a drª Terry designa por «praticabilidade da medicina tibetana». De facto, é a actualidade prática e actuante das tecnologias holísticas de vida e de saúde que interessa acima de tudo sublinhar. Irrita o negócio mas é verdade. Face à impraticabilidade crescente das tecnologias alienantes e desapropriadas da alopatia moderna, o que está em causa no renascimento de sistemas como o taoísmo, a acupunctura, o ayurveda, a fitoterapia tibetana - tudo aquilo a que a própria OMS apela e com urgência na campanha de saúde para todos no ano 2000 - é a sua profunda adequação ao ser humano, a sua indesmentível eficácia e a sua plena funcionalidade, já, no mundo actual. Não são peças de museu etnológico, como boa e rica gente desejaria, mas técnicas (algumas de rigor geométrico) que estão para as curvas e para as curvas difíceis.
Se nos é lícito lembrá-lo, o adjectivo «holístico» colocado junto destas técnicas tradicionais, vem da Idade Média europeia e da tradição astrológica mais genuína. Quando se constata que o que está em baixo é igual ao que está em cima, quando se retoma a unidade homem/natureza, micro/macrocosmo, a concepção holística do homem e portanto da medicina, renasce. Com a ajuda da grande medicina tibetana que está aí à porta, vai crescer robusta, saudável e sem complexos.
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(*) «A Arte de Curar no Budismo Tibetano - A Cura do Diamante» , Drª Terry Clifford, Editora Pensamento, São Paulo (**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 23 de Outubro de 1990 , secção «Livros na Mão»

terça-feira, 9 de agosto de 2011

segunda-feira, 25 de julho de 2011

ROGER CAILLOIS NA BIBLIOTECA DO GATO



MIRCEA ELIADE NA BIBLIOTECA DO GATO



O ETERNO RETORNO NA BIBLIOTECA DO GATO




FLAMMARION NA BIBLIOTECA DO GATO






FRANÇOIS RAULIN NA BIBLIOTECA DO GATO

CARL SAGAN NA BIBLIOTECA DO GATO


78 – CARL SAGAN E A ORDEM CÓSMICA

Falando de Biblioteca de Alexandria e do que nos resta fazer até 21 do 12 de 2012 – juntar algumas peças de um puzzle que foi pura e criminosamente incendiado - , há um autor que temos também de lembrar, Carl Sagan, autor do livro «Cosmos» e de outras obras interessantes.
Esteve obviamente ao serviço do Establishment como lhe competia e embora se reclamasse de uma certa independência, mas procurou lançar uma ponte de algum e honesto entendimento entre os dois lados: ciência e sabedoria original.
Na sua série de 13 videocassetes – com o título «Cosmos»– é evidente que ele tem que tomar partido pela ciência contra os «místicos» mas isso é um abuso de linguagem a que os ilustres cientistas da ciência ordinária nos habituaram.
Como felizmente nem todos pensam pela cabeça deles, podemos sempre recorrer às fontes eternas da Sabedoria – Egípcia, Maya e Taoísta, por exemplo - e de vez em quando sacar dos seus gigantescos e caríssimos aparelhómetros de radioastronomia, algum proveito que se aproveite.
Nada de rancores, porque não somos nós, humanos e humanoides, que iremos fazer justiça no Dia do Juízo Final. Deixemos isso a quem manda na ordem cósmica.
[ver psicostasia e deusa maat]

HUBERT REEVES NA BIBLIOTECA DO GATO



quinta-feira, 30 de junho de 2011

ACTUALIDADE DE RAMON LULL-III

quinta-feira, 30 de Junho de 2011-; Texto expurgado de algumas alarvidades e que deverei conservar para Trajecto AC-CF

INCENDIÁRIOS DA IDADE MÉDIA:MÍSTICOS SÃO FOGO

Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 17.04.90, na secção do autor «Livros na Mão»

Os místicos da (tenebrosa) Idade Média são fogo. Não contentes em terem incendiado a Europa das cruzadas e da fé em Deus, preparam-se também para pegar fogo a esta sociedade caquética do horror tecnoindustrial.
Bem amolada, pois, fica a tecnoburocracia reinante na Europa do Mercado, se de facto está em curso, como tudo indica que está, um novo processo revolucionário, um novo renascimento místico que, com rastilho na heresia de ontem e de hoje, irá fazer aos tecnocratas o que os cristãos das cruzadas fizeram às hostes barbarescas. Migas.
Há sinais, no horizonte editorial, de que a grande tempestade se aproxima e de que não ficará pedra sobre pedra, pois o fogo místico anda a atear--se, com a ajuda de alguns eremitas e modestos monges medievais, sem vergonha nem temor. Eles irão incendiar muitos mais hectares de florestas do que aqueles que os fogos consomem todos os verões em Portugal continental.
Segundo o próprio movimento editorial dá mostras, os próximos tempos já não serão só de renascimento lírico e romântico mas também metafísico. Daí que, à cautela e lendo a história ao contrário, Umberto Eco tenha preconizado, antes ainda de ser catedrático, um novo «Medioevo». Porque o lírico e o romântico, para não serem delíquio anémico, precisam do fogo místico como pressuposto a assoprá-los. Tal como os magos alquimistas assopravam as labaredas dos seus alambiques.

Monstros do bestiário universal
Nos últimos meses, três obras aparecidas em língua portuguesa anunciam que está próximo o advento da civilização e que a barbárie recuará finalmente para os confins do Inferno, onde se encontrava no dealbar da Idade Moderna.
Pertencem essas obras a dois místicos espanhóis - claro! - Santa Teresa de Ávila e Raimundo Lull. São essa obras: «Morada» e «Seta de Fogo», daquela santa e «Livro do Amigo e do Amado», do eremita franciscano que foi, pela Igreja, cognominado o «Doctor Iluminatus», beato e mártir.
Mas chamar «espanhóis» a esses dois monstros do bestiário universal é, desde togo, restrito, ridículo e quase infame, é desde logo a primeira esparrela em que se cai ao rondar fogo de tal natureza, zona tão secreta e cifrada da realidade como é esta dos comportamentos místicos, experiências-limites que ninguém define, horas de ponta no tráfego da literatura e da cultura.
Mais concretamente e chamando aos bois pêlos seus nomes: Raimundo Lull é catalão (claro) e, mais concretamente ainda, de Palma de Maiorca - uma das ilhas Baleares que ficaram emersas depois da Atlântida (Mu) submergir. É, portanto, celta e druida depois da letra.
Santa Teresa, por sua vez, é de Castela Velha, o que, de espanhol, em sentido moderno, também talvez não tenha muito.
Quer dizer que, se o fogo místico incendiar de novo esta podre Europa do hedonismo consumista, o que desde logo irá mudar do avesso é o mapa das nacionalidades e das independências consumadas.
A Leste, o mapa já está mudado e a ficar mais colorido; a Oeste, esperemos em Deus e em Marx que também.

O inocente franciscano
Do que as nacionalidades têm para oferecer à Comunidade do hipermercado comum, o melhor são ruínas: e bem exemplificativo é o caso de Lull, esse furacão tresloucado que deixou (só) 256 obras (quem as conta é a insuspeita Enciclopédia Verbo) mas que ainda teve tempo de pregar a fraternidade cristã aos gentios (o que foi chover no molhado já que a fraternidade veio de lá), aprender árabe com um jovem efebo desta nacionalidade, mandar para o inferno de Dante o inquisidor Aymerich, deixar-se empalar corno herege, antecipando assim, em estilo ficção científica, o que iriam fazer ao místico do século XX que foi P.P. Pasolini.
Lull ficaria assim, para sempre, entalado na garganta da Santa Madre Igreja como o osso mais duro que ela alguma vez teve de engolir. E ainda não engoliu, como se comprova pelas bulas e excomunhões lançadas (ontem, hoje, amanhã) àquela parte da vida e obra do «Doctor lluminatus» que não é conforme aos bons costumes e às conveniências da corte, «verbi gratia» a Alquimia...
«O Livro do Amigo e do Amado», agora lançado pela editora Cotovia, é o caso mais conhecido e popular (por isso o mais perigoso) de heresia «lulliana», falando com Deus de homem para homem, num espectáculo que os mais susceptíveis classificariam hoje de obsceno.
Mas talvez pior do que a mística «do amigo e do amado» - que deve ter posto o inquisidor Aymerich pior do que uma barata - foi a heresia alquímica e cabalística deste inocente franciscano, cuja paixão pela vida o havia de matar e que, em troca dos preceitos cristãos impingidos aos árabes, destes recebeu a sabedoria eterna da transmutação alquímica.
Das 30 fichas biográficas que compulsei sobre Lull, mais de metade classificam de «apócrifas» as suas obras de alquimia e cabala, que não cabem, evidentemente, no corpete curtinho da ortodoxia.
De «apócrifo», porém, não conseguiram classificar este «Livro do Amigo e do Amado» que assim chegava. em pura língua catalã, até aos nossos dias, como a mais pesada herança, a mais desafiante pedra de escândalo que a moral puritana e vitoriana poderá admitir.
Note-se, em rodapé e a tempo, que a primeira referência, em Portugal, a esta "jóia da literatura catalã» (como diz a insuspeita Enciclopédia Verbo) se deve ao poeta místico e por sinal alentejano Raul de Carvalho, nos seus «Poemas Inactuais» (Portugália, Lisboa, 1971, página 58).
Hereges com hereges devem ficar, em comunhão de vida, mesa e cama, «Les beaux esprits se rencontrent».

Actividade de alto risco
A propósito de comunhão, mesa e cama, vem Teresa de Ávila, esse outro monstro tresloucado da mística castelhana da idade de ouro, cem vezes pior, à luz dos códigos civis e morais, do que o herege Lull.
A expressão «fogo místico», como diria Umberto Eco, deriva mesmo desse facto: Teresa e Lull desafiaram de tal maneira o «establishment» da época, de tal forma abalaram o Mercado Único europeu, que o fogo dos infernos se lhes ateou às vestes e os bombeiros da Inquisição sobre eles se teriam de abater, prefigurando, profetizando esse monstro, Joana D'Arc, igualmente reduzida a torresmos.
Fogo e poesia andaram, assim, durante muito tempo ligados à Alquimia, quando a literatura, como queria André Gide, Michel Leiris e outros surrealistas, ainda era uma actividade de alto risco e alta voltagem.
Agora que a literatura passou a renda de bilros ou ao nível do salpicão da salsicha, poesia deixou de estar assimilada com fogo místico e alquímico.
Não quer dizer que, de vez em quando, um transviado e tresloucado, rasgando a noite escura, fugindo à vigilância dos críticos, não faça outra vez da poesia o lugar-comum de Deus e o terreno privilegiado da heresia e/ou alegria criadora.
É o recente caso de Fernando Pinto do Amaral, com «Acedia», a referir nesta página mais pormenorizadamente no enquadramento da mística portuguesa do saudosismo a que em breve nos aplicaremos com afinco e esferográfica.
Afonso Cautela

quinta-feira, 9 de junho de 2011

LAWRENCE DURRELL NA BIBLIOTECA DO GATO





1-4 - Durrell-md-1-2>quinta-feira, 6 de Novembro de 2003
1-3 sexta-feira, 20 de Dezembro de 2002

durrell-1> releituras mágicas - site «o gato das letras» - caminhos do maravilhoso - antecedentes da hipótese vibratória

O LABIRINTO DO CONHECIMENTO

O LABIRINTO DE LAWRENCE DURRELL OU ONDE A LITERATURA ENCONTRA
A TEORIA DO CONHECIMENTO(*)

Do talento ao génio vai uma distância que nem todos os escritores sabem e podem percorrer. Dir-se-ia que o talento é inimigo do génio e quando um escritor nos aparece brilhante, eficaz, senhor de si e dos seus recursos, domador ou malabarista exímio das palavras, implacável virtuoso da literatura, quase sempre desconfiamos pois raramente esses dons naturais - esse talento, essa arte - vão acompanhados daquela longa paciência ou insistência no fracasso a que se chama génio.

Lawrence Durrell é um caso de talento, um caso sério de talento. Tem muitas, inúmeras qualidades de escritor: ágil, agradável, subtilmente sarcástico ou irónico, fácil, aliciante. Trata os assuntos com leveza e sabe contar histórias: principalmente sabe contar histórias. E, em saldo final, há nele uma bonomia, uma boa fé, um optimismo mitigado que o torna simpático ao crente e ao descrente. Uma certa ambiguidade nas posições tomadas confere-lhe ou acentua-lhe ainda maior encanto e maior sedução. As suas personagens, nitidamente desenhadas, sem nunca atingirem a dimensão de tipos, símbolos ou mitos, têm no entanto vida, autenticidade, espessura humana. Tudo isto são qualidades mais que suficientes para desconfiar de Lawrence Durrell, para crer que ele é mais uma vítima do excesso de talento. E, no entanto, cremos possível provar a existência do génio ou impulso verdadeiramente criador na sua obra. Vejamos onde e como.

No romance “O Labirinto Negro” (**) traduzido por Daniel Gonçalves que soube transmitir todo o colorido e vigor do original, Durrell vai buscar à mitologia grega a história do labirinto e do fabuloso Minotauro desse mítico labirinto. A existência provável e possível de um labirinto numa ilha do Egeu seria o centro ideal para Durrell e o seu gosto pelas atmosferas míticas encontrou aqui esplêndida matéria-prima.
Durrell resolveu escrever a sua versão do mito (Minotauro incluído), actualizá-lo e torná-lo funcionável para o gosto moderno. E postos em acção todas os seus recursos de narrador, o labirinto, a excursão ao labirinto e a derrocada dentro do labirinto aparecem-nos com uma verosimilhança e nitidez tais que a advertência final do autor - «as personagens descritas neste livro bem como os acontecimentos são totalmente fictícios” - é que nos parece incrível, inacreditável.

Tudo isto, porém, não basta. Como ele, muitos escritores há que sabem contar histórias, delinear perfis psicológicos, brincar com coisas sérias, pôr sal e pimenta na linguagem, criar, em duas penadas, climas e situações, dar-nos descritivos inesquecíveis pela beleza ou pelo rigor. Nada disto porém seria ainda suficiente para considerar Durrell um escritor “diferente”, um escritor “à parte”. Todo esse talento, só por si, não bastava se não estivesse ao serviço de uma necessidade criadora muito mais profunda. Aparentando leveza e frivolidade, Durrell consegue levar, melhor do que nenhum outro, a água ao seu moinho, sem que ninguém tenha coragem de lhe pedir contas... filosóficas.
Serve-se do romance para pôr problemas e para promover um trabalho de subversão gnoseológica. Muitos outros escritores, aliás, preocupados em pensar “diferente”, em filosofar fora dos sistemas e das ideologias, recorrem a processos igualmente insólitos e bizarros. Às vezes nem se dá por tal mas o facto é que o “literário” deixou de ser apenas literário e, mais cedo ou mais tarde, de longe ou de perto, invadiu o campo da interrogação filosófica. Assim acontece com alguns escritores do novo romance e na literatura moderna, de Dostoievki para cá, é muito difícil encontrar um escritor de facto grande cujo pensamento se possa negligenciar. O facto reside talvez nisto: a epistemologia foi minada pela base e as teorias do conhecimento que antes se arrumavam em duas únicas prateleiras distintas - idealismo a um lado, materialismo a outro — já não cabem hoje nesse esquema; e são os filósofos disfarçados de romancistas, de poetas, de dramaturgos que, embora de maneira velada, clandestina, ambígua (porque os guardas da ordem ou ortodoxia filosófica estão vigilantes...) a reproblematiza.

A excursão real ou inventada a um labirinto real ou inventado onde acontece uma derrocada real ou inventada, tudo isso, dentro do plausível ou possível, podia ter acontecido, podia até, por um acaso feliz, ter havido por lá um repórter - cronista, jornalista ou historiador - que relatasse como aquilo foi. Como aquilo foi - mas só até à derrocada. Os jornais do tempo teriam mesmo dito que foi uma “horrível catástrofe” mas, após a derrocada, tudo ficaria no limbo do silêncio. O homem só sabe e conhece o que vê, até onde vê. Se deixa de ver - deixou de saber e conhecer.

Exactamente aí — onde o repórter teria desistido de contar a história, por não ter sido possível prosseguir e ver o que havia - exactamente aí é que o romance de Lawrence Durrell deixa de ser um mero exercício de estilo, uma história mais ou menos fascinante de aventuras, o relato em suspense do que aconteceu a um grupo real ou inventado de excursionistas. Exactamente aí - embora sob o aspecto ainda aparentemente frívolo e leve do autor - é que a coisa começa “a sério’, e que Durrell inicia o seu mágico trabalho de inventor puro, a sua conjectura ou suposição no campo do infinito verosímil, o seu cálculo de probabilidades com rigor geométrico. Exactamente aí é que a literatura toca o conhecimento e os limites do conhecimento.

A aventura prossegue, com o mesmo colorido, o mesmo à-vontade narrativo, o mesmo dom da observação, da mesma perspicácia na captação do invisível ou do subtil, o mesmo sarcasmo e até crueldade no apontar defeitos e fraquezas da condição humana: Durrell não se detém onde o presumível repórter se teria detido - porque o escritor é mais do que um descritor do que se viu ou seria possível ver, e mais, muito mais que um mero narrador de histórias para entreter o leitor nas horas vagas. Durrell vai conhecer pela imaginação o que já não seria captável pelo conhecimento sensorial. Ali onde o conhecimento empírico desiste, Durrell entende que a imaginação pode e deve continuar trabalhando, correndo embora os riscos inerentes a quem se aventure em pleno desconhecido, nos domínios impenetráveis do provável mas impossível. Razão têm os que afirmam o “perigo” latente nos romances de Lawrence Durrell, perigo para as ordens filosóficas reinantes, perigo que o escritor no entanto tem obrigação de correr: um pirronismo fundamental aliado a uma “destruição do tempo” que deixou de ser o fio uno e único para ser uma incógnita suspeita de idealismo. No Quarteto de Alexandria a realidade tem 4 versões que abrem o campo a X versões, sendo X o caminho para a anarquia ou subversão gnoseológica e o caos metafísico: o perigoso “labirinto" de Lawrence Durrell e o iminente perigo de uma derrocada..
A voz quietista de Durrell, a sua filosofia moral, a sua ética ou ausência dela aparece onde o casal Truman vai encontrar a mais estranha das personagens no mais estranho dos lugares: O Tecto do Mundo, onde o mistério e pavor primitivos rodeiam as coisas, a paisagem, as pessoas e a luz de uma poética ou mítica aurora. Durrell perfilha claramente esse “retiro” imaginário no imaginário, esse retiro num mundo totalmente “fora do mundo”, após a peregrinação num labirinto que bem pode ser neste aspecto o símbolo da civilização ocidental, onde o homem se perdeu de si próprio (alienou), onde uma derrocada iminente (atómica? termonuclear?) o ameaça e onde o fabuloso Minotauro simbolizaria a revolta da natureza contra o homem que drasticamente a quis “domesticar”, transformando o monstro numa pacífica vaca leiteira... Pode lamentar-se este aspecto cínico da sua moral — mas quem não lhe perdoará o mal que isso faça pelo bem que sabe? Aliás, Durrell, insular e singular como todos os poetas, aceita-se ou recusa-se e não há que julgá-lo em nome de nenhuma moral construtiva. Porque é ele, enquanto poeta, enquanto criador, a moral e a lei.

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, com este título, no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em Novembro de 1964

(**) «O Labirinto Negro», de Lawrence Durrell, tradução de Daniel Gonçalves, Editora Ulisseia, Lisboa, 1964
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1-3 -durrel-2-ls> sexta-feira, 20 de Dezembro de 2002


«UM SORRISO NOS OLHOS DA ALMA»(*)

O CULTO DA AMIZADE ENTRE OUTRAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA(**)


19-8-1990-Nome grande da literatura contemporânea, Lawrence Durrell pode permitir-se pequenos «divertimentos» autobiográficos como este que, sob o título de «Um Sorriso nos Olhos da Alma», a Quetzal acaba de lançar em língua portuguesa(*).
Lawrence Durrell, que nasceu em 1912 na Índia ( Himalaias), facto que, como se verá neste livro, não foi de modo nenhum acidental mas marcou todo o seu percurso de homem e de escritor, tem o génio da comunicabilidade e a sua imaginação é sempre brilhante, quer quando cria esse romance-chave do nosso tempo que é «O Quarteto de Alexandria», quer quando tenta a narrativa de «suspense» com esse fantástico romance-fábula que se chama «O Labirinto Negro», quer quando troca cartas com outro grande do nosso tempo, o escritor Henry Miller, em muitos aspectos seu homólogo.
Sobretudo, ele tem a arte de transformar um pequeno «fait-divers» em ponto de partida para as histórias mais fantásticas ou as reflexões mais profundas sobre o destino humano. Ambas as narrativas deste volume partilham esse seu génio transfigurador, ainda que ambas se possam apenas considerar relatos meramente autobiográficos, na medida em o narrador se assume como o próprio autor, sem qualquer disfarce ou pseudónimo.
Lêem-se como prodigiosos exercícios de imaginação, com base em uma linguagem fulgurante, que, em todas as circunstâncias, faz o «estilo Durrell». Esta arte de transmutação alquímica da palavra é, aliás, um dos pontos de contacto mais curiosos entre Durrell e o seu «irmão gémeo», Henry Miller, seu correspondente e amigo de sempre.
Contando coisas da sua vida, não é monótono nem vulgar, mas empolgante. Duas personagens marcam as duas histórias deste pequeno grande volume de Durrell: o chinês Jolan Chang, que apronta um livro sobre sexo e taoísmo na casa do escritor, onde fazem ambos constante «brain storming»; e Chantal de Legume que, com ele, percorreu os locais onde Nietzsche se declarou a Lou Andréas-Salomé, na tentativa de melhor compreender o autor de «A Genealogia da Moral» e «A Origem da Tragédia». Com o retrato entre o real e o fantástico destas duas figuras, Lawrence Durrell avança nos meandros da alma humana com a lucidez vertiginosa e o encanto de linguagem mágica que são seu timbre e que nele não dão mostras de envelhecer. Talvez porque tenha aprendido com o sábio Jolan Chang, e suas doutrinas sobre o orgasmo, o segredo de nunca envelhecer.

O CULTO DA AMIZADE

Saber se uma «amizade particular» pode ter mais encantos que uma devoradora paixão física, é apenas um dos múltiplos caminhos apontados neste livro de Lawrence Durrell, breve mas carregado de consequências e direcções, como uma encruzilhada, uma rosa dos ventos de onde se parte para os quatro pontos cardiais, para os mil pontos cardiais do universo e da vida.
São dois relatos da Amizade que o autor cultiva, tal como o seu inseparável companheiro Henry Miller, como um jardim suspenso. Dois encontros, como já se disse, constituem o ponto de partida para a história: um, com o sábio taoísta que apronta um livro sobre a sabedoria primordial do «ki» energético para uso do hedonismo ocidental; outro, com a jovem Lou, uma sensível alma de mulher à procura, como ele, do mistério que foi a passagem mortal pela vida de um senhor chamado Frederico Nietzsche.
É com estas bagatelas que o livro, o pequeno livro de L.Durrell, se basta. Mas não esquecer que o «Tao Te King», constantemente citado pelo escritor, ainda tem menos páginas do que esta narrativa, sem deixar por isso de conter toda a sabedoria das fontes primeiras e sem deixar de constituir, por isso, a placa giratória de onde emana a essência da sabedoria «yin-yang».

GENES PROPÍCIOS

Para um ocidental (de)formado nos pressupostos e preconceitos de uma cultura baseada na oposição dos contrários, poderá considerar-se verdadeiramente notável o esforço de aproximação e «aggiornamento» realizado pelo autor de «Mountolive». Irlandês pelos genes da mãe e inglês pelos do pai, mas nascido geograficamente perto do País da Sabedoria, essa circunstância meramente tópica tê-lo-á ajudado, talvez como predestinação, a dialogar com a dialéctica dos contrários - a lógica do contraditório - e a demonstrar, na sua obra romanesca, a vitalidade criadora que a síntese dos opostos necessariamente pode motivar. Mas é também isso que o leva a não compreender aquilo a que curiosa e insistentemente chama heterosexualidade, nas acesas discussões com o monge chinês seu hóspede.
Este rápido apontamento de memórias transfigurado em ensaio de iniciação e karma yoga, relaciona-se de maneira exemplar com esse princípio universal da doutrina taoísta: a parte está no Todo e o Todo está na parte. Deriva daí a sensação de plenitude que um texto como este, pequeno de tamanho, nos consegue transmitir.
Servindo de alavanca à faina iniciática de um escritor que foi sempre muito mais do que mero literato de consumo, «Um Sorriso nos Olhos da Alma» poderá constituir, para o desprevenido, alienado, desatento e infeliz consumidor de «best-sellers», a melhor introdução ao mundo interior de Durrell, um autor que trouxe para a literatura ocidental o fascínio da sabedoria iniciática e esotérica, amplamente demonstrado, por exemplo, em livros seus como «O Labirinto Negro» (1961), curiosamente um dos menos citados e mesmo omisso em fichas de dicionário de origem inglesa.
Se o «small is beautiful» - e é preciso sabê-lo para entrar na onda de Durrell - esta narrativa breve vale por todos os extensos relatos da abominação e da abjecção, ou seja, o fardo insuportável que dá hoje pelo nome-cão de romance contemporâneo.

PARA LÁ DO «BLÁ-BLÁ»

Um dos pontos cardiais que se destacam nesta «rosa dos ventos» é a valorização do «acto imediato», o que um revolucionário traduziria por «acção directa», face ao «blá-blá» verbalista e ao raciocínio desactivado de que padecemos.
Se a perspectiva é a da dialéctica taoísta, o texto de Durrell pode aspirar a ser uma iniciação à iniciação, pesem embora nele ainda os genes do hedonismo ocidental, corruptor de menores, perdulário de energias, condenado à eterna entropia: só por isso ele hesita em reconhecer, nas fontes que tem ao pé, o primado da sabedoria sobre a alienação ideológica, os níveis de percepção sensorial e outros enganos daí advindos.
Ele diz no livro, aliás, que faz as malas e abala para Lhassa, capital do Tibete, se um dia quiserem fazer dele mais um intelectual à francesa. Neste sentido, a presença de Durrell na ordem literária bem-pensante, tem sido e continua a ser saudavelmente polémica.
Quando já não se aguenta mais a «kunderização» da literatura, há sempre o recurso de ameaçar a ordem estabelecida e os críticos da moda com a metáfora do Manuel Bandeira:«Vou-me embora para Pasárgada». Alguns já lá estão, embora tenham de continuar a fazer corpo presente nesta choldra das crises bolsistas, de oito em oito anos, a que se reduz, afinal, a gloriosa cultura ocidental de batatas e petróleo.
Durrell é dos que conseguem estar na charneira. Ele deixa o quarteto de Alexandria, deixa o quinteto de Avinhão, deixa os limões amargos e as águias brancas sobre a Sérvia, o livro negro e mesmo o labirinto da mesma cor, mete-se ao caminho e pisga-se.
Sabe que encontrará, nas imediações dos Himalaias, um velho lama tibetano, «bem constituído e rubicundo», com um sorriso de simpatia, habitual nos habitantes da região, dirigir-lhe em inglês as únicas palavras que sabe proferir nessa língua: «Olá, meu caro, benvindo à nossa terra das neves eternas.»
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(*) «Um Sorriso nos Olhos da Alma», de Lawrence Durrell, tradução de Helena Cardoso, Quetzal Editores

(**) Este texto de Afonso Cautela, indubitavelmente 5 estrelas, deve ter ficado, indubitavelmente também, inédito. Há uma versão reduzidíssima, em wri, essa é que deve ter aparecido em «Livros na Mão»■

quarta-feira, 11 de maio de 2011

INTELIGÊNCIA DA CÉLULA NA BIBLIOTECA DO GATO




GOOGLE REGISTA:

1. http://catbox.info/big-bang/gatodasletras/deepak-1.htm
2. http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&cr=countryPT&q=+site:pwp.netcabo.pt+intelig%C3%AAncia+da+c%C3%A9lula+e+psicosom%C3%A1tica

FILES AC RELACIONADOS

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INTELIGÊNCIA DA CÉLULA E PSICOSOMÁTICA

Enzimas e hormonas são dois conceitos da fisiologia que intuitivamente sugerem funções de bioinformação, sinais mensageiros que emitem informação.
Lembro, por exemplo, o que nos é dito da hormona inibidora da diurese.
Ninguém pode negar, por outro lado, de que maneira as emoções estreitamente se ligam ao fluxo diurético. A relação ou ligação entre emoções e hormonas não escapa mesmo ao observador leigo e desatento.
Estejamos nós, estudiosos da bioinformação, minimamente atentos a mais essas interligações.

QUÍMICA DO CÉREBRO

Claramente também uma questão de bioinformação é a química do cérebro (e a famosa ciência psicosomática!) sugerindo que a comunicação intercelular comanda, inclusive, as nossas emoções.
Como diz Deepak Chopra, citando um livro que foi best-seller nos Estados Unidos, o leite, o frango, as bananas e os vegetais verdes fazem parte dos alimentos «felizes», pois estimulam a dopamina e mais duas outras substâncias cerebrais «positivas». Os doces e as gorduras, em contrapartida, são alimentos tipicamente tristes, porque estimulam a acetilcolina, uma substância química negativa.
Para sabermos mais sobre esta química do cérebro, lembro o que a ciência analítica já sabe sobre as hormonas e recomendo a leitura dos seguintes livros em edição portuguesa :
Jean-Marie Bourre – Comida Inteligente – A Dietética do Cérebro – Ed. Gradiva, Lisboa, 1993
Eva Campo - Alimentar o Cérebro – Alimentos e Substâncias mais eficazes para estimular a nossa actividade mental – Ed. Estampa – Lisboa, 1999
E porquê apenas estes dois títulos, se a ciência já tem publicado milhares sobre a química e bioquímica do cérebro? Precisamente porque são dois dos poucos a situar-se, a partir dos alimentos e da dieta, na linha ascendente ou holística que nos religa a esferas e níveis cada vez mais globais do conhecimento e da vida.
Neste, como em outros casos, a ciência analítica (linha da esquerda de sentido descendente) pulveriza os conhecimentos até ao mais ínfimo pormenor, afastando-nos do essencial que, por sua vez, está cada vez mais em cima e deve seguir a linha vertical ascendente.
O exemplo que acima citámos, dos alimentos «tristes» e «alegres», pode ser confirmado na medicina tradicional chinesa (a primeira medicina holística do mundo) e no sistema dos 5 elementos em que ela se baseia.
Por experiência própria, posso testemunhar que, de facto, abusando dos doces e gorduras, a melancolia, a tristeza, o aborrecimento, o fastio de viver são mais acentuados. A esfera energética em causa é a Terra ou Baço-Pâncreas/Estômago. O que já se sabia, há milhares de anos, está agora a ciência a redescobri-lo, conforme os dois livros acima citados confirmam.
«A alegria torna mais lento o fluxo da energia; quando alguém ri sem poder parar, torna-se incapaz de se movimentar» - diz um autor chinês, que acrescenta:
«Na tristeza, a energia não flui, goteja. Sobrevém acidez.». E ainda: «O medo impele a energia para baixo; há uma queda violenta de líquido claro. (Urina clara é muitas vezes expelida depois de um susto)»
Estas citações apresentadas por Félix Mann, no seu livro sobre acupunctura, exemplificam de maneira muito expressiva até que ponto a medicina tradicional chinesa, além de holística ou por isso mesmo, é a primeira psicosomática do mundo, que talvez a psicosomática moderna não consiga superar.
Mas o livro que conheço mais fascinante sobre esta psicosomática milenar é de um autor moderno, que aliás já esteve nesta sala a falar mas, infelizmente, sobre outros assuntos mais prementes. Isso não o impede, no entanto, de ser uma personalidade incontornável da medicina tradicional chinesa em geral e da acupunctura em particular.
Refiro-me ao Dr. Yves Requena e ao seu livro «Acupunctura e Psicologia» publicado em1990 pela Andrei Editora , de São Paulo, conhecida pelos preços exorbitantes dos seus livros, considerados técnicos e não de divulgação.

CÉREBRO E SISTEMA NERVOSO

Equívoco frequente na literatura médica sobre a actividade fisiológica do cérebro, deve ser assinalado. Sempre que se fala de informação e de corrente que faz passar a informação, a ciência médica localiza imediatamente no sistema nervoso a sede dessa corrente informativa.
Quem sou eu para contrariar a senhora autoridade da ciência médica? No entanto, acho que seríamos mais correctos ao situar no ADN molecular a sede de toda a intercomunicação.
É restritivo considerar a passagem de informação apenas em dois órgãos: sistema nervoso e cérebro. Como nos diz a medicina chinesa dos cinco elementos (madeira, fogo, terra, metal e água) a inteligência do organismo está em todos eles e todos eles falam uma linguagem que teremos de reapreender: felizmente que temos já, entre nós, além de bons acupunctores, bons mestres do yin-yang e dos cinco elementos que nos ajudam nessa tarefa. É mais um contributo para a linha vertical ascendente do nosso sonho.
Se me disserem que um medicamento químico também introduz uma informação no organismo e que é essa a sua função terapêutica, estou de acordo. Mas terei de acrescentar que, sendo o medicamento tóxico, a informação torna-se contra-informação.
Informação tóxica é contra-informação e, portanto, anti-terapêutica. As sequelas do medicamento químico são exactamente a esse nível: o organismo fica «tonto», é como se a sua natural inteligência se perdesse. Porque há uma «inteligência da célula», e enquanto a função dos alimentos, dos bons alimentos e dos medicamentos naturais, é respeitar e promover essa «inteligência da célula», a química farmacêutica tem o papel de a confundir.
É mais um caso em que as duas linhas do nosso sonho são mesmo de sentido contrário.
Defendida por Deepak Chopra e alguns (poucos) biólogos, a tese da «inteligência da célula» abre inesperados caminhos à ciência em geral e à ciência médica em particular.
É um bom item para pesquisar na Internet e nos livros. Tratar e curar não é intervir de maneira cada vez mais drástica e violenta, como fazem aliás as duas medicinas, alopática e naturopática, embora uma mais violenta do que a outra, mas abrir espaço a que a inteligência da célula se manifeste, sendo ela a curar e não uma acção externa qualquer, por mais sintomas que essa acção diga tratar.
O que vai dar também à questão da imunidade: a verdadeira cura é a imunidade natural do organismo que a realiza. O resto são sintomas que mais ou menos se mascaram ou abafam. Segundo o sonho de alguns, Imunidade tem muito a ver com esta inteligência da célula e não apenas com alguns órgãos específicos onde é costume a ciência médica moderna sediar a imunidade: glóbulos vermelhos e espinal medula, por exemplo.
A concepção da imunidade segundo a ciência analítica é, na melhor das hipóteses, apenas uma parte da questão. Também aqui, queremos uma ciência alargada.

domingo, 8 de maio de 2011

ANTÓNIO QUADROS: UM PENSADOR POLÉMICO




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A IDEIA DE PÁTRIA EM ANTÓNIO QUADROS, UM PENSADOR POLÉMICO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», na secção «Livros na Mão», 16 de Setembro de 1989

O tónico optimismo de António Quadros vem de novo contagiar de esperança os seus leitores, entre os quais me incluo (desde, pelo menos, 1947...) com uma nova obra de longo fôlego, «A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos 100 anos», síntese do muito que o autor tem ensaiado e analisado no seu laboratório de pensador, descobrindo poetas, propondo teses, defendendo mitos maiores contra os menores, enfim, dando o melhor exemplo do «clerc» português, intelectual do seu tempo e contemporâneo do futuro, sempre empenhado na viagem colectiva, mais importante do que os umbigos individuais.
Curiosa e paradoxalmente, o «clerc» do Julíen Benda, revisto entre nós por Raul Proença, será, em principio e como racionalista, um dos termos a que A. Quadros se oporá no quadro das suas animosas antinomias de intuicionista nato e confesso.
O positivismo vem logo a seguir como outro alvo visado pelo existencialismo místico que A. Quadros defende.
E por aí fora: o pensamento deste escritor é um combate interminável contra os «erros» epistemológicos onde a cultura portuguesa tem, segundo ele, naufragado, século após século, traindo-se e abastardando-se, num fatalismo do disparate que nos parece atávico.

MISSÃO MESSIÂNICA

A coerência na procura intelectual entendida como uma missão messiânica, é uma das faces mais fascinantes deste autor.
Defensor de uma tese ou ideia-força, resumida num conceito alargado de Pátria, os seus ensaios são pistas de investigação destinadas a documentar e comprovar essa ideia-chave.
Se caminhar é sinónimo de errar, a viagem filosófica de António Quadros, por vias ainda não trilhadas, tem a humildade dos erros reconhecidos e inevitáveis a quem erra (caminha) mas também a novidade das certezas ganhas e o empenho das causas a triunfar.
Perigoso? Não muito: porque a pátria de Quadros está longe de qualquer dogmatismo ou ideologia fechada e totalitária, é mesmo um bom antídoto contra as ideologias do Gulag.
Pensamento em evolução, articulando com paciência de santo as peças soltas de um «puzzle» complexo e interminável que é a loucura portuguesa, ele escapa ao dogmatismo da razão cartesiana, realizando o conceito clássico de ensaismo (quase tão bem ou melhor que o seu adversário de ideias, António Sérgio) como ideação de hipóteses de trabalho sujeitas a confirmação experimental na mesa ou na retorta do laboratório.
Curioso que Sérgio e seus «ensaios» estejam sempre na linha de mira critica de um ensaísta tão lúcido como A. Quadros.
Assume ele as antinomias que têm dado lugar a algumas das mais fervorosas polémicas da cultura portuguesa, entre as quais ressalta o sebastianismo, essa avantesma do nosso pesadelo colectivo, esse mito que ainda não deixou de fermentar.
Na obra «Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista» (1982-83, Ed. Guimarães) Quadros coloca-se entre a tese e a antítese, procurando a posição de síntese relativamente ao mito mais controverso da história portuguesa.
Bons «argumentos» não lhe faltam, quer dizer, personalidades literárias de gabarito, que vão de Bandarra a Pascoaes, de António Nobre a Fernando Pessoa, de Almeida Garrett a José Régio.
Dirão os seus críticos, que se acaba sempre por encontrar aquilo que se procura - como nas análises químicas... E que é sempre possível, armado de argúcia e largo conhecimento dos textos, descobrir nos símbolos as ideias que interessam à confirmação da tese sebastianista (ou outro símbolo qualquer).
A verdade é que, no «reino flutuante» da linguagem cifrada, o decifrador ganha e perde sempre alguma coisa, já que não se trata de chegar a nenhum porto seguro, a nenhum alvo concreto, mas sim e apenas de viajar...

IDENTIDADE NACIONAL NO ROMANCE PORTUGUÊS

No actual romance português, onde o tema da identidade nacional é recorrente, vê António Quadros a confirmação do que vem pregando, como precursor, com indiscutível vigor e louvável cadência, desde pelo menos a década de 70, quando surgiu o jornal «57», onde me honro de ter colaborado a convite de António Quadros.
Referindo-se aos romancistas que conhecem hoje, como diz, «uma enorme fortuna editorial e aparecem a representar a cultura portuguesa a nível internacional», António Quadros escreve: «Estamos perante um sinal de que, mais do que nunca, urge continuar a campanha iniciada no ano-chave de 1957, para nós o ano de tomada de consciência de toda uma geração.»
Com a palavra «campanha» fica claro que o autor se sente investido de uma missão e vocacionado para um apostolado laico que tem realizado de forma entusiástica, mesmo contagiante. É, aliás, um dos traços marcantes dos seus ensaios, esse «élan» de apostolado que manifesta, reforçado pelo ritmo torrencial de publicação que tem mantido, sem desfalecimentos.
«Portugal, Entre Ontem e Amanhã» e «A Arte de Continuar Português» (1976), «Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista» (1982-83), «Portugal, Razão e Mistério- l - Para uma Arqueologia da Tradição Portuguesa (1986) — II - Projecto Áureo ou o Projecto do Espírito Santo» (1987), são apenas alguns dos mais recentes títulos de uma produção inesgotável, onde a quantidade não parece ter sido inimiga da qualidade.

QUEM ACOMPANHA A PEDALADA?

Procurando embora as grandes sínteses, António Quadros tem agigantado uma obra que acaba por prejudicar, pela extensão, aquele primeiro e último desiderato. A sua capacidade de trabalho e de produção intelectual parecem não de um só indivíduo, mas de uma equipa (e talvez o segredo esteja no subconsciente nacional colectivo...).
No entanto, torna-se imperioso ao leitor português acompanhar tão ágil pedalada. E não sei quantas cabeças, hoje, neste país, manicómio em autogestão, terão cabeça para isso.
O que explica talvez o silêncio em volta. Tendo a maior parte dos seus livros um desafio polémico, ninguém no entanto se atreve a responder, quando se trata de analisar tão grande mole de hipóteses e teses. Arruma-se o assunto com um rótulo pejorativo, como já se arrumara, por exemplo, o Sérgio com outro rótulo pejorativo. É destino dos pensadores polémicos, neste Pais, ladrarem no deserto.
Tanto a tarefa é de grupo, que movimentos como a «Renascença Portuguesa» se lançaram nela, no princípio do século, deixando-a no entanto incompleta. Em 1915, Pascoaes escreveu «A Arte de Ser Português", mas antes e depois dele os desvios deste povo (fugindo de si próprio para todos os brasis e índias) parece continuar. Será o nacionalismo português tão paradoxal que se caracterize exactamente pela aversão que temos, como povo, a ser portugueses?

A VENDA DA PÁTRIA

Nesse caso, as démarches de intelectuais como A. Quadros estariam condenadas a uma eterna escalada de Sísifo.
A venda da Pátria portuguesa ao pior internacionalismo europeu que é o imperialismo do dinheiro, da histeria consumista e da ganância bolsista, não deixa grande margem para alimentar a esperança desse 5.° Império do espírito que Pessoa glosou e Quadros reglosa. Saímos da alienação colonialista para entrarmos rastejantes como pedintes na Europa das empresas, onde não vejo lugar para nenhum dos valores da cultura e do espírito que A. Quadros exalta, analisa, carreia, com tónico optimismo.
É um facto que o grande rio do espírito correu sempre oculto, sem dar nas vistas públicas. Mas quando não houver, «in extremis», nem território, todo plantado de eucaliptos, onde irá ocultar-se esse rio, essa ideia de Pátria da qual a obra de A. Quadros é o principal afluente?
Sem uma ordem oculta organizada e de regras internas severas, não vejo como pode a Pátria portuguesa resistir à onda interna e externa de excrementos, violência e terror industrial que ameaçam engoli-la. Francisco Palma Dias, largamente analisado no livro de A. Quadros, seria a ponte possível. O seu verso «onde a terra acaba/amar começa», paráfrase de Camões, resume o universo. A Esperança surge, como diz a Bíblia, quando já não se espera mais nada. Nesse caso, Portugal está maduro: é a hora.
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BIOGRAFIA DE FICÇÃO RETRATA LIVRE-PENSADOR REPUBLICANO: ANTÓNIO QUADROS ESCREVE ROMANCE DE UM FILÓSOFO (**)

(**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», na secção «Livros na Mão», 16 de Abril de 1991

Quem será a figura de intelectual e filósofo portuense retratada nesta biografia de ficção acabada de publicar por António Quadros, com o titulo «Uma Frescura de Asas»? Não sendo a questão mais importante que o livro levanta, não deixa de ser uma das mais interessantes. Descobrir um enigma, desvendar o que permanece velado, anima sempre a nossa costela lúdica e essa proposta, como a de um romance policial, é feita por Quadros a um nível de «suspense filosófico», capaz de arrastar o leitor comum das intrigas superficiais em que o romanesco de consumo o arrasta para o âmago das questões metafísicas. Aquelas, pelo menos, que se encontram abordadas na obra: quem somos, para onde vamos, de onde viemos? Enfim, a clássica e santíssima trindade das perguntas-mãe de todas as perguntas e cuja (falta de) resposta é uma das razões para que certa gente, mais exi-gente, se mantenha viva.

O protagonista do romance que António Quadros, um tanto surpreendentemente, nos apresenta, é um exemplar dessa raça de exi-gente. Não se fica pelo conforto dos dogmas, pelo capacho das certezas, pela ilusão das explicações ditas cientificas. Discute a instituição religiosa tanto como o deserto (de ideias) positivista. Se não fossem as questões de fundo metafísico, dá impressão que essa estranha figura - cujo nome, se bem me parece, nunca é divulgado - mergulharia no passado sem retorno que leva ao tradicional e já clássico (especialmente entre portugueses) desfecho do suicídio. Ninguém se mata por razões filosóficas, está bem de ver, mas o peso do seu pesadelo pode ajudar muito à festa, como se vê neste doloroso percurso da um doente («intratável» pela medicina positivista ainda hoje vigente), contado por ele próprio, em carta a um abstracto amigo, entre 6 e 11 de Novembro de 1915 pelas sete da tarde...
O estratagema do «diário epistolar» encontrado pelo autor é outro dos aliciantes para a narrativa. Afinal, o dilatado tempo de uma vida vem à memória do narrador em cinco escassos dias, em poucas dezenas de horas. O inventário de um itinerário, como um filme passado no vídeo a grande velocidade, regra geral não consome muito tempo real. Mais tempo, conforme se assinala, levou o livro a escrever entre Abril e Maio de 1990, conforme o autor indica. Local: Vale de Óbidos.

ESCREVER AO RITMO DO PENSAMENTO

«Novela filosófica» ou «biografia intelectual» de um livre-pensador em plena eclosão do regime republicano, na cidade do Porto, o novo livro de António Quadros é também a síntese das suas próprias inquietações filosóficas e existenciais a que, ironicamente, ele chama de «teólogo filosofante». Cartas a um amigo (vago, sem nome e sem rosto?), escritas na cama de hospital onde se encontra convalescente de uma operação (à próstata?), o personagem-narrador vive no palco das ideias o seu drama existencial: não poder ser um «homem completo», ou seja, segundo o esquema proposto, ter uma relação «normal» com as mulheres. O encontro dele com D. Helena, na casa desta, a pretexto de um «chazinho», é o «pivô» da parte (melo)dramática desta história, desta biografia, desta vida romanceada e que, no estilo sempre cativante de António Quadros, conta mais das suas próprias vivências intelectuais do que retrata personagens ou descreve situações de alteridade.
A «sinceridade» continua a ser a marca deste homem, escritor e filósofo - deste «clerc» no sentido que lhe dava Julien Benda - que leva tão a sério o oficio de viver como o de pensar e escrever. A novela de confissões filosóficas agora publicada - romance numa cabeça? - «corresponde para o autor - tal como se escreve na capa - a uma pulsão íntima, um imperativo que o levou a atrasar por alguns meses a conclusão da sua trilogia «Portugal, Razão e Mistério» de que foram publicados em 1986 e 1987 os dois primeiros volumes.» É o que todos nós, os leitores e admiradores de António Quadros, mais lhe invejamos: a regularidade da sua actividade criadora, ritmada como um relógio interior, segundo todos os biorritmos naturais. Se ao menos um «ano sabático» nos desse a nós, também, a hipótese de escrever o que há cinquenta anos adiamos!

ESCREVO, LOGO EXISTO

Em António Quadros - e apesar das múltiplas actividades em que se diversifica a sua obra - não há dissociação de personalidades: a voz que se revela, emocionada, nas obras de ficção, qualquer delas de excepcional interesse para o exegeta da chamada «literatura pura», tem o mesmo timbre de autenticidade e universalidade que «ouvimos» nas suas obras de investigação, a que incansavelmente o autor se dedica e com a mesma emoção dos contos ou das narrativas romanescas.
Escrever existindo, existir escrevendo, e sempre com paixão, podia ser um dos lemas definidores deste grande senhor da nossa cultura, que na análise de Fernando Pessoa ou Hegel, de Leonardo Coimbra ou Mário de Sá Carneiro, põe o mesmo entusiástico fervor, a mesma marca de empenhamento e compromisso, o mesmo «engagement» humanista. Quadros, que traduziu Camus, parece em tudo o que faz ter adoptado uma máxima deste malogrado escritor francês: «solitário-solidário» podia ser também o seu lema, tão bem o define também a ele; em tudo quanto António Quadros escreve, não há sinal de egotismo ou egoísmo, mesmo que seja um diário intimista como este que compõe o livro «Uma Frescura de Asas».

O ALIMENTO DAS IDEIAS

Conforme nos é revelado na nota informativa da capa, «a invenção novelística deste livro inspira-se em personagens e actos históricos, velando contudo o nome daqueles e procurando ser fiel ao significado destes».
Se assim for, um outro rótulo - o de «biografia romanceada» - lhe assenta também: «E é assim que podemos seguir não só a agitação do período da propaganda republicana, a questão do Ultimatum, a revolução do 31 de Janeiro, o exílio dos seus promotores em Paris.»
Mas, apesar de enigmático nas perguntas que deixa sem resposta, o estilo de Quadros, sem evocar o nevoeiro sebastianista, é suficientemente luminoso nos próprios símbolos herméticos que propõe.
Dá gosto ler Quadros, um autor que nos convida a pensar. Para quem as ideias são alimento indispensável. Autor que consegue fazer de um «romance filosófico» uma narrativa tão emocionante como um «policial» ou um conto de «suspense»
(*) «Uma Frescura de Asas», António Quadros, Colecção Europavizinha, nº 7, Europress, 1971

terça-feira, 12 de abril de 2011

GURDJIEFF COM A AJUDA DE PAUWELS



gurdjieff> inéditos favoritos

PENSADORES 2013

 RELENDO GURDJIEFF COM A AJUDA DE PAUWELS

 ANTECEDENTES DA HIPÓTESE VIBRATÓRIA

 INTUIÇÕES AC 1964
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domingo, 15 de Setembro de 2002

fv - [inédito 1964]

A BESTA ADORMECIDA

Sob a influência da leitura de «Monsieur Gurdjieff», de Louis Pauwels

A neurose ou habitat neurótico
Alienado às forças que o manejam, comandado por causas que desconhece, mistificado por mitos que inconsciente ou involuntariamente alimenta e coadjuva, o homem das sociedades industriais (a leste e a oeste, capitalistas e socialistas), por muitos desportos que pratique, por muitas olimpíadas em que participe, por muita tecnologia que o conforte e muitos ideais de propaganda que o embalem, por muitos governos que o sirvam mas que ele acaba por servir, é apenas um drogado, dormindo um interminável sono cataléptico, letárgico ou sonambúlico.
A máquina humana funciona apenas e sempre de meio para servir fins alheios, de objecto para uso dos que, em nome da pátria, do progresso, de deus, do partido, da classe, da liberdade, etc,. dele se servem.
Atrofiado ou hipertrofiado, conforme importa ou interessa às instituições que a usam, alienada a tudo o que a transforma de sujeito em mero objecto ou utensílio, a chamada «máquina humana» -- como dizem os cientistas da fisiologia!... -- que os humanistas designam de maravilhosa, é para cada indivíduo, à mercê de todos os «humanistas», apenas um pesadelo, uma doença, um fardo. O desporto -- mentira máxima dos humanistas -- não se destina a desenvolver a máquina e a coordenar-lhe harmoniosamente as funções mas apenas a fazer dela a máquina de competições» que sirva nas pistas e estádios + ou - olímpicos.
O desporto, no clima de alienação geral, é apenas uma fábrica de mitos com que se jugulam massas ou se estabelece competição de homem para homem, de região para região, de cidade para cidade, de país para país, de continente para continente.
O desporto é mais uma forma (uma força) de alienação, uma forma de distrair e adiar, de adiar e distrair, de tornar dóceis grandes massas humanas para os fins últimos que as potências se propõem, de as escravizar à vontade dos que (hipocritamente em nome delas) delas decidem.
O habitante das sociedades hiper(des)organizadas, dorme. Este sono, porém, não tem o carácter de um sono sadio e reparador (restaurador de energias) mas sim o carácter mórbido de uma intoxicação colectiva.
Karen Horney chamou-lhe a «personalidade neurótica do nosso tempo», mas não é necessário perfilhar a doutrina psicanalítica para reconhecer um estado ou clima geral para o qual os homens procuram remédio em (paradoxalmente) mil outras formas de sono, esquecimento ou intoxicação: álcool, drogas, estupefacientes, religiões, ópios -- eis os sonos a que recorre para não se lembrar que dorme. Ainda que inconsciente, o estado de alienação é para ele insuportável e procura derivativos, ersatzs que o adormeçam e entorpeçam mais profunda, mais completamente.
Neste contexto, se algum há com «forças para reagir» é ele afinal que adquire sintomas neuróticos. O que reage, por uma explosão ou descontrole de nervos, por uma revolta ou inconformismo sistemáticos, às condições mórbidas do ambiente, à sociedade doente, o que resiste e reage, é afinal o inadaptado.
O que surge nas clínicas para curar a sua «neurose» é efectivamente o amoral e às vezes o suicida, o que ainda possui demasiada saúde ou individualidade, o que procura «curas de sono» porque tem ainda consciência do sono colectivo. Para os que se julgam sãos, é ele o doente.
Mas para quem saiba que doente é a sociedade e doentes os que se incorporam nela sem desajustes e sem resistência e sem crítica e sem relutância -- facilmente se concluirá que os neuróticos ou normais são ainda, no meio da demência colectiva, os únicos sãos.
Pensaram alguns que, se na sociedade está a doença, ninguém individualmente poderá nada contra um estado de coisas colectivo. Freud e a psicanálise, Mesmer e o magnetismo animal, por exemplo, teriam sido tentativas, historicamente localizadas mas frustradas, de curar as neuroses individuais.
Pensaram outros, entretanto, que a político-terapia seria um caminho, porque só transformando politicamente as sociedades, o indivíduo poderá curar-se.
Até agora e entretanto, porém, as soluções políticas totalitárias assemelham-se muito àquela receita panglossiana que para curar a dor de cabeça manda cortá-la. Cortando o mal pela raiz, as soluções totalitárias teriam suposto que eliminavam o mal -- a neurose generalizada -- apenas porque eliminaram de facto o sujeito ou indivíduo. Se era isso o que se pretendia (o que vinte séculos de retórica humanista judaico-cristã pretenderam com a exaltação do indivíduo e da «pessoa humana») então já o conseguiram. E acabaram-se os problemas.
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(*) Repescagem de 1964 em 1989

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1-2 - domingo, 22 de Dezembro de 2002-scan

À MARGEM DO LIVRO «MONSIEUR GURDJIEFF»

A DOENÇA DA CIVILIZAÇÃO (*)

[29-8-1963 , in «Diário de Notícias» (Lisboa) ] - A neurose ou nevrose generalizada de que sofre toda ou quase toda a humanidade dita civilizada traduz-se principalmente e em ultima análise na doença da vontade, na sua como que atrofia secular, agravada pelo peso e pesadelo de uma educação cada vez mais atrofiante e de uma guerra de nervos à escala mundial cada vez mais aterradora ou terrorística. A vontade não é vontade, mas um simulacro de vontade.

Como diria Gurdjieff, nós não temos vontade, temos desejos, que, por sua vez, não passam de hábitos disfarçados. Algo nos move, não somos nós que nos movemos. Por isso auto-móveis são os propriamente ditos e não nós...

O principal problema que o médico alienista ( psiquiatra, psicanalista) hoje defronta é, pois, o da vontade, que foi e continua sendo um objecto de estudo e nada mais; estuda-se, subdivide-se, fazem-se tratados e filosofa-se sobre a vontade, sabe-se tudo ou quase tudo acerca dela menos como usá-la, menos como ter vontade.

« A cette époque, il me semblait que la manque de volonté était la «bête noire» dans le traitement des nevroses.» - afirma, em 1927, o doutor Young, discípulo de Jung. E é a seu propósito que Louis Pauwels escreve na página 182 do livro(1) que estamos referindo: «alguns anos após de aprofundamento e aplicação da psicanálise, ele (refere-se a Young) põe a única questão importante, aquela que Jung não ousa enfrentar, nem, por maioria de razão, Freud: a questão da vontade.

Não se trata, evidentemente, desta vontade descrita nos manuais de psicologia clássica, mas se assim se pode dizer, da vontade da vontade, ou, noutros termos, da mola número um da libertação do homem.»

NEVROSE GENERALIZADA

A nevrose generalizada é um facto conhecido e reconhecido pelos médicos alienistas.

«Toda a gente sofre dos nervos» - seria a expressão comum com que se banalizou uma das mais trágicas realidades do nosso tempo, realidade contra a qual pouco podem as forças até agora desencadeadas para a combater. A ciência médica parece que teria continuado aliás mais empenhada em defender dogmas teóricos do que em curar doentes, a fazer fé no que afirma ainda o dr Young na página 181 do livro «Monsieur Gurdjieff»:

«Eu estava, sem dúvida. um pouco desencorajado pela inconsistência e ambiguidade dos resultados da terapêutica analítica, comparados aos resultados concretos da cirurgia que eu próprio tinha praticado bastante, antes e durante a guerra.

«Este desencorajamento profundo era agravado pelos cantos de júbilo dos sectários obtusos que aclamavam uma técnica esclerosada logo que inventada, e também pelas discussões dos meus confrades analistas, mais preocupados em defender pontos de vista dogmáticos do que em curar os doentes. A cura, para os mais eminentes, parecia ter-se tornado um problema imediatamente sem interesse e eu começava a encontrar-me, com desespero, entre os cépticos que modificando os termos da brincadeira clássica: «A operação foi um êxito mas o paciente morreu», lançavam a fórmula: «A análise foi um êxito, mas o paciente suicidou-se.» Em resumo, a psicologia moderna parecia-me pretender muito como ciência e por aí se tornava ridícula e muito pouco como arte e por aí se empobrecia.»

Perante este e outros testemunhos, é que parece justificada uma crescente sensação de logro perante a medicina oficial. O grande e maior problema, a grande e maior doença, é a da vontade. No entanto a ciência até hoje nada fez, nada faz , nada consta que esteja resolvida a fazer, de prático, de efectivo, de realmente eficaz na sua terapêutica. Espécie de peste do nosso tempo, a « epidemia» neurótica, ao lado do cancro generalizado pela progressiva viciação do ar respirável - eis as doenças da Hipercivilização contra as quais a ciência hipercivilizada continua impotente.

Não se pretendendo recusar à ciência revelada, oficial ou académica, os poderes que efectivamente tem para debelar outros tipos de doença que não sejam as «doenças da civilização», cremos que, quanto a estas, ia sendo tempo de pedir à ciência académica que abrisse os olhos e percebesse que outros caminhos, extra-académicos , se terão de abrir.
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(') Louis Pauwels , «Monsieur Gurdjieff,» - documentos, testemunhos, textos e comentários sobre uma sociedade iniciática contemporânea - Editions, du Seuil, Paris, 1954.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas pela antecipação das intuições fulcrais, foi publicado no suplemento literário do «Diário de Notícias», dirigido então por Natércia Freire que lá me acolhia os textos. Foi publicado no dia 29 –8-1963 ♦



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