quarta-feira, 18 de julho de 2012

MÁRIO CESARINY SEMPRE-I


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1924-1964: SURREALISMO-ABJECCIONISMO(*)

16/Maio/1963

«Por muito diferentes que sejam (e são-no), uma atitude comum nos escritores destes três conjuntos: a cólera ou revolta contra um estado de coisas indesejável.
»

Vieram à tona editorial, na última semana, três antologias que exprimem três tendências, correntes ou movimentos afins.
Uma, devida a Jorge Daun, na colecção «Best-Sellers», põe em português, versos e prosa de alguns «destacados representantes da «beat generation» , jovens da casa dos trinta que se reunem algures, em Nova Iorque, para tocar «jazz», drogar-se e angustiar-se.
Outra, apresenta em duvidosa tradução, os depoimentos dos «angry man», que parece não estarem muito satisfeitos com a história que por ali se vai escrevendo. Quase todos fazem profissão de fé existencialista, por oposição à forte e dominante corrente analítica da Grã Bretanha, pátria dos lógicos.
Finalmente e por ordem de entrada no mercado, 32 autores coleccionados carinhosamente por Mário Cesariny de Vasconcelos.
Por muito diferentes que sejam (e são-no), uma atitude comum nos escritores destes três conjuntos: a cólera ou revolta contra um estado de coisas indesejável. Provam eles que há motivos para o desespero em toda a parte. E que, de certo modo, o mal dos outros é ainda um consolo para o nosso. Provam também estes escritores e grupos de escritores, que uma família de espíritos, dispersa pelo mundo, ensaia uma saída do mundo, país, cidade e quarto onde os meteram. Os dilemas cada vez mais dilacerantes impostos a quem não pode escolher mas tem de escolher, criam esta reacção em cadeia que é, no plano do espírito, o equivalente simbólico da reacção em cadeia no domínio atómico.
Além deste ponto comum - o reconhecimento de e a revo1ta contra uma Doença, Queda, Crise ou Abjecção - outras constantes se surpreendem nos escritores e grupos de escritores aparecidos aquém e além-Atlântico. Outra constante que é, por exemplo, o fastio, a desconfiança destes poetas perante as realizações consideradas mágicas e máximas da técnica moderna: a energia nuclear, o cérebro electrónico, os foguetes interplanetários, e também perante as «maravilhas» da matemática ou do avanço das ciências experimentais.
Sabe-se que nada será possível fora da ciência, ou contra a ciência. Mas sabe-se também que a ciência nada mais poderá (terá direito a) ser do que serva do homem. Não se nega a ciência mas também não se lhe atribui papel mais importante que o de meio para que o homem se liberte, dominando-se e dominando a natureza. Se é isto que sempre esquecem os loucos da lógica e os bêbado da técnica, é essa a função bem prática dos poetas: criar 1iberdade.
Estas constantes, porém, não autorizam ninguém a confundir movimentos ou modos caracterizados de reagir perante a mesma Doença, Crise ou Abjecção. Podem aparentar-se pelo ponto de par-tida comum mas distinguem-se, pelas vias, negativas ou positivas, que a sua revolta segue. Sintomas da Decadência, como alguns pretendem, ou prenúncios de uma revolução sui-generis como outros sonham, não há dúvida é que estes movimentos caracterizam a nossa época e recortam-lhe o perfil neurótico. Afluentes de uma única e grande corrente oposta às correntes alienadoras e desintegradoras do homem, esta juventude (e as suas manifestações, aparentemente apenas literárias), é um acto com que tem de contar-se na inexorável cadeia dos factos que vão fazendo, «malgré» eles e nós, a História. Um acto que, pelo menos, importa conhecer e reconhecer ainda que seja para os insultar.
Beatnicks em Nova Iorque, angry man em Londres, surrealistas em Paris, abjeccionistas em Lisboa - o lugar não importa (embora às vezes importe), o que (também) importa é a universalidade de fenómeno. E saber que, na história mas contra a história, se veio fazendo a única literatura viva do nosso tempo. Todos os escritores e movimentos de escritores verdadeiramente vivazes (vivos), arrancam, marcam posição contra a história Isto quer dizer que fora da história não há literatura que resista., mas que também não resiste a literatura a favor da história . Uma e outra, oscilando entre «a propaganda» e a «frivolidade» , nas palavras de Camus, morreu com aquilo com que nasceu, ou nasceu morta (academicismos, académicos).
Sem isto, sem este sentido crítico ou sentido da crise, não haverá literatura. Sem isto, é que nunca se compreenderá nada, nem de poesia, nem de surrealismo, nem agora de abjeccionismo. ( Poeta, nesta acepção, será o crítico, o escritor que - faça versos, ensaios, novelas, romances ou dramas - tem o sentido crítico deste tempo e deste mundo. E o menos crítico de todos é talvez e quase sempre o que faz críticas...).
Em que possam diferir entre si estes escritores e movimentos de escritores, importa menos, por agora, do que aquilo que lhes é comum. Interessa assina-lar é que se distinguem dos (e opõem aos) movimentos puramente estéticos ou formais que agitam, de vez em quando, a bocejante pasmaceira das nossas montras de novidades; têm sempre, estes outros, o ar de escola reunida, de lição aprendida de cor, de moda que se adopta e adapta, de fórmula que se repete.
Micro-movimentos, de facto, pura-mente locais ou regionais, pouco alcance têm além do que os seus cultores lhes querem atribuir, através de insistentes críticas dos mesmos sobre os mesmos e de copiosos artigos doutrinais. Exemplos destes micromovimentos, encontramo-los principalmente na pintura, mas aí com toda a justificação, pois as pesquisas formais são, em pintura, tudo ou quase tudo. Em literatura, porém, a novidade formal vem por acréscimo, resulta inevitavelmente de um excesso de riqueza criadora. Por isso, aí, os movimentos formais são sempre de superfície e resultam académicos, já que a revolução técnica ou formal em literatura, tem de ser sempre consequência de uma revolução nas estruturas da personalidade do escritor (em relação a si próprio, em relação aos outros).
É esta diferença que contribui para discernir uma unidade (não uniformidade) de fundo nos macro-movimentos acima indicados, ao mesmo tempo que os distingue e separa, em conjunto, dos micro-movimentos de alcance meramente estilístico ou técnico ou estético, tristes documentos de um academismo que teima em sobreviver sob disfarces modernistas. Retomam todos esses micromovimentos, uma tendência que todos os movimentos verdadeiramente modernos têm combatido. A miséria da literatura confundida com a política, foi com efeito um dos alvos da luta surrealista e continuaria sendo o de todos os movimentos directa ou indirectamente a ela aparentados, partindo do mesmo ponto e alvejando o mesmo alvo.
Por isso é que sobre Surrealismo-Abjeccionismo - título da antologia que Mário Cesariny vinha há anos organizando e a tipografia desorganizando - nem vale a pena falar. Se o que seja surrealismo não o aprenderam eles, os cronistas, ao longo de 40 anos, muito menos poderão entender o que seja abjeccionismo noutros quarenta. Diga-se apenas que o abjeccionismo poderá não ser muitas coisas, mas uma coisa há que nunca será: um movimento para agitar as artes, uma nova estética, uma receita para cozinhar romances ou poemas, quer dizer, uma forma mais ou menos mascarada, de colaboracionismo na Abjecção.
Um pouco para dizer quem vive, um pouco para dizer quem morre, um pouco para não ensinar imbecis e um pouco para indisciplinar almas à Fernando Pessoa, - medidas, todas elas, de largo alcance terapêutico e farmacêutico, higiénico e crítico, polémico e propedêutico - eis um pouco (um FRAGMENTO) do que tem sido a personalidade agente de Mário Cesariny, sal da sua Poesia, segredo da sua indecomponibilidade e um pouco (um FRAGMENTO) também do que pode ser esta antologia, - esta recolha de textos e documentos gráficos.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 16/Maio/1963
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SURREALISMO & SURREALISTAS-4

breton-1- notas de leitura - surrealismo & surrealistas - publicados ac de 1963

ARTE E ANTI-ARTE : OU O ESPÍRITO DA MODERNIDADE(*)

12/12/1963

«A arte é uma estupidez» - na opinião de André Breton que o afirma e na de todos os que defendem um conceito e critério exigente de Modernidade.

É principalmente contra os géneros, contra a ordem estética ou teoria da arte e até mesmo contra a própria existência das artes enquanto artes que se tem levantado a revolução moderna, aquilo que normalmente se conhece por Modernismo ou Modernidade.
Mas talvez porque a inércia das palavras é a mais difícil de vencer, vemos que, ainda quando o espírito de modernidade, embora não completamente triunfante, conseguiu abrir caminho e criar raízes, persiste uma terminologia obsoleta, anacrónica, reaccionária, à base de lugares-comuns clássicos ou académicos entre os que têm por profissão falar dos produtos artísticos.
Se no domínio da criação muito se tem conseguido, e a subversão da ordem estética é quase total, outro tanto não aconteceu à terminologia dos que acompanham hebdomadariamente essas criações e essa revolução. Afinal, continua a falar-se de artes, de géneros, de beleza, de ideais de beleza, de poesia como género literário, de poemas e estruturas poemáticas, enfim, de todo um arsenal de boas maneiras para poeta usar, as 100 maneiras de cozinhar poesia ao alcance de todas as bolsas que são as estéticas e autores de estéticas, também estes acessíveis a todas as bolsas e inteligências.
E ficamos sem perceber. Afinal o que foi e é a Modernidade ou, como outros preferem, o Modernismo? Afinal o que se alterou no cérebro dos teóricos paralelamente à transformação operada nos poetas? A verdade é que tudo parece continuar como os clássicos e seus primos académicos lá os puseram, lá o quiseram.
Fala-se, com a maior sem-cerimónia, de pintura moderna, de poesia moderna, de teatro moderno - mas, vendo bem, que sentido podem ter essas palavras? Que sentido pode ter o adjectivo moderno aposto à palavra arte ou a qualquer das palavras consideradas artes pelas estéticas e autores de estéticas? Todas elas, porém, aparecem com uma frequência irritante na maioria ou totalidade dos publicistas encarregados de falar sobre aquilo que os por eles considerados artistas vão produzindo. Tanto os combatem como os que defendem o moderno são concordes e unânimes neste ponto, nem uns nem outros abdicando da mais antimoderna das atitudes que é continuar considerando as artes enquanto artes, isto é, enquanto ordens fixas reguladas por leis inflexíveis.
Ora o moderno só pode ser uma coisa: absoluta liberdade. O moderno não se rebela contra criações «artísticas» mas rebela-se contra o que nelas é «artístico» no mau sentido: obediência cega a uma ordem estética ou cartilha de bom comportamento para poetas. O moderno significa poesia, que por sua vez significa «liberdade livre». Para o moderno, para um conceito de moderno que não se estribe em meras extravagâncias técnicas ou formais mas que radique num profundo critério paradigmático, qualquer das artes enquanto arte é lixo. Só a arte que se excede, que excede as leis canónicas da sua estética para dar ao homem as formas de absoluto que a sua relatividade exige, só essa arte é ao mesmo tempo mais e menos do que arte; mais que arte no sentido que esta teve e teima em ter de pequenina obediência e servidão; menos que arte, na acepção que esta deverá ter, de futuro e de uma vez para sempre, de criação soberana e obscena da imaginação.
«A arte é uma estupidez» - na opinião de André Breton que o afirma e na de todos os que defendem um conceito e critério exigente de Modernidade. Mas arte, na primeira acepção que acima indiquei, ou arte como produto obrigado a mote, obrigado a géneros, obrigado a cânones.

Outro sentido não tem nem podia ter a ocorrência do anti-romance, do anti-teatro, da anti-pintura... Com o prefixo «anti» tem-se tentado obstar à dificuldade terminológica de designar, na literatura, no teatro, na pintura, não aquilo que é canónico e académico mas o que na literatura excede a literatura, no teatro excede o teatro, na pintura excede a pintura, no que em cada forma de criação artística excede a «arte» no mau sentido.
E exceder a arte, destruir os géneros, desobedecer às leis, subverter em suma a ordem clássica, sendo o que se pode considerar a revolução verdadeiramente moderna, é, simultaneamente, remontar à mais antiga tradição, à poesia quimicamente pura e ainda não contaminada pelo contacto das «belas» coisas clássicas.
E’ que há grande diferença (e diferença que importa indefinidamente repetir porque indefinidamente se esquece) entre o moderno que retoma a mais antiga tradição - esse moderno de sempre, esquecido e esmagado pela hegemonia dos períodos clássicos - e o falso moderno, o moderno de forma e fachada, o moderno dos berliques e berloques estilísticos e técnicos, que não faz mais do que repor os referidos períodos clássicos, sob a forma mais insidiosa: a do academismo pseudo-moderno, os neo-academistas designados eufemisticamente de neo- classicismos.
O moderno ou poético opõe-se drasticamente à tradição clássica ou academizante, mas não se opõe à tradição autêntica do verdadeiro espírito da poesia que as artes, as letras, as ciências e as filosofias da brilhante cadeia ou contra-corrente greco-latina ocidental acharam por bem enterrar, denegrir, ocultar. Outra aliás não é a descoberta que a Modernidade fez das pinturas das cavernas, da arte dos povos primitivos, dos loucos e das crianças, de tudo o que, anterior ou alheio à órbita ocidental, pôde escapar e mantém intacto o puro espírito poético.
Para o moderno, para o verdadeiro conceito de moderno que é o poético, a arte é coisa que não existe. Existe, é claro, nos museus, mas não existe viva, e só o vivo interessa ao moderno, porque moderno sempre foi o contrário de morto, moderno sempre teve que significar aquilo que, com um dia, um século ou um milénio de existência permanece vivo.
A arte, qualquer forma de arte, quando o moderno ou poético a invade, solicita e absorve, desaparece enquanto arte, enquanto estética, enquanto obediência mais ou menos disfarçada a um «ideal de beleza».

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Diário de Notícias», em 12/12/1963

SURREALISMO & SURREALISTAS-3

artaud-1> notas de leitura - surrealismo & surrealistas - inéditos ac de 1961

ARTAUD : A DOENÇA DE EXISTIR

«O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo” Antonin Artaud no manifesto “Le Bluff Surréaliste”.

Onde o surrealismo não foi uma escola de optimismo para o cor-de-rosa, mas um esforço ora heróico, ora lírico, ora cínico, de ver claro.

1961
- Ignorar a situação primária do indivíduo contemporâneo - situação de extrema e desamparada alienação, de vazio total - ou dizer que a doença de existir se cura com panaceias verbais, palavras de exaltação moralizante, eis a tentação a que Breton e outros surrealistas nem sempre souberam furtar-se a tempo, seduzidos por mitologias e optimismos fáceis, pela moralização abstracta, pela substituição de um puritanismo por outro puritanismo.
Sobre a morte e o sentido ou falta de sentido do que se chama vida, Breton nunca proferiu juízos claros, preferindo sempre falar de amor para salvar as situações com pendor para o trágico e aguarelar de cor-de-rosa as possíveis suspeitas de raiz existencial. Sobre a morte houve um único surrealista (expurgado primeiro, reabilitado depois, post-mortem...) que disse palavras definitivas. Artaud, o único a “viver a morte” e depois George Bataille, que os críticos de ficheiro não sabem onde hão-de classificar (surrealista ou existencialista?) fizeram por aí incursões que estão longe de terminar e que, de vez em quando, perante os optimismos daqui e dali, os conformistas disto ou daquilo, convém ir lembrando.
Artaud, o Remorso, o maior Remorso, a mais grave palavra de alerta sobre o “cadáver adiado que procria”. De facto, a recaída no existencial, na angústia ou perplexidade existencial, será a alternativa constante para o projecto surrealista, a menos que fosse possível “existir surrealisticamente” a todos os instantes, isto é, em estado de sonho permanente.
Quando à náusea pela existência se junta a indiferença pela morte, quando ao tédio quotidiano se junta o fastio pelas mitologias políticas, quando não se pode ser mais nada além do “cadáver adiado” que nem sequer procria, está-se no instante em que é possível “compreender” Artaud.
A sua escolha situa-se na zona de maior perplexidade e só a compreendem (mesmo quando não aceitam) os que conheçam a extensão de uma náusea que os existencialistas filosofantes transformaram em teoria mas que alguns (Artaud, Kafka, Fernando Pessoa, Beckett) mantiveram insolúvel, indissolúvel.
Este tipo de rebelde, se alguma coisa propõe, dentro dos padrões políticos vigentes, é apenas a subversão total de uma ordem a que não pode aderir e com a qual efectua um corte radical, uma vez que não pode, individualmente, vencê-la nem transformá-la. Confissão de uma derrota inelutável? Utópica subida de Sísifo? Perplexidade? Beco sem saída existencial? Recusa de toda e qualquer solução, mística ou política?
Perante estas perguntas, continua válida a crítica que acusa Artaud e outras solidões exemplares de anarquizante. Afirmou-se que revolta sem revolução é conformismo e não há resposta para esta acusação.
Já o epíteto “decadentista” se mostra menos adequado para desqualificar semelhante atitude; porque a poesia pode ser também (além de outras funções que queiram atribuir-lhe) essa tentativa (utópica) de estar fora do mundo embora mergulhado nele. Fora do mundo mas consciente dos problemas e crimes do mundo.
Quando certa gente “decreta” a abolição da angústia é como se obrigassem a curar-se um incurável de último grau. A angústia ou perplexidade existencial é uma condição tão insupera1 individualmente, já e agora, como a condição de classe. Idealista, pois, se apresenta qualquer propósito de escamotear essa condição, ignorá-la ou minimizá-la. O “doente da existência” tem pouco ou nenhum espaço onde caiba e onde o deixem sobreviver. Mas não pode ignorar-se um «leproso» nem arrumá-lo no saco “decadentista”. Porque decadentistas somos nós todos, ou ainda menos.
O “leproso” recusa-se a colaborar mas não deixa de viver por isso o seu lugar e a sua hora. Não ignora as contradições mas vive-as, talvez mais intensamente do que os teóricos que vão afirmando soluções gerais sabendo muito bem que não têm já solução particular.
O “leproso” é pelos menos lúcido e as diferenças ideológicas, bem vistas, são afinal apenas diferenças ou graus de lucidez. A maioria não se sente afectada, porque isso é questão de inteligência, sensibilidade, imaginação. Ser ou não ser doente é questão de lucidez e apenas de lucidez, porque a doença unifica, clarifica, polariza energias; define uma condição de estrutura, afecta a criatura na sua totalidade, na sua origem, no seu núcleo; altera a óptica epistemológica, o aparelho de ver, perceber e pensar o mundo, bem assim o mecanismo de acção e reacção sobre o mesmo mundo; é uma experiência-limite, irredutível, por isso significa saber o peso e gravidade do necessário e aquilatar o valor e gravidade do livre (necessidade e liberdade interdeterminam-se).
Abusivo é se o facto se generaliza ou transplanta da vivência individual para a circunstância histórica, se o facto subjectivo se objectiva, e que se fala de “doença da civilização” quando essa doença é apenas vivida por alguns. A “doença de existir” não autoriza a proclamar a “decadência da civilização”, embora o abjecto do homem-objecto, que é por enquanto a realização mais perfeita dessa civilização, pareça autorizar uma visão definitiva do homem e o beco sem saída da história.

SURREALISMO E DOENÇA

Aquilo que Artaud criticava nos surrealistas - a devoradora ânsia de viver - continua a ser, parece-me, um dos pontos fracos do surrealismo e onde o esforço ora heróico, ora cínico de ver claro (de desmistificar), foi momentaneamente substituído pela cega aceitação de mitologias e optimismos fáceis.
«O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo” - escreve Artaud no manifesto “Le Bluff Surréliste”.
Eis definida a enorme diferença, a grande distância. Nunca poderiam entender-se porque nunca o animal saudável pode compreender ou aceitar o animal doente. No entanto, na doença reside um modo de conhecer ou de-bater a realidade, na doença pode estar um dos elos de ligação entre o homem e a realidade, entre o homem e a poesia. No doente pode estar implícito o poeta e a poesia como experiência-limite, tal como a quiseram as doutrinas surrealizantes. Na doença, o facto concreto, indestrutível, inelutável, pessoal e intransmissível desafia as abstracções e as leis gerais. Perante a doença, concreta, sórdida, abjecta (ante-projecto da morte) os ideais abdicam, os sistemas soam a oco, as grandes palavras assumem apenas a cor do ridículo.
A doença, acima do tudo, repõe o problema da literatura e da arte em termos que os bem pensantes recusam, que os saudáveis censuram, que os optimistas (de todas as cores) ridicularizam. A doença repõe o centro da poesia na experiência o no poeta, sendo poesia o que as palavras testemunhem dessa experiência.
Os que pretendem situar o centro da poesia, não no poeta e seu peso ou pesadelo existencial mas na linguagem pela linguagem, na arte pela arte, têm, entre outras, uma maneira fácil de retirar de cena um tão incómodo conceito de poesia; basta falar de psicologismo, suficientemente desacreditado para servir de aviso alarmante, ou de decadentismo.
Para esta última acusação - a de decadentismo - a resposta ficou dada pelo surrealismo e pela perplexidade existencial. Para a doença metafísica ou existencial, a náusea, a angústia de estar, a resposta é idêntica à que se deu para a doença do corpo e do cérebro, das mãos e dos órgãos.
Resta portanto responder aos que, sob o pretexto de biografismo psicológico, rejeitam a experiência como nó central da criação poética. Até para que se não repita mais vezes o disparate de confundir experiência com experimentalismo e experimentação.
AFONSO CAUTELA

SURREALISMO & SURREALISTAS-2

My-life em fascículos – o labirinto da efemeridade -> 2003
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DO NIILISMO AO SURREALISMO: 2 CARTAS DE AC A ACÁCIO BARRADAS

Sábado, 22 de Março de 2003

Acácio:

O teu interesse por um texto (quase) perdido, levou-me a fazer pesquisas nesta minha torre do tombo de 3 assoalhadas: na longa fila de dossiês Fercor, encontrei um que talvez possa ser a versão revista e agora já teclada em computador dessas tais 105 páginas que foste descobrir.
Este meu inquérito às origens, deu como resultado uma empreitada que ninguém (a não ser tu) me levaria hoje a realizar: tentar reconstituir o texto concorrente à APE, a partir das três versões (pelo menos) que poderão ter constituído a matriz.

A Razão sem Razão, como título do conjunto submetido ao júri da APE, foi um dos que me assaltavam na altura, fase pretensa e pretensiosamente niilista, sob a (im)pressão de leitura de alguns livros devastadores:

As Revelações da Morte, de Chestov – de facto o livro que mais me baralhou as meninges – mas também, nessa altura, «A Voz Subterrânea» (Dostoiewsky) , «A Origem da Tragédia» (Nietzsche), «Luz Central» (Ernesto Sampaio), «L’Obscenité et la loi de refléxion» (Henry Miller) , «Razão e Absoluto» (José Bacelar), «Molloy» (Samuel Beckett) e «Précis de Décomposition» ( E.M. Cioran).
Passando em revista o que ainda poderia restar desses autores, nestes cantos e recantos, foi com tristeza que verifiquei apenas os seguintes títulos:

Albert Camus – O Homem Revoltado – Ed. Livros do Brasil, Lisboa, 1951
Antonin Artaud – Em Plena Noite ou o Bluff Surrealista – Ed. Frenesi, Lisboa 2000
E.M. Cioran – A tentação de Existir – Ed. Relógio d’Água, Lisboa, 1988
Fiodor Mikhailovitch Dostoievski – Notas do Subterrâneo – Trad. de Moacir Werneck de Castro – Ed. Bertrand Brasil, Rio, 1989
Frederico Nietzche – A Genealogia da Moral - Ed. Guimarães, Lisboa, s/d
Frederico Nietzche – A Origem da Tragédia – Trad. Álvaro Ribeiro – Ed. Guimarães, Lisboa, 1954
Frederico Nietzche – Assim Falava Zaratustra – Ed. Guimarães, Lisboa, s/d
Frederico Nietzche – Despojos de uma Tragédia (Correspondência Inédita) – Ed. Educação Nacional, Porto, 1944
Frederico Nietzche – Ecce Homo – Como se Chega ser o que se é – Trad. e prefácio de José Marinho – Ed. Guimarães, Lisboa, 1952
Georges Bataille – A Literatura e o Mal – Ed. Ulisseia, Lisboa, 1957
Georges Bataille – A Parte Maldita – Ed. Imago, Rio, 1975
Georges Bataille – O Erotismo – Ed. Moraes, Lisboa, 1968
Henry Miller – Obscenidade e Reflexão – Prefácio de Pedro Alvim – Ed. Vega, Lisboa, 1991
Henry Miller – Souvenir, Souvenirs – Ed. Gallimard , Paris, 1953 (L’Obscenité et la loi de refléxion)
José Bacelar – Razão e Absoluto – Ed. Seara Nova, Lisboa, 1947
Leão Chestov – As Revelações da Morte – Tradução , prefácio e notas de Jorge de Sena – Ed. Morais, Lisboa, 1960
Samuel Beckett – Dias Felizes – Ed. Estampa, 1973


Se não fosse (se não tivesse sido ) plágio, esse texto, esse conjunto de textos que descobriste dever-se-ia ter chamado «As Revelações da Morte» a quem esses textos integralmente se devem. Aliás, o título que está para ficar, «O Ser & o Nada», não fosse o & e seria plágio do sr. Sartre. Mas esse nunca li nem lerei, conheço-o mais de quando o Zeca Afonso, em Faro, nos obcecava (aos do seu grupo) com intermináveis citações d’O Ser e o Nada do interminável Sartre: não sei se o Zeca chegou a defender a tese que projectava sobre esse livro.

Se me atrevi a digitalizar textos «condenados», foi só porque, com a tua descoberta, só esse texto outrora chamado «A Razão sem Razão», justificaria tamanha como inútil tarefa!
Os leit-motiv de 1963 (data provável do texto que descobriste) andam à volta de alguns itens que bem podiam ter sido títulos de outros textos, extensão desse que descobriste e que tinha a pretensão de constituir uma «súmula teológica» de um ateu :


A experiência do Nada
A Voz Subterrânea
Agir? Não Agir
As Revelações da Morte
Cadernos de um aprendiz
Corroer o Herói
Discurso niilista de um franco atirador
Ensaios sobre o Obsceno
Imitação de Antonin Artaud no Hospício de Rodez
O Anónimo Toda a Gente
O Ser & o Nada (cópia descarada de um título do Sartre)
Páginas em Branco (196 0/63)
Prefácio ao homem subterrâneo
Suma Ateológica

As minhas pesquisas conduziram-me a um manuscrito tipo rascunho (que desconfio ser cópia a papel químico do que está na Torre do Tombo) com anotações à margem do crítico Gastão Cruz, que me ajudou muito a desistir das veleidades que então ainda tinha de vir a ser qualquer coisa parecida com um escritor. Foram essas veleidades que me levaram exactamente a concorrer ao prémio da APE.
Já nessa data me levava pouco a sério (1960) mas acho que, apesar de tudo, ainda me levava mais a sério do que hoje.
É esse manuscrito, como 4ª versão possível, que me falta converter em file de computador, dando assim por finda esta tarefa de exumar cadáveres. Graças ao teu alerta e à tua descoberta, fica assim resolvida a tal «fase niilista», já que só tinha até agora teclado no scan a fase contra-niilista, «surrealismo & surrealistas».
Teu amigo
Afonso ♥♥♥

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CARTA POR E-MAIL DE AFONSO CAUTELA A ACÁCIO BARRADAS

Quinta-feira, 13 de Março de 2003

Acácio: Inesperada, a tua mensagem por mail acaba por ser a melhor prenda que me podiam dar, alguns dias depois de 19 de Fevereiro, em que constatei ter feito 70 anos de idade, o que, sendo um número redondo, me faz entrar em acelerado naquilo que a ralenti já vinha a fazer há tempo: a minha contagem decrescente.
Neste quadro do «countdown», a tua missiva ainda se torna mais valiosa e mesmo preciosa: não só por teres desencantado um texto que eu tinha uma vaga ideia de ter escrito – o título, de facto, « A Razão sem Razão», aparece-me às vezes em listagens de inéditos que por aqui vou fazendo – ou talvez pensado escrever sem nunca concretizar o projecto. Em suma, na melhor das hipóteses ter-se-ia tratado de mais um fantasma incluído no vasto rol de um dossiê a que chamo o Afonso dos Projectos.
Vais tu e descobres nos arquivos reais esse fantasma, ainda por cima cumulas-me de elogios e amizade. Enfim, melhor do que o texto, de certeza, foi a tua atitude, a tua descoberta e a tua ternura e atenção em teres comunicado tudo isso, nos termos em que o fazes.
De facto, aos 70 anos, foi uma das melhores prendas que recebi nesta vida. Já agora e como termo de comparação, vou dizer-te que o outro grande tesouro que tive o gosto de receber foi a obra de Etienne Guillé, um senhor que um dia eu ainda gostaria de propor como leitura obrigatória aos meus amigos. Talvez o faça já num site que estou a realizar para pôr on line – O Gato das Letras – e onde vou fazer o balanço das minhas amizades e paixões, em livros e nem só.
Se pudermos continuar intercomunicando, irás saber notícias à medida que o projecto for avançando.
Para já e relativamente aos dois exemplares do texto que descobriste, estás autorizado a tratar dele como se fosse teu. Se me chegar depois uma cópia, talvez o inclua num trabalho de empreitada que me tem levado meses quando eu queria que só me tivesse ocupado dias: o scan de textos antigos, incluindo livros e que vou «editar» (complete works!!!!) num formato maravilhoso e simples que o computador permite: o chamado PDF.
Ver as toneladas de papel (lixo) aqui de casa em um único cd, ainda consegue dar-me vontade para levar de vencida este meu último projecto: no site «Gato das Letras», lá estarão os nomes tutelares que citas: Artaud e Natália Correia, além de tantos e tantos outros, que o pecado mortal nosso – jornalistas – é o da dispersão por mil e um caminhos, autores, livros, eventos, etc.
Por agora, fica o meu agradecimento e a inteira disponibilidade para intercomunicarmos sobre o que para ti forem prioridades: incluindo os teus próprios trabalhos de escritor/jornalista, e já que tanto te interessas pelo trabalho dos outros.
Até breve
Afonso Cautela♥


SURREALISMO & SURREALISTAS-1

realidade

30-7-2010

A REALIDADE COPIA A FICÇÃO

De que forma o «fantástico» irrompe no contexto do nosso tempo-e-mundo? Não é possível entender o género fantástico sem o ligar às condicionantes gerais do mundo contemporâneo que é, aliás e à partida, um tempo-e-mundo onde exactamente se fundem, numa amálgama indescritível, o cómico, o trágico, o real (e) o fantástico, o terror-humor, o humor negro, o non sense, o anacronismo. O que faz do surrealismo uma corrente ainda na moda é ter posto em funcionamento, na chamada literatura e nas chamadas artes, alguns desses mecanismos que definem, realmente, realisticamente, o tempo-e-mundo contemporâneo. Mundo que só consegue ser pensável e compreensível através da ficção. O tempo-e-mundo contemporâneo ultrapassou de tal modo a realidade que só podemos pensá-lo e compreendê-lo através da ficção e do fantástico. Todos os recursos «clássicos» de ficcionar a realidade, desde o símbolo à alegoria, são também convocados e comparecem na actualidade como componente do fenómeno cultural designado de fantástico. Antes de que o mundo concentracionário se tornasse realidade histórica, Franz Kafka deu dele a antevisão através das suas fantásticas alegorias. O símbolo, nesse caso, antecedeu a realidade. Ou a realidade copiou a ficção. [28/2/1990]

AFONSO CAUTELA