quinta-feira, 10 de março de 2011

CRISTO VISTO POR MARTIN SCORSESE


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1-2-1992

  • FILMES EM CASA

DE NIKOS KAZANTZAKI

PARA MARTIN SCORSESE

A DÚVIDA DA FÉ

Três horas de filme para 624 páginas do livro, na edição portuguesa da Arcádia, com tradução de Jorge Feio: eis o balanço de uma quase obra-prima que é o filme «A Última Tentação de Cristo»The Last Temptation of Christ»). Era, portanto, para Martin Scorsese, o realizador, uma tarefa complexa, embora atraente, onde o tempo deveria ser densamente preenchido para não resultar vazio. Defrontava-se ainda com o problema de uma história arquiconhecida, mil vezes contada e outras tantas posta em cinema. Os diálogos do escritor Nikos Kazantzaki foram reduzidos ao essencial, na dramatização realizada por Paul Schrader, o que não lhes retira intensidade, antes pelo contrário.

Temos, com uma equipa inteligente de técnicos e artistas competentes, mais uma versão da vida (da lenda) de Cristo, na crueldade de alguns momentos (os da crucificação, obviamente) e na pureza de outros. O simbolismo da serpente, do fogo, da árvore -- quando Cristo jejua no deserto, depois de baptizado por João Baptista -- é talvez um dos ingredientes menos conseguidos da película.

Outra questão se pode colocar: haveria necessidade de enfatizar tanto o sangue e a dor, de fazer da crucificação o espectáculo tão medonho e hediondo que de facto ele é? Foi a opção de Scorsese, tem que ver com a sua opção filosófica e não o devemos censurar por isso, já que o filme é também, através de Cristo, um testemunho pessoal das obsessões e paixões do realizador. Em seu abono vem a seriedade com que trata as figuras, a suavidade com que transcreve as vozes, a ousadia com que coloca uma banda musical «folk»(?), ou qualquer coisa como música ritual africana, no cenário ora deserto, ora pacificamente campestre da Palestina.

As três horas de filme foram resolvidas, não por soma das partes mas por um sopro inicial de inspiração que ia falhando a Scorsese, confrontado com ambições à partida quase desmedidas. Explica-se assim o episódio público alegadamente «escandaloso» a que o filme daria lugar, antes de estrear em Nova Iorque.

Bem precisado estava de uma certa propaganda e de algum empolamento, o filme que não foi feito para grandes massas de público mas que, também, na solidão individual do vídeo se vê prejudicado na cor e na luz. Apenas no intervalo de tempo onde o tempo pára -- toda a sequência do anjo da guarda -- a imagem se ilumina naturalmente, para perder o castanho, por vezes empastelado, que predomina no resto do tempo.

Quanto ao escândalo público que o filme originou na estreia em Nova Iorque, é fictício. Muito mais fictício do que a ficção com que Nikos Kazantzaki quis humanizar a figura de Cristo. De heresia é que este Cristo não tem nada, antes pelo contrário: remete à mais pura ortodoxia. É na sequência do anjo da guarda, de facto, toda ela em clima onírico, que está o busílis deste livro espantoso do espantoso místico e escritor que foi Nikos Kazantzaki, falecido em 1957 e de que em Portugal, felizmente, existem bastantes obras publicadas, quase sempre em traduções de grande qualidade.

Mais espectacular e verdadeiramente épico é o seu outro livro «O Cristo Recrucificado», mas Scorsese optou por este e há que respeitar a escolha. E se virmos o filme com o amor que ele merece, de certeza que não foi para explorar o episódio virtualmente escabroso de ver o Cristo divino envolvido nos negócios humanos e nas fraquezas da carne.

As dúvidas que dilaceram o coração de Jesus -- princípio de uma concepção existencial, mais tarde escola filosófica -- já tinham constituído objecto de reflexão filosófica em Kierkegaard, que escolheu antes Abraão para testar as forças de Deus face às do Demónio, para personalizar a grande aposta da esperança, a grande dúvida da Fé. Nesta perspectiva, a figura de Judas é quase tão importante como a de Jesus, para não dizer mais importante. A ele foi distribuída a tarefa mais difícil, comparada à de Cristo que era a de morrer na Cruz. É na figura de Judas que a dúvida da Fé assume, convulsiva, a dimensão de alavanca que Kierkegaard expressou em «Temor e Tremor».

Lembre-se que Nikos Kazantzaki já tivera, há bastantes anos, uma adaptação ao cinema da obra «O Bom Demónio», que poucas recordações deixara, principalmente a do actor, o talentoso mas cabotino Anthony Quinn.

Não nos deixemos ludibriar: «A Última Tentação de Cristo» está tão longe da heresia como o seu contrário. Só a Mediocridade, no fundo, é heresia. Porque o espírito sopra em todas as direcções e o amor é que dita a Jesus a ordem de expulsar do Templo os vendilhões.

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Publicado em vídeo pela Edivídeo, o belo filme de Martin Scorsese pode ser visto nos seus 156 minutos de duração

CRISTO SEMPRE RESSUSCITADO






1-3- wilde - > 8236 caracteres -wilde>emcurso>livros> esboços e ousadias sobre o obsceno – leituras mágicas – diário de um leitor de livros

A FIGURA DE CRISTO EM ESCRITORES PAGÃOS(*)

2/7/1992 - Nem Oscar Wilde se deu conta de que, no seu celebérrimo «De Profundis», traçou os prolegómenos de toda a Modernidade passada, presente e futura. Julgando defender um romantismo decadente, estava a definir o moderno, o poético.
«Não é a extensão, mas sim a intensidade, o verdadeiro objectivo da arte moderna» -- escreve. Se em vez de «arte moderna» lermos «modernidade ou «moderno» no sentido de poesia ou espírito da literatura, entender-se-á que Wilde antecipou os vanguardismos dos anos mil novecentos e vinte, tanto quanto Nietzsche deu, com o seu «dionisismo» [também já notado por Gide, quando fala de um nietzscheísmo anterior a Nietzsche] uma antecipação do que Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) com a sua «estética não aristotélica» daria no conceito em que a beleza era substituída pela «força» (em acepção «filosófica», frisa Álvaro de Campos, acepção de ímpeto, furor, demónio dionisíaco).
Embora em todos subsista ainda uma terminologia insegura, no que todos concordam é que, contra a extensão, a «exaustiva bibliografia» e o enciclopedismo galopante, é na «intensidade», é no espírito e não na letra, é no fogo e não nas cinzas, é no núcleo e não na periferia, é no sol e não nas sombras, que está o essencial do espírito moderno, da modernidade de todos os tempos, aquilo a que Wilde chama os «movimentos românticos» de todas as épocas e a que, em homenagem ao ensaio de Henry Miller, se poderia chamar os «movimentos do obsceno».
Wilde, intuindo o moderno, não adoptava ainda a justa terminologia. E não se furta à denominação de «mestre» e à de «artista». «Dante e Ésquilo -- escreve -- são os austeros mestres da ternura». E Shakespeare «o mais puramente humano de todos os grandes artistas». Note-se a citação acertadíssima de Ésquilo -- um dos mais puros representantes do dionisismo estudado por Nietzsche -- mas note-se também a insistência da palavra «artista».
Wilde ainda não distinguia o artista do poeta, quando, afinal, tinha em si próprio um caso exemplar. Wilde, com efeito, o mais artista dos artistas, o mais esteta dos estetas, o mais lúdico dos puros lúdicos, o mais arte pela arte, antes deste insólito «De Profundis», sentiu nascer, ao mesmo tempo que o escrevia, a mais assombrosa das revelações, em nada comparável com os gozos do antigo «virtuose».
Este «De Profundis», na verdade, nada tem, na obra de Wilde, que se lhe possa comparar. Artista, ele o teria sido centos de vezes. Poeta, só o foi quando escreveu os contos e quando, pela dor, conheceu «os elementos de uma vida nova, duma «vita nuova», como confessa: «De todas as coisas, é a mais estranha. Ninguém a pode adquirir senão abandonando aquilo que tem.» [página 49 da edição da Portugália]
Na página 81 da tradução portuguesa do «De Profundis», lê-se: «Vejo em Cristo não apenas o que há de essencial no supremo tipo romântico, mas todos os acidentes, a voluntariosidade mesmo, do temperamento romântico também.»

A CLAREIRA DE CRISTO

Chamando Cristo para o assunto da Modernidade, Wilde abre, sem querer, uma clareira inusitada. Cristo aparece como paradigma do criador, do poeta, devotado até à morte à sua paixão. E que escândalo maior na «cidade cristã» do que fazer de Cristo o primeiro escândalo, o primeiro imoral, o primeiro ameaçador da virtude beata?
Fazer de Cristo -- à custa de quem se engendrou a moralização cristã e, com ela, a virtude beata, a hipocrisia, o remordimento do falso remorso, a mentira de consciência, o pecado, o mal pequeninamente entendido, a falsa castidade e o falso pudor, o amor degradado e a degradação do amor, o amor transformado de princípio de vida e de criação em causa do mal e de ruína e morte -- fazer de Cristo o paradigma do homem que, pela sinceridade ou verdade íntima, se ergue contra a turba dos sepulcros caiados, fariseus e vendilhões do templo, contra a fachada da hipocrisia que é a moral individual que se diz cristã e, generalizando, contra a lei, contra toda a lei, -- é realmente um golpe de génio de que Wilde talvez não avaliasse todo o significado e todo o alcance.
Isso que Wilde intuiu seria mais tarde o núcleo de obras como por exemplo as de Pascoaes (expressamente o «São Paulo»), Nikos Kazantzaki (expressamente «O Cristo Recrucificado»), Carlo Coccioli (expressamente o « Fabrizio Lupo»): Cristo veio para perdoar aos pecadores, à consciência pecadora, e não para exasperar ou exagerar o pecado nas consciências. Cristo veio para perdoar porque só a verdade (a sinceridade) salva. Cristo veio para criar a consciência «obscena».
A aparição de Cristo dá-se na literatura moderna com uma frequência que faz pensar. E sem falar de escritores ortodoxos -- que, nesses, nem seria de admirar -- mas nos que se consideram pouco ou nada ortodoxos e a que se pode dar o nome de «pagãos», ateus, protestantes, panteístas, heréticos.
Nada disso, afinal, já se opõe a Cristo. Ao cristianismo talvez mas não a Cristo. Em muitos escritores pouco ou nada cristãos - Wilde (o «pagão»), Eça de Queiroz (o «ateu»), Pascoaes (o ateoteísta), Alberto Caeiro (o «pagão»), André Gide (o «protestante»), Florbela Espanca (a «pagã»), Nikos Kazantzaki, D.H. Lawrence (em «The Man who Died»), Raul de Carvalho, Miguel Torga - encontramos Cristo. E claro que não o encontramos em pagãos de última apanha, à Teixeira Gomes e Aquilino Ribeiro ou à componente da Novíssima Academia, com manifestação colectiva no folheto «Poesia 61».
Mas além dos escritores que expressamente deixaram obras em que Cristo é protagonista, quantas metamorfoses de Cristo não poderíamos encontrar nas mais inesperadas criações míticas?
O que será o «Codine» de Panait Istrati? E o «Fabrizio» de Coccioli? E a «Cabíria» de Fellini? E o «Gebo» de Raul Brandão? E o D. Ardito de Coccioli? E o «Pároco de Aldeia» de Bernanos? E o «Vassili» de André Kedros? E o «Salavin» de Duhamel? E o «Godot» de Beckett? E a «Alouette» de Jean Anouillh? E a «Pelágia» de Gorki? E o «Amal» de Tagore? E que são essas criações de sentido heróico (onde a humildade e a simplicidade são o primeiro e principal heroísmo) senão metamorfoses de Cristo?
O que está em todas essas reincarnações de Cristo, senão o heroísmo do quotidiano, a coragem de continuar depois de todas as decepções e desilusões, o sorriso puro e magoado e triste de Cabíria que nos olha nos olhos? Fellini quis que Madalena e Cristo ressuscitassem no mesmo corpo. Talvez por isso (e apesar de uma profissional do sexo) Cabíria dá-nos a ideia de que não tem sexo. Profundamente apaixonada e atraente, Cabíria é tudo menos sensualidade só sensualidade. Cabíria poderá ser a réplica abreviada disso que alguém já denominou a «mística do sexo», a propósito de D.H. Lawrence. Fellini não deixa morrer Cabíria. Isso seria heróico. E Cabíria vai do heróico ao trágico. Para isso ela sai da tela. Olha-nos a sai da tela. Fica connosco e aí o heróico começa a ser trágico. O filme começa quando finda. Cabíria prossegue.
Também D.H. Lawrence inicia a narrativa do homem que morreu (Cristo), onde a história costuma acabá-la. Num e noutro, nuns e noutros destes cristos modernos, vemos a pedra de toque: o escândalo. Todos os tribunais em pé de guerra contra o Intruso -- o homem demasiado humano. Todas as leis mancomunadas. Chessman perderá dez anos a ensinar Cristo, a repetir Cristo, na figura de um «assassino da lanterna vermelha», porque forçosamente o Cristo de hoje terá de ser um assassino, ou uma prostituta (Cabíria), ou um vagabundo, ou um revolucionário idealista, ou um pobre gebo, funcionário cansado. Mas sempre um humilde, sempre um anónimo, sempre a pureza a par da paixão desprevenida, da entrega total, a esperança nascendo inalterável do desespero, a alma temperada pela dor. «Deus só vem até nós pelos caminhos da Dor» - diz Miguel Serrano. Mas há quem diga que não: que ele vem pela teologia, ou através de um canal de televisão, o que evita a muito boa gente sofrer e regaladamente verem, ouvirem e cheirarem deus pela televisão.
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(*) Alguns dos livros aqui citados ainda existem, em 16/7/2001, na minha biblioteca do gato . Até ver...♥♥♥