sexta-feira, 27 de julho de 2012

ANTONIN ARTAUD:TRISTE RETROSPECTIVA AC

buzz-ARTAUD

sexta-feira, 27 de Julho de 2012

ANTONIN ARTAUD:
UMA EXPERIÊNCIA INICIÁTICA
QUE SE IGNORA COMO TAL

Arrumado na estante dos filósofos ( e filosofias) existenciais, Antonin Artaud marcou o Trajecto AC por ser uma encruzilhada de caminhos onde convergem e de onde divergem os que, de um modo geral, designei por «Errâncias da Razão».
E neste sentido, o surrealismo está potencialmente presente.
Encarado mesmo objectivamente, a principal característica de Antonin Artaud será a de não se enquadrar em nenhum ismo mas, pela vivência de duras provas e provações (experiência que se diria iniciática) vai abranger uma rede de linhas e de interligações que só ele, pela experiência vivida, estava em condições de (d) escrever.
Existencial e surreal fundem-se em Antonin Artaud.

*

http://www.respire-asbl.be/Extrait-de-Pour-en-finir-avec-le
http://www.dailymotion.com/video/x9idj5_antonin-artaud-pour-en-finir-avec-l_webcam

TEMAS DA CASSETE VÍDEO:

Poema para além do Tempo a Antonin Artaud
Pour en finir avec le jugement de Dieu
Les Epiphanies , de Henri Pichete

*

1-1-tragico-1225 caracteres [6-3-1992]

FRIEDRICH NIETZSCHE & ANTONIN ARTAUD: O INESPERADO LINK

Porto, 1959

# Leituras A.C. em 1959: «Origem da Tragédia» e «O Teatro e o Seu Duplo»
# Intuições AC *****

Pelo trágico passam apenas linhas rectas, que são a mais curta distância entre dois pontos.
O trágico (poesia em acção) é a metamorfose do humano para o transumano, do físico para o metafísico, do natural para o sobrenatural, ponte entre o consciente e o inconsciente, o sacro e o profano, a vida e a morte.
O trágico é a voz de quando já não há palavras ou há apenas palavras.
O trágico, poesia de aproximação, entre actor e espectador, entre os espectadores, entre os idiomas, entre as antinomias, entre as distâncias da terra, entre os tempos da história, o trágico reintegra o mundo a desintegrar-se.
O trágico, primeira força mítica de um tempo sem mitos ou de mitos crus e álgidos, degenerados, prostituídos, une o coração do homem ao coração da divindade, o coração das pátrias ao coração do universo.
Em todos os pontos da terra, nas linhas de fractura e combate, linhas tortas por onde o poeta escreve direito, nas cavernas-refúgio da nova religião [???], grupos de teatro preparam, no quotidiano, a reabilitação do eterno; preparam, queimando-se, a massa ardente de uma mitogonia nova [????] fundam, reconstituindo-a nas pedras e tábuas de um palco, a primitiva «fons vitae» do homem.

*

TRISTE RETROSPECTIVA : ANTONIN ARTAUD

6.Março.1992


Trouxe ontem da feira dos alfarrabistas (Largo de S. Carlos) mais um exemplar da edição de «O Teatro e o Seu Duplo», com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, edição Minotauro, infelizmente sem data.
Significa que guardo poucos títulos de um autor de que cheguei a ter as obras completas, creio que da Gallimard. Tristezas das retrospectivas.

São apenas três os títulos que a Biblioteca do Gato ainda guarda:
Antonin Artaud – Van Gogh o Suicida da Sociedade – Hiena Editora – Trd- de Aníbal fernandes
Antonin Artaud – Em Plena Noite ou o Bluff Surrealista
Antonin Artaud – O Teatro e o Seu Duplo – Trad. de Fiama Hasse Pais Brandão – Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues – Ed. Minotauro
Para compensar a tristeza dos poucos livros que ainda guardo, indico os files que, no meu computador, referem o nome de Artaud, incluindo um longo poema que escrevi :
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cf-4>
acácio-2>
03-03-21>
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obsceno – 2>
obsceno – 3>
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ANTONIN ARTAUD E A MORTE

artaud e a morte

ANTONIN ARTAUD FRENTE AO «MAL DE EXISTIR»

O TEATRO E A MORTE OU A CATARSE TRÁGICA (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 23.Janeiro.1964


1 — A aventura poética preludia a aventura trágica. A palavra antecede ou prefacia o silêncio, a existência o ser, a vida a morte. E a literatura o teatro.
Entre uma e outra aventura, a quietude ou abstenção mística, ausência de palavra e de acto, tempo de suspensão entre a palavra e o silêncio, entre o poético e o trágico, o literário e o teatral, silêncio entre o silêncio da linguagem e a linguagem do silêncio.
Limiar da encenação trágica, a ascese mística elide palavra — a palavra que era para o coro dionisíaco uma das máscaras — e acto. O corpo do místico antecede imediatamente o corpo do actor. A mímica do êxtase prefigura a mímica teatral. Na meditação mística ou existencial inicia-se a «doença» que é o pensar sobre a morte ou sobre o «mal de existir», doença que eclodirá na morte em acto da tragédia.
Na exasperada individuação do místico atinge a vida uma das
fronteiras com a morte, fronteira idêntica à que se toca na tragédia.
Actor é o que põe em acto a morte, o que, vivendo a morte, a esconjura ou exorcisma, por catarse, do corpo do espectador.

2 — Ao falar de quietismo ou abstenção mística, pressuponho incluída a meditação existencial de quantos, dentro ou fora da ortodoxia cristã, heréticos ou não, se interrogaram sobre a «mal de existir», sobre a «doença de existir».
Todos os que, de Buda a Shopenhauer, de Sócrates a Pascal, de Ésquilo a Nietzsche, de Dostoievski a Chestov, de Santo Agostinho a Kierkegaard, de Kafka a Fernando Pessoa, de Raul Brandão a Camus, repuseram o eterno enigma, reformularam a eterna pergunta, sem nunca ouvirem a resposta, nem por uma ideia, nem por uma crença, nem por um argumento, nem por uma evidência.
Não houve promessas de outros mundos, não houve paganismos e neo-paganismos, não houve religiões de igreja e religiões de Estado, messianismos políticos e políticos messias, humanismos e humanistas, salvações e salvadores do mundo, não houve evidências, não houve sistemas, promessas de felicidade e cura, o curto ou longo prazo, para este e para o outro mundo, não houve talismãs, técnicas, poderes, ciências, não houve optimistas e optimismo, não houve nada, nada que abafasse a voz trágica, nada que impedisse o homem de temer a morte e desafiá-la, de lhe fugir e para ela fugir, de a tentar e de nela se tentar, nada que explicasse a esfinge, nada que matasse a fome de absoluto, nada que resolvesse o mistério da existência. Nada acalmou nem calou a voz trágica, voz do silêncio, voz das vozes que o homem perdeu e nele se perderam, voz de quando já nada se sabe, pode e quer dizer.

3 — Na tragédia, nada se afirma e nada se nega. Tudo vem do enigma e a ele volta. A tragédia é o campo infinito da interrogação. O campo da liberdade.
Mas fora do teatro, do teatro quimicamente puro que é a tragédia, o homem não deixa de prefaciar a morte, de pensar a morte, de interrogar a morte. Não deixa por isso de falar, de escrever, de, em suma, «fazer literatura».
Esta a única justificação que ainda hoje pode ter a literatura: a de servir de prefácio à encenação trágica, à montagem teatral, à acção do actor. O autor serve o actor.
Fora isto, que motivos, além dos inconfessáveis, pode haver para defender ainda a literatura? Fora isto, que pode ser a literatura além de «cochonnerie» ?

4 - Para Artaud, o teatro nunca poderia ser o que a degradação burguesa fez dele; uma dependência da literatura, da linguagem, da imunda palavra; o teatro, na sua origem, é a tragédia, assim como a literatura, na sua origem, é a poesia.

5 - Quando o teatro procura a sua essência, ou origem ou substância, ou autenticidade, procura-a nas manifestações ditas religiosas de civilizações perdidas e ignoradas da Civilização ocidental e diz-se que reassume o carácter religioso ou de religião, o carácter de comunicação esotérica ou comunicação sem palavras oposta à comunicação exotérica ou literária.
Este (o teatro da morte e do sagrado e do esotérico) é o teatro das trevas, das vísceras e artérias fluindo, do esgar, da mímica, do ritmo e do ritual, da orgia, da dança, da festa, o teatro de Diónisos, o teatro do actor e só do actor.

6 — No conspecto trágico, a morte não é um apêndice, um terminal da vida. No contexto trágico, a morte é outra realidade (outra vida?) que a vida desconhece.
Medianeiro entre uma e outra realidade, é o actor e, por extensão, o teatro. O actor representa a morte. Induz a morte da potência ao acto e do acto ao facto.
O autor trágico pensa a morte. O actor trágico vive a morte. Pensar a morte é ser doente, doente do «mal de existir».
O tempo é para o suicida, o doente incurável, o condenado à morte, o soldado em campanha, para todo o que pensa a morte, enfim, a única realidade.
O tempo é para o autor trágico, para o filósofo existencial (que geralmente escreve diários, talvez no desejo de fazer parar o tempo...), para o místico, para todos os que pensam a morte, enfim, a única realidade.
O tempo é para o actor, que vive a morte, a única realidade
Vivendo a morte, o actor (trágico) vive a liberdade que é a morte.
A liberdade, para ser liberdade, infinitamente se reclama a si própria, até à liberdade das liberdades — a morte.
A liberdade é o único absoluto. E só o teatro, na pureza da sua origem - a tragédia – a representa. Teatro e morte identificam-se. Ser absolutamente é a morte de teatro.
Sinónimos entre si - tragédia, teatro e morte são - também sinónimos de alegria, de dionisíaca alegria, e os autores trágicos não
são «pessimistas» como diz a crítica, mas apenas isso: trágicos.


7 — A guerra sacralizou-se, na guerra está, segundo Roger Caillois, o sucedâneo das festas, dos ritos orgiásticos, do coro dionisíaco. E no único, exclusivo, desmedido palco do mundo esta ria hoje, realizando-se pelo avesso, a tragédia quimicamente pura, a essência do teatro.
Erguer pequenos palcos, neste palco gigante, parecerá uma
redundância. Mas não é. É virar a tragédia para o direito. É passar a ferro e a miniatura o mundo de hoje. Ê o eco do eco do eco do coro dionisíaco.
«Tempo de excesso, de violências, de ultraje (L’Homme et le Sacré, de Roger Caillois, pág. 230) de alguns homens sobre todos os homens, eis que outra minoria ergue sobre o palco de tábuas a réplica desse excesso, dessa violência, desse ultraje.
Só com a diferença; enquanto no pequeno palco o trágico é de significação individual, no palco da história o trágico é de proporções colectivas e os assassinos não prestam contas a ninguém. Falsos Diónisos, possessos apenas de raiva (Tisífone), de carnificina (Megere), de inveja (Alecto), nada há nessas «erínias que lembre e honre a fúria dionisíaca. Por isso é necessário continuar representando, em palco aberto, o último acto da tragédia, ritual de sacrifício e crueldade em que o homem será a vitima oferendada a si próprio. A encenação está feita, o palco montado, os actores em acção,

AFONSO CAUTELA

ANTONIN ARTAUD SEPARA-SE DOS SURREALISTAS

1-3-artaud-1- notas de leitura - surrealismo & surrealistas - inéditos ac de 1961

ARTAUD : A DOENÇA DE EXISTIR

«O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo” Antonin Artaud no manifesto “Le Bluff Surréaliste”.


«Onde o surrealismo não foi uma escola de optimismo para o cor-de-rosa, mas um esforço ora heróico, ora lírico, ora cínico, de ver claro.»


1961 - Ignorar a situação primária do indivíduo contemporâneo - situação de extrema e desamparada alienação, de vazio total - ou dizer que a doença de existir se cura com panaceias verbais, palavras de exaltação moralizante, eis a tentação a que Breton e outros surrealistas nem sempre souberam furtar-se a tempo, seduzidos por mitologias e optimismos fáceis, pela moralização abstracta, pela substituição de um puritanismo por outro puritanismo.
Sobre a morte e o sentido ou falta de sentido do que se chama vida, Breton nunca proferiu juízos claros, preferindo sempre falar de amor para salvar as situações com pendor para o trágico e aguarelar de cor-de-rosa as possíveis suspeitas de raiz existencial. Sobre a morte houve um único surrealista (expurgado primeiro, reabilitado depois, postmortem...) que disse palavras definitivas. Artaud, o único a “viver a morte” e depois George Bataille, que os críticos de ficheiro não sabem onde hão-de classificar (surrealista ou existencialista?) fizeram por aí incursões que estão longe de terminar e que, de vez em quando, perante os optimismos daqui e dali, os conformistas disto ou daquilo, convém ir lembrando.
Artaud, o Remorso, o maior Remorso, a mais grave palavra de alerta sobre o “cadáver adiado que procria”. De facto, a recaída no existencial, na angústia ou perplexidade existencial, será a alternativa constante para o projecto surrealista, a menos que fosse possível “existir surrealisticamente” a todos os instantes, isto é, em estado de sonho permanente.
Quando à náusea pela existência se junta a indiferença pela morte, quando ao tédio quotidiano se junta o fastio pelas mitologias políticas, quando não se pode ser mais nada além do “cadáver adiado” que nem sequer procria, está-se no instante em que é possível “compreender” Artaud. A sua escolha situa-se na zona de maior perplexidade e só a compreendem (mesmo quando não aceitam) os que conheçam a extensão de uma náusea que os existencialistas filosofantes transformaram em teoria mas que alguns (Artaud, Kafka, Fernando Pessoa, Beckett) mantiveram insolúvel, indissolúvel.
Este tipo de rebelde, se alguma coisa propõe, dentro dos padrões políticos vigentes, é apenas a subversão total de uma ordem a que não pode aderir e com a qual efectua um corte radical, uma vez que não pode, individualmente, vencê-la nem transformá-la. Confissão de uma derrota inelutável? Utópica subida de Sísifo? Perplexidade? Beco sem saída existencial? Recusa de toda e qualquer solução, mística ou política?
Perante estas perguntas, continua válida a crítica que acusa Artaud e outras solidões exemplares de anarquizante. Afirmou-se que revolta sem revolução é conformismo e não há resposta para esta acusação.
Já o epíteto “decadentista” se mostra menos adequado para desqualificar semelhante atitude; porque a poesia pode ser também (além de outras funções que queiram atribuir-lhe) essa tentativa (utópica) de estar fora do mundo embora mergulhado nele. Fora do mundo mas consciente dos problemas e crimes do mundo.
Quando certa gente “decreta” a abolição da angústia é como se obrigassem a curar-se um incurável de último grau. A angústia ou perplexidade existencial é uma condição tão insupera1 individualmente, já e agora, como a condição de classe. Idealista, pois, se apresenta qualquer propósito de escamotear essa condição, ignorá-la ou minimizá-la. O “doente da existência” tem pouco ou nenhum espaço onde caiba e onde o deixem sobreviver. Mas não pode ignorar-se um «leproso» nem arrumá-lo no saco “decadentista”. Porque decadentistas somos nós todos, ou ainda menos.
O “leproso” recusa-se a colaborar mas não deixa de viver por isso o seu lugar e a sua hora. Não ignora as contradições mas vive-as, talvez mais intensamente do que os teóricos que vão afirmando soluções gerais sabendo muito bem que não têm já solução particular.
O “leproso” é pelos menos lúcido e as diferenças ideológicas, bem vistas, são afinal apenas diferenças ou graus de lucidez. A maioria não se sente afectada, porque isso é questão de inteligência, sensibilidade, imaginação. Ser ou não ser doente é questão de lucidez e apenas de lucidez, porque a doença unifica, clarifica, polariza energias; define uma condição de estrutura, afecta a criatura na sua totalidade, na sua origem, no seu núcleo; altera a óptica epistemológica, o aparelho de ver, perceber e pensar o mundo, bem assim o mecanismo de acção e reacção sobre o mesmo mundo; é uma experiência-limite, irredutível, por isso significa saber o peso e gravidade do necessário e aquilatar o valor e gravidade do livre (necessidade e liberdade interdeterminam-se).
Abusivo é se o facto se generaliza ou transplanta da vivência individual para a circunstância histórica, se o facto subjectivo se objectiva, e que se fala de “doença da civilização” quando essa doença é apenas vivida por alguns. A “doença de existir” não autoriza a proclamar a “decadência da civilização”, embora o abjecto do homem-objecto, que é por enquanto a realização mais perfeita dessa civilização, pareça autorizar uma visão definitiva do homem e o beco sem saída da história.

SURREALISMO E DOENÇA

Aquilo que Artaud criticava nos surrealistas - a devoradora ânsia de viver - continua a ser, parece-me, um dos pontos fracos do surrealismo e onde o esforço ora heróico, ora cínico de ver claro (de desmistificar), foi momentaneamente substituído pela cega aceitação de mitologias e optimismos fáceis.
«O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo” - escreve Artaud no manifesto “Le Bluff Surréaliste”.
Eis definida a enorme diferença, a grande distância. Nunca poderiam entender-se porque nunca o animal saudável pode compreender ou aceitar o animal doente. No entanto, na doença reside um modo de conhecer ou debater a realidade, na doença pode estar um dos elos de ligação entre o homem e a realidade, entre o homem e a poesia. No doente pode estar implícito o poeta e a poesia como experiência-limite, tal como a quiseram as doutrinas surrealizantes. Na doença, o facto concreto, indestrutível, inelutável, pessoal e intransmissível desafia as abstracções e as leis gerais. Perante a doença, concreta, sórdida, abjecta (ante-projecto da morte) os ideais abdicam, os sistemas soam a oco, as grandes palavras assumem apenas a cor do ridículo.
A doença, acima do tudo, repõe o problema da literatura e da arte em termos que os bem pensantes recusam, que os saudáveis censuram, que os optimistas (de todas as cores) ridicularizam. A doença repõe o centro da poesia na experiência o no poeta, sendo poesia o que as palavras testemunhem dessa experiência.
Os que pretendem situar o centro da poesia, não no poeta e seu peso ou pesadelo existencial mas na linguagem pela linguagem, na arte pela arte, têm, entre outras, uma maneira fácil de retirar de cena um tão incómodo conceito de poesia; basta falar de psicologismo, suficientemente desacreditado para servir de aviso alarmante, ou de decadentismo.
Para esta última acusação - a de decadentismo - a resposta ficou dada pelo surrealismo e pela perplexidade existencial. Para a doença metafísica ou existencial, a náusea, a angústia de estar, a resposta é idêntica à que se deu para a doença do corpo e do cérebro, das mãos e dos órgãos.
Resta portanto responder aos que, sob o pretexto de biografismo psicológico, rejeitam a experiência como nó central da criação poética. Até para que se não repita mais vezes o disparate de confundir experiência com experimentalismo e experimentação.■

ANTONIN ARTAUD NA ENCRUZILHADA

ARTAUD sempre-1 -scan-sexta-feira, 27 de Julho de 2012

«FENDA» NA MURALHA: "O TEATRO E O SEU DUPLO" SEGUNDO ANTONIN ARTAUD (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 1989 para o jornal «A Capital», coluna «Livros na Mão», poderá ter ficado (felizmente) inédito.

1
MOVIMENTO SURREALISTA NA SUBVERSÃO
"Belo como uma heresia" - escreveu Lautréamont, que, além de poeta maior foi não menor autor de frases-manifesto, de convulsivos aforismos que abriram fendas na muralha.
«Belo como um decreto de expropriação" - glosa depois Aimé Cesaire, da Martinica, em luta selvagem e surrealista contra o colonialismo francês da sua ilha.
Unidade de medida para aquilatar a importância do sonho e do movimento surrealista na Subversão da ordem estabelecida, a Heresia dá o mote da "revolução permanente” trotskista, que ainda hoje está por folhear, como mostram as derrocadas dos estalinismos.


2
O PRETEXTO DO TEXTO
Sem se deixar distrair pela supérfluo, a editora "Fenda" vai dando armas à revolução cultural com algumas obras de capital importância na radicalização em curso do discurso. Pouco importa se, por vezes, recorre a meras reedições de traduções já publicadas mas há muito esgotadas; ou se promove traduções de obras que nunca antes se tinham visto em língua portuguesa, como é o caso de Raymond Roussel e Kurt Schwitters. O importante, nas edições “Fenda”, é a coerência do projecto e o critério selectivo, dando sempre prioridade ao fundamental em detrimento do acessório»
"O Teatro e o seu Duplo", de Antonin Artaud, é uma dessas obras de fôlego que já tivera edição portuguesa na falecida Minotauro. A tradução, de Fiama Hasse Pais Brandão, reaparece agora, na “Fenda”, em "versão integralmente revista pelo original" como refere a tradutora em "Pequenas Considerações Prévias"»

3
SUBVERTENDO A ORDEM EUROPOCÊNTRICA
Curiosamente , ou talvez não, o prefácio da 1ª edição, hoje esgotada, da autoria de Urbano Tavares Rodrigues, não foi agora reproduzido.
Seja como for e em versão autorizada por uma escritora bastante experiente em retroversões, temos agora para nosso gáudio de militantes, o texto que deveria ser decorado em todas as escolas. Quer dizer: se assim fosse, não existiam. Quer dizer: é um dos textos mais subversivos da ordem europocêntrica, judaica quanto baste e cristã que chegue, em que , apesar da Comissão Nacional dos Descobrimentos, existimos.
Outros "orientalistas" vieram estabelecer a confusão no seio do europeísmo que nos contamina desde o berço. Mas talvez Oshawa, Michio Kushi, mesmo Georges Soulié de Morant e até Krishnamurti ( alguns dos mais recentes autores da subversão cultural) não tivessem sido possíveis sem o caminho aberto por Artaud.
Nunca ninguém foi, de facto, tão longe e teve tão cedo a intuição da "coisa" como ele, que escreveu esta bomba-relógio chamada "O Teatro e o Seu Duplo" em 1933, ano-chave da história europeia como o foi, ainda ontem, o ano de 1989, embora noutro plano.

4
ALAVANCA A FUNDO
Eu diria que o teatro é o pretexto do texto para Artaud meter a alavanca no sistema cultural vigente e dar-lhe a volta.
Como era de esperar, cultura e teatro ficaram, desde então, quase na mesma. Mesmo com este furacão de Rodez quase nada mudou na face diurna das formas teatrais consumidas.
Mas o mistério dos grandes "hereges" como Artaud, é que nunca se sabe a que nível profundo do inconsciente colectivo eles estão agindo.
E, quando menos se espera, a crosta da história rebenta, pensando os observadores que foi tudo obra da política. Não foi: o vulcão de homens-chave como Artaud nunca se sabe quando vem à superfície.

5
«LA LITTÉRATURE MÈNE A TOUT»
Por isso, se o teatro continua burguês, graças a Deus, psicológico como uma série de televisão, imundo quanto o necessário à sociedade de consumo; se a literatura continua, como no tempo de André Breton, a "levar a tudo" e se a cultura ocidental continua sendo um tremedal tal como Artaud o denunciava, em 1933, não significa que a força da heresia esteja morta. Antes pelo contrário. Significa que está mais viva do que nunca. Ainda que, como alertava Artaud, "os que vivem, estejam vivendo dos mortos»
Quem (re) ler "O Teatro e o Seu Duplo" sabe que está perante uma poderosa força da Natureza, pronta a atacar quando a violência dos novos "yuppies" for longe demais. Ele está de vigia. É o observatório astronómico de Palomar… Observatório que temos agora, outra vez, à mão de semear, graças à “Fenda”, que assim faz maior a fenda na muralha.
Por causa disso já ganhou o titulo "editora da Heresia".

6
ARMAS À REVOLUÇÃO CULTURAL
Com efeito, em 1989 e graças aos bons ofícios da “Fenda”, outras bombas-relógio vieram , em forma de livro, serenar o nosso espírito, enriquecer o nosso arsenal de luta poética na resistência política.
- Reaproveitando a tradução que Pedro Tamen fizera dos "Cantos de Maldoror" para a falecida editora Moraes, em 1969, a presente edição da “Fenda” ficou substancialmente melhorada sem o prefácio de Jorge de Sena, mas acrescentada, entretanto, de preciosas ilustrações a negro de Salvador Dali, Vallotton e Pastor, retratos imaginários do lendário Isidore Ducasse.
Sabe-se a importância tentacular deste polvo marinho que são os "Cantos". Não há crítica a fazer, há que registar e guardar bem guardado o exemplar de capa azul escura, que a “Fenda” nos enviou, juntamente com outras novidades que ainda estamos a digerir, com todo o apetite.

-"Augusta Pia", de Kurt Schwitters, que julgo ser a primeira obra em português verdadeiramente representativa do "dadaísmo”, que aqui só se conhecia de outiva ou por ficha de dicionário.

- «A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer" , de Stig Dagerman , texto de um suicida incurável que, entre tantas outras coisas, me parece falar da ambiguidade, do erotismo latente, da melancolia
genésica que há num estado maníaco-depressivo, rótulo psiquiátrico do estado larvar chamado lucidez criadora.

- Mais difícil de roer é Raymond Roussel, "Novas Impressões de África", edição bilingue de um delírio vocabular que, publicado em 1932, ainda estamos todos a decifrar em 1990.
Manual João Gomes, prefaciador, dá uma ajuda, com a criteriosa "Introdução no Labirinto de Raymond Roussel” e uma não menos valiosa «Bibliografia de Raymond Roussel". A devorar devagar é a selecção de textos de Raymond Roussel, traduzidos por Manuel João Gomes e em que o poeta francês confessa (?) como escreveu alguns livros.

8
A SUBVERSÃO SURREALISTA
Compreender os mecanismos insidiosos da imaginação, as leis que a regulam, os caminhos e descaminhos do discurso automático, o uso e abuso de coisas como "cadáver esquisito", "non-sense", "humor negro", "anacronismo", "neologismo", etc. é, em saldo final, o que permanece da subversão surrealista.
Enquanto tivermos editoras com a coragem da “Fenda” para prosseguir a única aventura humana que merece o adjectivo de fascinante - a Heresia - dêmos graças a Satanás.
Nem tudo está perdido nas aguínhas mornas do marketing.