domingo, 22 de julho de 2012

DO REAL QUOTIDIANO AO SURREAL FANTÁSTICO

surreal-1- diário de um leitor – a fase literária

SURREALISMO E LUGAR-COMUM: REABILITAÇÃO DO REAL QUOTIDIANO (*)

A obsessão do quotidiano desdobra-se em aspectos que, surpreendidos de per si, elucidam muito mais do que pode parecer. Extremam-se os campos, uns que defendem outros que atacam o quotidiano. Mas estarão a atirar ambos no mesmo alvo?
A «reabilitação do real quotidiano» lida com a variabilidade e inconsequência dos conceitos «real» e «quotidiano». Fixemos cada um.
Os que tomam a fuga ao «real quotidiano» como uma traição, obstinam-se em não ver que o real reside na percepção individual que conduz à conceptualização individuada, de que a poesia e a filosofia constituem realizações afins. Toda a literatura, pelo menos a que é ainda moeda corrente, se esforça, de feito, para uma individuação nos modos como realiza literariamente os motivos e não nos motivos que escolhe; estes podem e devem (segundo, repito, os critérios aderentes de novelística) escolher a banalidade mas não o lugar-comum, aquela que é qualidade do objecto este que é pecado do sujeito.
Se o surrealista inventa uma surrealidade, não é porque desconheça ou destitua a «realidade», no sentido de quotidiano, única consentida dos realistas; é porque se apercebeu do perigo de contaminação do lugar-comum que as convenções do quotidiano propiciam em escala esmagadora. O que o surrealista pretende não é tanto a fuga mas a identificação mais absoluta com a realidade, por isso é mais realista do que os que tal se dizem, identificação essa proibida pelos mil e um intermediários comuns, convencionados, legais. Reage, como se compreende que teria de ser, a partir dos mesmos elementos, pois a verdade é que, por mais que os teóricos do conhecimento ponham e disponham sobre o que devemos aceitar em questão de realidade, ela, para uns e para outros, não deixa de ser, fatalmente, a mesma; mas sem deixar que a essa reacção (momento criador ou de inspiração, em que uma vivência saturada se esforça por tomar forma) se anteponha uma das muitas legalizadas pelo uso. E muito menos pelo abuso. Se intervêm as do uso, temos a literatura realista do senso comum que sendo o limite de negação da literatura, é também o limite de degradação da realidade; a literatura fotográfica equilibra-se entre dois abismos: o nada literário e o mau gosto ou lugar-comum, uso e abuso da realidade-senso-comum, afinal.
Sem querermos definições, improvise-se esta: literatura (ou poesia) é o esforço de adequação de qualquer vivência com a expressão única dessa vivência; porque o que acontece, sem darmos por isso, é existir a vivência original mas darmos-lhe, por deseducação e ambiência degradantes, inadequado expressamente, colhido um quadro dos muitos que circulam quotidianamente, em literatura ou fora dela. Assim o problema seria apenas o de transpor para a forma de expressão única que lhe cabe, única e insubstituível, o que insubstituível e unicamente foi elaborado.
Antes deste problema, porém, põe-se o da recepção das impressões, de que se apurará, depois, a alquimia criadora. Recebe-a o poeta em estado puro? Pela experiência tanta vez artificializada, pelos livros de remastigação, pelo vulgarismo da informação jornalística, como pode ser pura ou imediata a identificação do poeta com a «realidade», aquela que insistimos nos outros em considerar como mais certa, a que se comunica através de intimidade com as grandes obras de criação, mais reais, para nós, do que as pontes, florestas, crises de produção, intempéries e descarrilamentos; mais reais, repare-se que não dizemos as únicas reais. Ao poeta, pelo menos, criador de espírito e não de matéria, deve parecer mais real essa realidade do que a outra. Na medida em que a poesia sai vitoriosa da luta contra os anteparos socializados que impedem a consciência de ser só uma, isto é, de uma única corrente circular de mente para mente, através da obra de criação, realizada, na medida em que isto acontece é que é poesia; o homem, pelos artifícios criados em sociedade, que nem mesmo os socialistas negarão, afasta-se quilometricamente daquilo que lhe está mais perto, da sua própria consciência. A reversão a ela é o esforço de toda a poesia, de toda a literatura, de toda a criação espiritual; criar é, assim, identificar-se.
É o encontro com a sinceridade; sinceridade, entenda-se não a que obriga a confidências perante os outros, mas a sinceridade que é coincidência perfeita do sentido (ou pressentido) com o expresso. Soube o surrealismo ver bem como é degradada e degradante a linguagem usual, as locuções mecânicas, os hábitos de fala. Não quer dizer que ele crie uma fala insocializada, antes pelo contrário: apela para uma linguagem nivelada por mais alto, induz todos os homens a comparticiparem duma possibilidade de identificação das suas próprias intimidades, através da luta violenta contra as exterioridades «reais» que o contrariam; por isso, lutando por uma surrealidade, ele é também um caminho da única e autêntica realidade.
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(*) Publicado na revista «Bandarra-Artes e Letras Ibéricas», não sei em que data: depois d’A Planície e na vigência d’A Planície, com certeza (1956-1959)

JEAN SCHUSTER E GÉRARD LEGRAND


1-7-schuster-1- scan domingo, 23 de Junho de 2002

SURREALISMO E FILOSOFIA(*)

Este texto de Afonso Cautela foi publicado (ver abaixo) no semanário «Jornal de Letras e Artes», 14. Agosto.1963

Comentários à margem de um texto de Jean Schuster e Gérard Legrand- A Filosofia e a Arte Perante o seu Destino Revolucionário - traduzido por Luís Pacheco e editado na série negra da Colecção «A Antologia em 1958 » (Lisboa, 1963), por Mário Cesariny de Vasconcelos.

Se «pensar é conhecer por conceitos» (1) e os conceitos têm que ser definíveis ou finitos, surge para o surrealismo a primeira contradição (2): sendo impensável, tem de pensar-se; tem de pensar-se, não para que se defina mas para que outras definições não colidam com a sua indefinição (3).

Se definir é tornar finito, definir surrealismo é tornar finito o conceito e pressupor que existe um conceito. Mas existirá? E será ele definível? Na medida em que projecta acompanhar o homem no seu movimento de autolibertação, é como ele e como ela - a liberdade -, «réalité indéfinissable» (3), infinita.

À pergunta de Gérard Legrand na revista «Le Surréalisme, Même» n.° 1- - Le Surréalisme est-il une philosophie? (título do artigo) - pode responder-se: o surrealismo não é uma filosofia, mas contém uma filosofia. Em vez de sistema, escola ou corrente filosófica, é o ponto de encontro de tudo o que se manteve fora de escolas, sistemas e correntes. Mais semelhante a uma propedêutica e a uma heurística do que a uma filosofia, o surrealismo na sua mais restrita ou definida acepção - a de grupo em volta de André Breton - foi ponto de encontro e de passagem para muitas correntes que, vindas da mais remota antiguidade mas inaproveitadas pela ciência e filosofia oficiais, ganharam uma súbita actualidade.
Receptor e gerador, o complexo surrealista francês recebeu afluentes de todas as origens, de todos os tempos e lugares, pouco ou nada trazendo de especificamente seu (4); nem sequer o «escândalo» de se voltar e revoltar contra uma ordem cultural que entroniza como exclusivamente viáveis a ordem cientifica, lógica ou racional e as ordens que desta derivam (a ordem técnica e tecnocrática, por exemplo), «escândalo» que foi, antes e depois do surrealismo, o de quantos, pela afirmação da Individualidade Criadora, mantiveram a tradição libertária do homem (5).

Porque «entrar no jogo» é tacitamente aceitar as regras do jogo, porque participar da ordem filosófica, ainda que para a discutir, já é de certa maneira aceitar essa ordem, surge para o surrealismo outra contradição: naquele núcleo doutrinal mínimo necessário para dizer que não é uma filosofia, já está a «entrar no jogo», a reconhecer regras que depois tem de renegar, já está a «filosofar».

Mas não é só isso. Também se nega a «tomar partido» por um dos termos das muitas oposições dilemáticas que formam a história da filosofia dita filosofia e dita ocidental. Recusa-se a ser uma ou outra coisa; recusa-se, por exemplo, a ser idealista ou materialista e quer ser, simultaneamente, idealista e materialista, ou nem uma coisa nem outra, ou antes e depois de uma e outra coisa.

Porque - pensa o surrealista que pensa - quando a filosofia abriu essa e outras cisões, essa e outras antinomias, esse e outros dualismos, surgiu a contradição. A contradição é intrínseca à lógica. Só depois da dicção (filosófica) houve contradição. O surrealista enquanto surrealista quer o impossível: estar antes e depois da filosofia, estar antes e depois da contradição; mas há-de fatalmente contradizer-se, enquanto participar, ainda que para a discutir, da ordem filosófica.

Pensar e dispensar a filosofia, eis a função «filosófica» do surrealismo. Eis o que nele há de «titânico» (6), de «prometaico» (7), de «utópico» (8). «Utopistas» chama Mário Cesariny de Vasconcelos aos que, como Breton, Péret, Lisboa, Artaud (citados na breve nota explicativa do folheto) (5), representam, entre o risco de se contradizerem e o risco de fazerem outra filosofia (mais uma), a máxima revolta contra a prisão da lógica, os caminhos fechados ou a fechar-se, esgotados e esgotantes da filosofia dita filosofia e dita ocidental.

Utópica faina, sim, com o seu quê de loucura e de vertigem (9), mas não ociosa nem gratuita. O utopista sabe que a lógica, a ciência, a razão tem e terá um papel indispensável na revolução; mas além de transformar o mundo - mot d'ordre que os surrealistas foram buscar a Marx - há que, conforme a palavra de ordem de Rimbaud, mudar a vida, faina duplamente utópica, pois, antes que a primeira esmague e comprometa irremediavelmente a segunda, é preciso impedi-lo. Este fundo anárquico do surrealismo religa-o também à mais antiga e arreigada tradição do homem, à luta libertária do Indivíduo contra a Instituição.

Jean Schuster e Gérard Legrand abrem o texto com a afirmação: «O que falta a esses senhores do pensamento socialista é a metafísica.»

Na melhor das hipóteses que teriam os autores querido dizer com a palavra «metafísica» ?

Se há duas acepções, uma substantiva e outra adjectiva, se uma é a Metafisica significando ontologia ou sistema devidamente historiado na devida história destas coisas, e outra é, adjectivamente, o que de metafísica possa haver no comportamento e pensamento de alguém, não temos então nada que lamentar ao pensamento socialista por lhe faltar uma Metafísica na primeira acepção, ou que lhe falte o desejo de ter uma. Nisso, na desnecessidade reconhecida de não fazer regredir o pensamento às construções de universos numa cabeça, parecem hoje coincidir correntes - positivismo, marxismo, neo-positivismo, surrealismo, etc. -incoincidentes aliás noutros aspectos e propósitos.

Na segunda acepção - a da necessidade ou desnecessidade metafísica do indivíduo, aquilo que nalguns continua a ser a fraqueza (ou ...franqueza?) de seres relativos que aspiram ao absoluto (11), de seres finitos que ambicionam o infinito, creio que isso é com cada um e de lamentar é apenas que os teóricos da antimetafísica não pratiquem o que tanto exigem dos outros. A pretensão teórica antimetafisica não equivale exactamente a uma ausência de metafísica; antes pelo contrário, a pior metafísica localiza-se, como se sabe (12), nos antimetafísicos. O que importa averiguar é se no mais antimetafísico dos teóricos, no teórico mais antimetafisico, não continuará inevitavelmente a haver, e desde que teorize, desde que abstraia, desde que filosofe, desde que sistematize, fumarada metafísica.

O logro, em que uns caem e (se) deixam outros cair, é fazer crer que só pelo facto de atirar pedradas à metafísica, pedradas teóricas à metafísica, deixa efectivamente, no fundo e na prática, de ser metafísico.

O que o surrealista não quer é ser tão hipócrita nem tão simplista; se, por mais decretos que abulam a sua fome de animal infinito enjaulado no infinito, é no infinito que tenta projectar-se, é ao absoluto que aspira, ao surrealista nada custa reconhecer (e com toda a franqueza!... ) a fraqueza do homem: eis-nos, simultaneamente, perante outra das funções «filosóficas» do surrealismo - mostrar a hipocrisia dos teóricos da antimetafísica e outra das suas utópicas tarefas: reproblematizar, em termos novos, as relações entre o homem e o absoluto.

O surrealista, além de mais honesto é mais inteligente que os profissionais da inteligência, por não dar nem querer dar por arrumado (13) um assunto que estes, através de escamoteações várias, sumariamente liquidam. Mais materialista que os materialistas (leia-se «teóricos do materialismo»), mais positivo que os positivistas (leia-se «teóricos do positivismo»), mais racionalista que os racionalistas (leia-se teóricos do racionalismo»), o surrealista não se conforma com a estrutura psíquica atrofiante que é por enquanto e que - pensa ele - contrariamente à tese marxista, será sempre a do homem, por mais que as infraestruturas económicas e sociais se modifiquem e enquanto, paralela à revolução material, não se efectivar a «outra» revolução.

O surrealista não deseja uma solução «fideísta» (13), nem uma solução metafísica (dada por qualquer Ontologia), nem uma (dis)solução racionalista; o que propõe e pesquisa é uma revolução nas estruturas mentais, revolução paralela à das estruturas económicas e sociais, a fim de criar capacidades perceptivas, afectivas (11) e volitivas que lhe permitam conhecer o que lhe querem dar como incognoscível, ou cognoscível através dos meios consuetudinários da aldrabice filosófica.

Autêntico realista, não por dar a imagem esteriotipada do real visto segundo a óptica e perspectiva diurnas comuns mas por, através do sonho, do discurso automático, do humor negro e do non-sense, da cabala, fonética ou não, etc, permitir a vigência e vigilância daqueles aspectos que, ainda reais, inserem no real aparente a profundidade e conteúdo que a cópia do cliché realista não dá, o surrealista procura acordar no homem o sentido, nele inato, mas adormecido, do real. Será necessário repetir que o maravilhoso, o poético, o surreal nada tem de metafísico visto que é o mundo nas suas insólitas, inesperadas, inéditas correspondências, correlacionações, analogias?

Ao que vem Hegel no referido folheto e por causa disto é que não se percebe, nem se percebe a falta que ali faz a Metafísica, a do Hegel ou a de outro qualquer. Schuster e Legrand parecem interessados em fazer do surrealismo mais uma escola filosófica, mais uma Metafísica ou Ontologia. Não vejo porém que o surrealismo ganhe nada com isso. Por causa da dialéctica e da falta que a dialéctica faz a um pensamento do tipo analógico como é o pensamento poético, que se recusa, inicial e iniciaticamente, a participar do tipo lógico de pensamento que é o da filosofia dita filosofia e dita ocidental, não vejo que o Hegel fosse necessário.

Dialéctico, na mais remota tradição, é o reconhecimento pelo pensamento das suas próprias limitações e contradições; dialéctico é o pensamento que se autoconfere; dialéctico é a dinâmica do pensamento não dirigido, autodirigindo-se; dialéctico é reconhecer as contradições intrínsecas ao princípio da não contradição e sabendo-as, assumindo-as, ambiguamente (15), assumindo-as, não as escamotear; dialéctico é saber que para se libertar material, social. e historicamente, o homem precisa da lógica mas para se libertar espiritual, individual e totalmente (não só na sua dimensão histórica mas também cósmica) o homem precisa de se libertar inclusive da lógica.

Esta ambição - a de uma «hiperlógica» (16), a de uma transfilosofia, a de uma ultra-razão, a de uma «mais consciência» (17) - faz ainda parte da função «filosófica» do surrealismo.






Resumindo e concluindo, enumerem-se os aspectos da função «filosófica» do surrealismo (18):

1 - Apontar no pensamento lógico, que se firma no princípio da não contradição, as suas intrínsecas contradições e antinomias (19).

2 - Reproblematizar as relações do homem com o absoluto, mostrar a inanidade das ontologias, desmascarar a hipocrisia dos teóricos da antimetafísica e pesquisar soluções inéditas para o problema.

3 - Fazer face à ditadura mental dos que, em nome da lógica, dela fazem «baluarte inexpugnável» para combater, com a sua superstição e charlatanice, toda e qualquer tentativa de desatrofiar as capacidades mentais do homem.

4 - Promover aquilo que a teoria ou crítica do conhecimento disse fazer mas não fez: criticar de facto o valor, significado e alcance do conhecimento lógico

5 - Obviar a que a revolução material (económica, social, política) pelo dirigismo filosófico, pela organização ultraburocrática da cultura, pela omnisciência partidária, etc., esmague e comprometa a revolução humana total

6 - Revolucionar a «psicologia», mostrando antes de mais nada que não é possível uma ciência estritamente positiva da vida psíquica

Depois:

7 a - denunciar os profissionais da psicologia (os psiquiatras, os alienistas, os da psicologia objectiva, os do behaviour, os da psicologia experimental, etc.) e o monopólio que detém, cada um à sua parte ou todos em conjunto, do universo psíquico, monopólio de conhecimento e de cura, opondo-lhe a função de gnose da actividade poética;

7 b - denunciar simultaneamente e por outro lado os que querem fazer da poesia uma coisa estética, um género literário, um meio de expressão, uma linguagem artística, opondo-lhe o acto poético ou criador como acto de gnose

7 c - modificar a mentalidade (ou mitologia) do homem contemporâneo, substituindo por mitos autênticos (os que o surrealista considera autênticos) os falsos mitos, pondo mitos maiores no lugar dos menores; visando, também, através de circunstâncias e problemática contemporâneas, reencontrar, recriando-os, os mais velhos mitos da humanidade

7 d - reabilitar as energias psíquicas do homem moderno, atrofiadas em sistemas estatais totalitários, redescobrindo as mais antigas terapêuticas para as «doenças do espírito» e substituindo quer o psiquiatra quer o cura de almas; pretendendo-se detentor da única autêntica tradição capaz de compreender e dominar as mais secretas forças do homem, o surrealista considera ainda o acto criador ou poético, além de acto de gnose, um acto terapêutico também.

7 e - fundamental é reabilitar nas suas verdadeiras fontes aquilo que a psicologia oficial nega ou persegue sob o nome pejorativo de «ciências ocultas»

7 f - criar ou tentar criar um espaço livre onde o pensamento, indiscriminadamente filosófico, científico e poético, possa prosseguir a sua missão intrinsecamente revolucionária, revoltando-se inclusive contra si próprio se for esse o caso.
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(1) Kant, citado in «Vocabulário de Filosofia», de Armand Cuvillier, Editorial Gleba, Lisboa, 1961.

(2) «La nature ambigue» du surréalisme (qui m'a toujours paru être la meilleure marque de sa «vraisemblance»)» (in Surréalisme est-il une Philosophie?, artigo de Gérard Legrand revista «Le Surréalisme, Même» n.° 1.

(3) «Le surréalisme selon Alquié s'opposerait à la médiation dialectique, et sa vision de l'homme «réalité indéfinissable», dont la poésie est l'expression directe» (...)» (in art. cit.).

(4) A escrita automática é talvez o único «apport» especificamente surrealista.

(5) Aos que se levantam embora para cair vencidos, e revoltam, chamam-se Poetas, escrevam ou não escrevam versos, venham catalogados na história da literatura ou na história da filosofia, na da pintura ou na do teatro, na da música ou na da religião.
Para saber onde está a Poesia e o Poeta, porém, - catalogados nesta ou naquela história, pelos profissionais desta e daquela história - é condição necessária e suficiente saber o que houve de visionário, de utópico, de titânico e se (e onde) a Ordem, qualquer ordem, foi posta em questão.
Claro que o acto poético ou revolucionário é, como todos os actos de subversão absoluta, ferozmente punido: do hospital de loucos ao hospital comum, da excomunhão à fogueira, da deserção à loucura, da pena mínima à pena máxima, eis aí as sanções que os profissionais da ciência, da filosofia, da técnica, da política., da crítica, etc, ou a natureza por eles, se encarregam de aplicar aos que, à margem da filosofia, da ciência, da literatura e da arte oficiais, representam o Rio Subterrâneo e Proibido da Poesia: Artaud, Chestov, Holderlin, Rimbaud, Nietzsche, Fernando Pessoa, Kafka, Breton, Péret, Lautréamont, Cesariny, são apenas alguns nomes ao acaso...

(6) «(...) a filosofia já esquecida das suas dimensões titânicas e das suas ilimitadas possibilidades», in folheto de Jean Schuster e Gerard Legrand).

(7) O termo «prometeismo surrealista é usado pelo Padre Manuel Antunes, S. J. no seu livro Ao Encontro da Palavra (1), ensaios de crítica literária, Livraria Morais Editora, Lisboa.

(8) Referindo-se ao texto de Schuster e Legrand, Mário Cesariny escreve na nota de abertura do folheto: «Entre nós, será mesmo uma raridade ao alcance de muitos e pode circular como preparatória a leitura sistemática de Breton, primeiro; depois, dos utopistas contemporâneos: Breton outra vez, Péret, Lisboa. Artaud...»

(9) «A Revolução deixara de ser aquela vertigem do infinito como a entendiam Robespierre e Saint-Just». (in folheto citado).

(10) A suprema ambição do surrealista é, além de modificar a mentalidade do homem, a mesma dos alquimistas e mágicos; dotar o espírito de omnipotência não só sobre a natureza mas sobre o próprio corpo humano, omnipotência que lhe permita desafiar a morte e o sofrimento, desaliená-lo da sua condição de animal histórico e social, de animal domesticável, de objecto, de número) projectando-o na sua dimensão e condição cósmicas.

(11) Em vez de relativo e absoluto, Jean Schuster e Gérard Legrand preferem falar de finito e infinito, afirmando: «É pelo jogo dialéctico do finito e do infinito que o pensamento libertador recuperará uma dimensão metafísica que lhe é indispensável, Ora se a Metafísica na acepção de Ontologia ou Ciência do ser, supõe por um lado um sistema fechado, por outro um dualismo entre imanente e transcendente, relativo e absoluto, profano e sagrado, mítico e lógico, esotérico e exotérico, ele, e por outro lado ainda uma separação entre física e metafísica, então a palavra «metafísica» não será de maneira nenhuma aceitável do ponto de vista em que pareciam colocar-se os autores: o surrealismo.

(12) Segundo o antimetafísico Abel Salazar «a pior metafísica é a que entroniza a ciência». (in « A Posição actual da ciência, da filosofia e da religião», conferência feita na Faculdade de Medicina de Lisboa, em 3 de Fevereiro de 1933 e editada em separata da revista «A Medicina Contemporânea» (1934).

(13) (...)o hábito (...) de assimilarem a um puro fideísmo toda e qualquer antecipação intelectual ou sensível, assim como toda a construção de carência do racionalismo (in folheto citado).
«Todos aqueles que (...) simplesmente preferem a permanência dos problemas à suficiência arrogante das soluções». (in folheto citado).

(14) «Realistas que têm um nome especial para cada tipo de automóvel, mas somente o nome «amor» para expressar os mais variados géneros de experiência afectiva». -Erich Fromm (in « A Linguagem Esquecida», Zohar Ed., Rio, 1962.

(15) Ambiguidade não é contradição; ambiguidade é a contradição lucidamente reconhecida e assumida.
A ambiguidade do surrealismo é a ambiguidade do homem, com cujo movimento de humanização ou sobre-humanização se identifica.
Note-se que humano e humanizar são palavras ambíguas, tanto podendo significar o que no homem existe de sub como de sobre humano.
Note-se também o papel representado pela ambiguidade no pensamento de um filósofo tão alheio ao surrealismo como M. Merleau-Ponty.

(16 ) «Todos aqueles que trabalham no sentido de uma hiperlógica mais conforme à necessidade e ao direito do conceito (...)» (in folheto citado).

(17) «Como se poderia, com efeito, atingir essa «mais consciência» se nos recusarmos a arriscar o pensamento perante alguns conceitos cuja verdade (no sentido hegeliano) só existe no plano metafísico, como por exemplo, a liberdade?» (in folheto citado).

(18) Se não é possível dar uma definição filosófica de surrealismo, é no entanto possível defini-lo e situá-lo hístoricamente.
Assim, historicamente, entre o que é e o que não é surrealismo, deverá reconhecer-se uma espécie de gradação da periferia para o centro, situando-se este no seu fundador -- André Breton. Surrealismo será assim, em primeira instância, o autor dos manifestos; depois os que, através de purgas, dissidência e segregações, se mantiverem comparticipantes nas actividades do Grupo; na sua máxima extensão, porém, a palavra surrealismo deverá incluir, além da «constelação Breton» ou Grupo Surrealista de todo o mundo, organizados segundo o programa dos manifestos, os que, individualmente, ao longo dos anos, tendo participado do Grupo e até da sua fundação com ele romperam disparando em direcções várias: uns com órbita própria e sem mais ligações além deles próprios (Artaud); outros que, embora prosseguindo uma aventura cujo ponto de arranque se situa no Grupo, aderiram a grupos já existentes (é evidente que se excluem deste número aqueles cujo engagement político os obrigou a cortar com o passado surrealista); outros ainda constituindo grupos com designações próprias (ex.: Louis Pauwels com o «realismo fantástico» e provindos ou não do Grupo Surrealista; finalmente os que designaria de pró-surrealistas: os que, de fora, aderiram uma ou mais vezes não ao Grupo mas a manifestações e actividades colectivas: o caso de Henri Michaux, cuja trajectória poética é afim da do surrealismo.

(19) Por isto é que os surrealistas devem, sempre que possível, repudiar a nomenclatura nascida da sistematização científica e filosófica. E por isso o prefixo anti se generalizou entre eles: antifilosofia, anti-romance, antiteatro, etc. Só o académico aceita as designações e classificações provindas dos quadros taxonómicos elaborados pela cultura oficial.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes» (Lisboa) , em 14/8/1963







SURREALISMO OU ESPÍRITO SURREALISTA?-II









1-2- surrealismo & surrealistas - inéditos ac dos primeiros anos 60












DO ÉTICO AO POÉTICO E VICE-VERSA: SURREALISMO OU ESPÍRITO SURREALISTA?-II (*)

Paradoxo inexplicável e talvez insolúvel é aquele onde radica toda a grande poesia e arte: obsceno, que para a acção instituída, para a norma legal, para o dogma imposto, é sinónimo de imoral, significa para o observador imparcial, independente e objectivo - que o surrealista às vezes conseguiu ser - o único acto moral, que assim se confunde com o acto criador. Obsceno ou moral é o que confirma e grita (como a criança gritou ) a nudez do rei; pornográfico ou imoral o que lhe inventa mantos. Por isso a criança está perto do génio, na sua capacidade de realizar o acto obsceno quimicamente puro. Mais longe do que a criança, estão os adultos pseudo-cultos e formados regra geral por uma literatura “bem educada” que os “edifica” mas de cuja profunda imoralidade nem ele nem a crítica dão conta ou notícia.
Foi essa imoralidade da literatura à venda que o surrealismo viu com invulgar lucidez e afirmou com violenta energia: tivessem ou não alguns dos seus adeptos caído em incoerências e contradições, ficou dito de uma vez por todas que, se « é necessário ser-se absolutamente moderno” - como queria Rimbaud - então é necessário (utópica ou prometaica aspiração?) praticar a Reviravolta, o Salto Mortal, a conversão, que raros praticaram.
Quem ande convencido de qualquer lógica, didáctica, sistemática - ramos, todos eles, da ubérrima cultura racionalista (pensamento dirigido, diria Tristan Tzara) - , não é moderno. Será culto, diplomado, erudito, enciclopédico, será brilhante, será técnico de uma especialidade na Tecnocracia, escravo numa sociedade de escravos, obediente e social, venerador e obrigado. Será tudo isso, será mais do que isso, mas não é moderno. Porque moderno é o que pratica o Desobediência e paga na pele as consequências. Moderno é o que se liberta da imunda cultura para onde tudo o atira e dessa cultura sofre as represálias previstas no respectivo código de bons costumes intelectuais. Moderno é ser escandaloso por obsceno, e por isso liquidado. É ser louco, fora da lei, fora da história. É ser o homem subterrâneo, obsceno ou poeta.

O ÉTICO E O POÉTICO

O desfazamento entre a regra e o acto, a teoria e a prática, o ideal e o real, constitui acusação para todas as morais e nem só à cristã.
Por isso a crítica dos surrealistas franceses ao cristianismo (a de Breton ao próprio Cristo) não me parece acertar no alvo. Estão em causa, nessa crítica, todas as éticas e nem só a cristã. Breton esqueceu que também ele deu origem a um «humanismo surrealista», a uma regra de vida, a um corpo de doutrina moral e que, no fundo, todos os humanistas se parecem, caracterizando-se fundamentalmente e regra geral pela sua...desumanidade no trato comum.
Desde o moderado “tu deves” ao radical “imperativo categórico”, nunca as regras prescritas em qualquer catecismo deram moralidade ou desenrascaram alguém nos momentos difíceis da escolha ou momentos-limite. Todas as morais (e o surrealismo também) são narizes de cera, sopas depois do almoço.
O facto não escapou a Sartre quando verifica que no “acto ou instante da escolha” não há Kant, nem Spinoza (nem Breton e Sartre) que nos salve, que nos guie ou aconselhe. Do “deve ser” ao “ser” vão anos-luz de distância e não há recurso a nenhuma suprema instância que nos aconselhe a decidir por aqui ou por ali no momento decisivo. “Na existência para onde fui atirado” é sempre o inesperado ou aleatório que decide dos meus actos, nunca uma doutrina. Doutrinas e doutrinadores, aliás, fizeram-se para ficar na prateleira, ensinar nas escolas, entreter polémicas nas revistas da especialidade.
Sartre acabou por propor um humanismo, mas teve previamente a suficiente lucidez para verificar e afirmar que as morais se fizeram para o homem ideal e nunca para o real.
O surrealismo, embora enredado também nessa contradição de base (na medida em que engendrou e propôs doutrina) ajudou a desmistificá-la e a reconhecer que a ética verdadeira nasce e morre com o indivíduo. A moral tem a sua fase óptima enquanto o não é. Propagada para uso das gentes, institucionalizada e em regra, com corpo de prosélitos e aparelho de apostolado, com código e catecismo, aquilo que foi a experiência única e irreversível de um indivíduo passa para a fase de hipocrisia ou desculpa colectiva de uma colectiva covardia.
Ético, portanto, será apenas o acto de revolta contra qualquer autoridade, dogma ou doutrina instituída e homem moral o que se revolta - nunca o que adere. O que diz “não” e nunca o que diz “sim”. O homem revoltado - cuja genealogia o surrealismo traçou e Camus apagou - exerce um esforço de libertação contra todos os maquinismos opressores da liberdade individual e o problema está exactamente em saber se essa revolta pode coexistir com uma existência relativamente prolongada, se a atitude ética se incompatibiliza com toda e qualquer atitude política.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, dos anos 60, deverá ter ficado inédito

O ESPÍRITO SURREALISTA PARA LÁ DAS ESCOLAS-I


1-2- surrealismo & surrealistas - inéditos ac dos primeiros anos 60

SABEDORIA FASCINANTE VERSUS ESCOLÁSTICAS: SURREALISMO OU ESPÍRITO SURREALISTA? (*)

Enquanto movimento organizado, com “livros de texto” e referencial doutrinário, na há dúvida de que o surrealismo tem quarenta anos (1924-1964). O espírito surrealista, porém, poderá afirmar-se que tem 4.000, se o identificarmos (muito legitimamente, aliás) com a arte de todos os tempos sem distinção hierárquica estabelecida sobre períodos clássicos e românticos, sem discriminação entre arte primitiva e arte civilizada. A consentir nesta discriminação, só para inverter os termos e chamar primitiva, bárbara ou académica à arte dita civilizada, e chamar civilizada (porque de todas as civilizações conhecidas e desconhecidas) à arte dita primitiva...
Se mais nada tivesse a seu favor, ao surrea1ismo pertencia o mérito de ter feito essa e outras distinções, pondo no seu lugar de luxo (e de lixo) o clássica, no cadeirão de seda o académico e no mausoléu os mortos.
Um aspecto há em que o surrealismo significa um contributo sempre positivo, seja qual for o ponto de vista sob que o encaremos: refiro-me ao seu ímpeto contra todos os academismos, até mesmo e principalmente o academismo que pudesse resultar das próprias teses e realizações surrealistas. Porque estas - diz o surrealista - são as mais perniciosas formas de modernismo, formas neo-académicas e pseudo-modernistas, que se torna necessário denunciar e combater com urgência, com intransigência.
Por isso sustenta uma atitude permanentemente polémica, até contra si mesmo, na medida em que é facilmente transformável noutro academismo.
A sua recusa de estilos, géneros, dinastias literárias, eras e escolas foi no entanto exemplar e - reconheça-se - mais sadia e vio1enta do que qualquer outra. O segredo desta virulência está talvez em que o surrealismo procurou colocar o problema num plano diferente do plano estético, afirmando que a luta não se trava ao nível das escolas - escolas contra escolas - mas ao nível de vivências culturais. A luta - afirma o surrealismo um tanto quimericamente - é a da cultura ou sabedoria fascinante contra a cultura clássica e períodos subsequentes. Se apurarmos o ouvido - afirma - verificaremos que nunca pia em solo: atrás do pio, há sempre em surdina a sanfona clássica, o pífaro esteticista, o trombone neo-realista, etc. E contra as solicítações académícas há que manter a lucidez e a vigilância e não admitir que a revolta surrealista possa alguma vez assimilar-se com ou render-se à mentalidade do Establishment.
É com essas que o surrealista não quer nem pode confundir-se, porque “ser surrealista” é fundamentalmente libertar-se da “imunda” cultura para onde tudo o atira e dessa mesma cultura receber as represálias previstas em todos os códigos de todas as ordens de todos os bons costumes. Surrealista é o obsceno e obsceno o que exerce um esforço de libertação relativamente a todos os maquinismos opressores e repressores da liberdade individual. Recordemos: estado, igreja, exército, escola.
Da escola, porém, parte quase tudo - afirma o surrealista - , porque toda a obra de «humanização» é obra de mentalização e à escola, depositária dos humanismos e das humanidades, está entregue o destino, estrutura e condições da cultura estabelecida. De acordo com e na órbita da instituição madre - a escola - as outras giram à sua mercê e à mercê delas os indivíduos que as servem.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, dos anos 60, deverá ter ficado inédito

RIMBAUD ABSOLUTAMENTE MODERNO

1-3-s&s-2 - surrealismo & surrealistas – inédito?

A LITERATURA ANTI-LITERÁRIA? OU A REVIRAVOLTA SURREALISTA? (*)

«Il faut être absolument moderne» - Rimbaud

Relativamente à literatura “literária”, as críticas do surrealismo acertam geralmente no alvo e puseram em evidência o núcleo do problema.
Se para a crise, doença ou fadiga de “aqui estar agora”, se para o mal-estar, o fastio, o vómito de existir só a ciência, a técnica, a política e a religião emitem parecer, aconselhando paciência, afirmando esperança (e que no futuro as futuras gerações ganharão o que nós perdemos, hão-de viver aquilo por que muitas gerações morreram), o surrealismo levanta-se para gritar “ burla” a essa encomendação para o futuro e para a espécie das nossas angústias presentes, individuais, concretas.
O surrealismo grita “burla” e chama a literatura para substituir no coração dos homens aquilo que a ciência, a religião, a política e a técnica coligadas prometeram mas não deram e ainda por cima roubaram: uma compensação para o tédio quotidiano, uma cura para a neurose crónica do homem alienado (quer esta neurose se chame capitalismo, socialismo, fascismo, sindicalismo, totalitarismo das direitas ou totalitarismos das esquerdas), um impedimento à morte sistemática e em massa, a norte e a sul, a leste e a oeste.
Eis o que alguns surrealistas parecem ter visto com mais lucidez do que ninguém: a literatura que não reverter imediata e directamente à sua verdadeira função - libertar o homem, na medida em que é possível ao homem libertar-se individualmente -, é porcaria, é lixo, é abjecção, paleio, paliativo, mentira; sem esquecer que a verdadeira libertação não é apenas espiritual nem apenas material, o surrealismo concede à literatura, exige à literatura uma função de urgência ou emergência. O surrealista pergunta: no dia em que o homem for feliz, precisará da literatura para alguma coisa?
Particularmente no que respeita ao romance (ao novo-romance, incluído), o surrealismo manteve sempre uma especial aversão, vendo nisso - no romanesco - um dos maiores atentados contra o real, um retrocesso assustador nas técnicas destinadas a promover e a fomentar a imaginação criadora, uma forma mais de, com histórias e historietas, “distrair e adiar”, distrair os homens dos problemas e adiar as soluções.

Para o surrealista, a imaginação é mais do que muitos queriam e menos do que muitos julgam. É a única linguagem da experiência única e não o anedotário dos escritores de “fecunda imaginação” que se desentranham a contar para toda a gente, em termos de toda a gente, o que acontece a toda a gente no meio de toda a gente, as intrigas com muita gente.

A denúncia da literatura “literária” ( da imunda literatura) feita por Breton e Artaud, é um dos aspectos em que o surrealismo continua vigente e vigente a sua crítica. A inflação “ficcionista”, - desde as clássicas obras-primas aos “best-sellers” de 500 páginas que se substituem conforme os prémios, os júris, as máquinas publicitárias e as empresas editoras interessadas, subentendem uma organização que desagradaria necessariamente à exigentíssima “deontologia profissional” dos surrealistas. O seu quixotismo não invalida a força dessa atitude. A “industrialização das artes e das letras” assume por vezes proporções e aspectos que só não afectam e ofendem os completamente insensíveis ao mecanismo da abjecção.
Se o “romanesco” - seja o naturalista e realista de anteontem, seja o neo-realista de ontem, seja o não-romance de hoje - é para o surrealista sempre literatura “literária”, a “imunda” literatura a entreter o tempo e a mascarar os problemas, o acto surrealista supremo, mesmo quando se revela através da literatura, dirige-se ao centro em fogo das questões e dos problemas. Num processo de iniciação surrealista, a literatura não existe como literatura - como um fim em si mesma - , como “literatura literária”. É um meio, um sinal, uma técnica, um reagente que permita a acção de entrada no imprevisto, a conquista do desconhecido, a metamorfose do corpo que escreve.
Se “il faut être absolument moderne”, se com isso queria o Rimbaud dizer que é preciso ser absolutamente contra o clássico e contra o académico e contra o romântico e contra o pseudo-moderno ou neo-académico, se ser moderno, absolutamente moderno, é praticar a Reviravolta, a Revolução, a Conversão, a Desobediência, o Salto Mortal e ser, corpo a corpo, anti-história-pátio-das-comédías-europeu, - quem anda por aí convencido de todas ou de algumas das virtudes da ubérrima cultura vigente, não é moderno: será entendido, enciclopédico, célebre, brilhante, bolsa de estudo, técnico de uma especialidade, escravo numa sociedade de escravos, obediente, social, venerador e obrigado. Será tudo isso, será mais do que isso, mas - proclama o surrealista - não é mais nada além disso.
“Ah! a grande faina de enterrar os vivos e desenterrar os mortos.!”
Revelou Breton algumas afinidades “subterrâneas” entre autores de muitas épocas e diversos lugares, permitindo a reconstituição de alguns terrenos pouco estudados e mal conhecidos. Deve-se-lhe ter combatido os “preconceitos do racionalismo” e foi esse o seu maior mérito. Nem Breton nem nenhum surrealista proclamou alguma vez a loucura generalizada como método para conhecer a realidade e dominá-la. Combateu, sim, a loucura e a estupidez da inteligência que não reconhece os seus limites, a superstição da ciência, a mitologia do racional, a metafísica das doutrinas pretensamente anti-metafísicas. No Grande Rio, no Rio Subterrâneo muitos foram os parentescos encontrados, correntes e subcorrentes que fazem do surrealismo um ponto de encontro e de partida, sempre móvel, sempre instável na sua função propedêutica de abrir caminhos e portas em vez de os fechar.
Por isso o surrealismo investiu principalmente nos domínios daquilo que, por qualquer preconceito, por qualquer moral, por qualquer sistema, fora considerado “proibido”, secreto, utópico, inconveniente ou imoral. Foi essa a grande aventura, o grande debate. Breton apenas desafiou posições estabelecidas, lugares-comuns, superstições, fanatismos, viessem eles em nome do racionalismo ou do irracionalismo. Levantou o “mapa da região” e permitiu que novos exploradores se aventurassem nele.
Se poesia é a”liberdade livre” a que se referia Rimbaud e o acto de liberdade livre o acto obsceno, - do acto poético se dirá que nada tem a ver com as antinomias e categorias estabelecidas por uma ordem intelectual que ele principia, enquanto livre liberdade, por repudiar.
Seja qual for a linguagem que usa - literatura, pintura, música, teatro, cinema — o poeta só é poeta, quer dizer, criador, quando destruir algumas ou todas as leis da ordem estética. Destruídas elas, fundidos temos os géneros, fundidas teremos as artes, fundidas teremos as antinomias.

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(*) Este texto de Afonso Cautela e provavelmente de 1956 + ou -, deverá ter ficado inédito

A ÉTICA DO SURREALISMO

1-4 -56-1- surrealismo e surrealistas

O ACADEMISMO DO MODERNISMO: 
ENCONTRO E DESENCONTRO COM OS SURREALISTAS

1956

MAIS ALGUNS MILHOS HÍBRIDOS

Voltemos ao Grupo de Lisboa. Várias metamorfoses sofreu, de surrealizante a surrealista e a des-surrealizante, com surrealistas de nome que o não eram de facto e com surrealistas de facto que o não eram de nome.
Se «Contraponto-revista» representa, como dissemos, o hibridismo neo-mais surrealista, se a revista «Árvore» representa o surrealismo a des-surrealizar-se, com ponto de inversão em Éluard, e se o existencialismo nunca teve lugar nem colugar em nenhum periódico português, os «Córnios» representam aproximativamente o hibridismo do existencialismo com o surrealismo, por inspiração de Eduardo Lourenço, muito lido nos filósofos do concreto e que só é pena tenha sido mais um divulgador bem informado do existencialismo europeu, do que um existencialista que nos desse, em língua portuguesa, um existencialismo português, pela transposição (e não apenas pela tradução) do espírito existencial.
O desespero, o suicídio, a falta de metafísica, a clareza até certo ponto racional, a cumplicidade do surrealismo para com o marxismo contra o existencialismo, acoimado por aquele de “idealista”, o sentido do concreto que esse tal “idealismo” sempre manifestou em oposição ao abstracto do materialismo dialéctico, bebido em Hegel, o Metafísico e o Idealista, o sentido do absurdo que não agradava aos cínicos e epicuristas com raízes em Sade e que gostam mais de viver do que de bananas, o ascetismo inerente a muitos existencialistas, a começar em Nietzsche e, finalmente, e talvez sobretudo, o descrédito em que o existencialismo fez entrar as molas-chave do não idealista surrealismo (liberdade, transformação do mundo e amor, cujo descrédito Sartre e Camus levaram à última das últimas consequências) - tudo isto impedia a fusão (embora não impedisse, por esses críticos além, a confusão...) entre as sucursais portuguesas das escolas de Sartre e Breton.
O surrealismo, inclusivamente, tem fumos de filosofia ética, de posição vital, de humanismo, o que o existencialismo só por graça e gosto do jogar com os chavões humanistas pode querer.
”Desespero humanista”- escreveu o heterodoxo Eduardo Lourenço. O seu amigo França é que não deve gostar de ouvir falar em desesperos, ele que se confessa bretonista a este ponto: « É o homem mais lúcido dos nossos anos de vida: André Breton.».
Com Sade, Henry Miller, Lawrence e umas festas nupciais a André Gide, viu-se a «antologia dos autores modernos» em muito sério transe de operar a viragem que falta na dobradiça deste meio século português. Mas chegou ali (ali, ao tal sítio) e engasgou-se. A hereditariedade reconhecida nesses sacerdotes pela liberdade dos máximos, foi a virtude que, por nossa parte, conhecemos e reconhecemos nos robicundos cinco números de uma bela e europeia revista. De todas as exegeses biográficas pouco mais se extraiu do que negrume, devido talvez ao intenso brilho do sol (negro), mas ficamos ao menos a saber quais eram os santos tutelares do movimento. Sobre Nietzsche, o silêncio; deve ser considerado da periferia... Sobre o existencialismo, o já notado encosto desconfiado.
Ora o imoralismo, selo velho de velhas batalhas a cavalo, desactualizado nos tempos das batalhas frugalmente mantidas, mecanizadas e atomizadas, era à data já um lugar-comum. Mas de lugares-comuns se faz o nosso assento e se estratificam solos de onde hão-de nascer as ideias novas.
O imoralismo serviu, ainda quando não servisse Emanuel Mounier ou Rolland na França, Tagore ainda vivo, na Índia, a ensinar aos homens a arte do ser criança, Lagerloff na Suécia, reconstituindo sagas como um Fedro moderno, Kazantzaki na Grécia e Istrati na Roménia; o imoralismo serviu, que mais não fosse para estrato de segurança sobre o qual florescessem novas formas de moralidade humana. Nunca se poderiam dar os nossos conterrâneos dos «Córnios» por vistos e achados, tanto em relação aqueles nomes como ao do prório anti-humanista Nietzsche. E não podiam porque nem sequer o irracionalismo os fez ver que o fogo ateado na Europa, tarde e a más horas, a estava finalmente ligando ao velhíssimo continente dos budas e a fazer dela a justíssima península de uma Ásia que o teimava há centenas de séculos em o ser pela geografia mas ainda o não era pela cultura.
E não deram ouvidos a Nietzsche, porque o primeiro espeleólogo da Modernidade fora selado pelos detentores de mandos demasiado hediondos para que houvesse coragem de partir o lacre e ver afinal onde residia a marosca: se no suposto doutrinador e explicador da hediondez, se nos futuros aproveitadores do génio ao serviço de políticas de trazer por casa.

Sobre tudo isto, o que ensaiou a nossa “antologia de autores modernos»? Uma hermética conjugação de estudos hermenêuticos, como se o pão da arte fosse tão bom de roer como o osso histórico, um rosário de traduções, de reivindicações, de ingenuidades de pensamento aprendidas no ”pensador” Fernando Pessoa (e assim se caluniou o maior actor português dos tempos modernos e o mais distraído dos pensadores mecanógrafos...). Os professores de filosofia, os didactas da estética e do sentimento, os propugnadores de uma crítica científica e, por extensão, de uma poesia também científica, os estilistas, os académicos do modernismo, ai iam tendo o seu quartel general, se não fosse a avisada argúcia do coordenador. Todavia, em matéria de renovação estética, tudo foi póstumo. E «Pentacórnio» espatifa-se às suas próprias mãos. Inadaptação ou incapacidade?

Entretanto, chocava-se a «Graal». E que pinto calçudo saiu! Uns leves pios de poesia concreta quiseram estabelecer o pânico mas o caldo já trazia a virulência atenuada porque a renovação...não era nova, vinha do Brasil, vinha de toda a parte menos de onde se podia pensar que viesse, excepto se se pensasse na Bienal de S. Paulo e no movimento turístico que a completa. Mercado propício, tanto à poesia de David Mourão Ferreira, como à prosa do senhor José-Augusto França, no Brasil (S. Paulo) deram afinal os Córnios e a Graal, sua antipodal inimiga, um abraço . Não há dúvida que os grandes perigos são o lugar das grandes reconciliações. Poesia concreta quer dizer que já eles próprios estavam aflitos com a poesia abstracta. Quem diz poesia abstracta, diz pintura abstracta. Quem diz pintura abstracta, diz José-Augusto França, seu “introdutor” cá nas modas. Pintura abstracta: terra fora do planeta, planeta fora da galáxia, galáxia fora do universo, universo fora de... de fora.., de fora: aí mesmo (estão vendo, não é verdade?): Graal e Córnios dão as mãos. Fernando Guedes e França, mais tarde, a propósito de catálogos o outros assuntos de monta, polemicam. Mas nada impede de vermos aqui o cordão umbilicalmente fraternal a ligar os dois irmãos siameses do academismo português nos últimos anos; o abstractismo plástico e o em verso.
Dividida conforme os géneros, comprometida conforme as frentes e as fontes, foi de bafio e desolação extrema a primeira impressão de leitura da revista “bi-mestral”. Só em Fernanda Botelho, através de uma longa novela, vimos algum resquício inovador, parente daquele cristianismo de Bernanos e Coccioli ao mesmo tempo temente e irreverente a Deus e à Igreja (repare-se que Coccioli foi traduzido e prefaciado em Portugal por José Blanc de Portugal, porta de passagem, porta estreita de passagem entre as duas publicações de que vimos falando). Matilde Rosa Araújo quis aceitar a responsabilidade de juntar esta Graal com a sua inconciliável irmã Árvore. Repare-se : foi uma mulher que estendeu a mão à palmatória... Parece, com efeito que, quando inteligência está a ser o único caminho da confusão, o coração puro será o único caminho da vida e da claridade: a claridade que sustenta o “estado de natureza” que é a literatura testemunhal ou a poesia desambiciosa de Matilde Rosa Araújo.
Julgo que ao coração das mulheres (se elas não estivessem também a transformar-se em “femmes savantes») estaria hoje destinado, em cultura, um papel mais curioso e exigente que à inteligência dos homens que reduziram, sob todos os aspectos, este mundo a um açougue, a uma cloaca, a um bordel, ou a um campo de concentração. Se o poeta se aproxima do coração do mundo, a mulher está infinitamente mais próxima do que os filósofos, catedráticos, eruditos, filólogos, metafísicos, cujo órgão cardíaco obliterou.
O retorno à vida, à fonte, à poesia, pelas mãos de Rosalia (Jacinto Prado Coelho sustentou a nau Graal com esse mastro real), pelas mãos dos discípulos da liberdade e que detestam punhos, sejam fechados sejam de renda, mesmo e acima de tudo os de renda, pelas mãos de Florbela, e também aí nos não faltará o testemunho probatório de uma vida tanto mais moral quanto mais intensa, mais visceral, mais impreconceituosa, mais pura, mais imoral”. Julgo que o mapa não é difícil, agora, uma vez na nascente, nos cantares de amigo ou no Canto Jondo, de recompor. Com abstenção, claro, dos doutores conhecidos e achados em muita ciência e transcendência, à busca da demonstração matemática de Deus e do uma cátedra onde o ensinem aos homens.

CRÍTICA DE ARTE E CIÊNCIA DA ARTE

Ao estudar, um dia (7) Raul de Carvalho em cotejo com José Terra, quis evidenciar a distância que vai da poesia absoluta à poesia relativa, da imaginação inteligente à inteligência imaginosa ( e imaginária), dos poetas autênticos aos falsos vates. Além de José Terra, porém, podia coligir outros nomes, escolhidos entre os mais típicos no aspecto que importa agora estudar: o da inspiração involuntária ou imaginação, e o da poesia intelectualizada até ao fastígio. No Vitorino Nemésio do O Pão e a Culpa, no Jorge de Sena dos sonetos, em Alberto de Lacerda, Tomás Kim e José Blanc de Portugal, a confusão é da mesma natureza que leva alguns desses mesmos “poetas” a intentarem a crítica que chamamos “metafísica” da obra de arte, querendo explicar o inexplicável, racionalizar o irracional, tocar o intocável, inteligir o ininteligível enquanto críticos; e enquanto poetas, meter a inteligência onde ela não é chamada, no acto da criação.
Antes e depois, nada temos a condenar a cultura do poeta; não somos defensores do poeta por geração espontânea e quanto mais terranês e inculto melhor. Que o poeta seja, sim senhor, culto e inteligente, o que não sendo condição necessária muito menos o é suficiente. Mas que a cultura não mate a inspiração, que a erudição não mate a poesia, que a cabeça não esmague o coração na altura em que este só canta se for livre. A poesia desses “poetas”, mais voluntária que inspirada, mais requintada que pura, afigura-se-me um logro de excessiva inteligência, enquanto a parte ensaística, à luz da qual terá, necessariamente, a sua poesia que ser estudada, os abona como intelectos tenazes, de apreensão rígida e contundente e, principalmente, muito trabalhada.
Repito: se nunca confundi erudição com cultura (e é a erudição, em todo o caso, que sobreleva nas prosas ”críticas” daqueles escritores), também não pretenderei que ao acto poético se lhe retire o que o singulariza: um acto de suprema sabedoria. Mas sabedoria nunca foi nem será sapiência, saber, erudição. E pior ainda do que o voluntarismo no acto poético, é a opinião intelectualizada que, declarada ou implicitamente, a maioria, senão todos daqueles autores, mantém sobre a obra de arte.
Parece-me claro que existe um equívoco subjacente em todas as congeminações críticas destes inteligentes. E se é possível que uma nova religião poética esteja a nascer e um novo alcorão se encontre disseminado na doutrina, como leigos teremos, por enquanto, que ignorar e, enquanto ignorantes, o dever de fazer perguntas e pospor dúvidas. A matemática paira sobre a poesia. Claro que esta, pobre pomba de guerra, se o milhafre desce, não ficará bem e haverá sangue. Isso queríamos evitar e por isso nos damos ao trabalho de mostrar certa indignação pela poesia desinspirada.
Entre os colaboradores dos Cornios é em Eduardo Lourenço que se patenteia mais vivamente a contradição da crítica contra a crítica. Dele trataremos em parágrafo especial. Mas a pretensão de erigir a crítica da arte em ciência da arte acentua-se noutros colaboradores da revista, tal como Jorge de Sena e José Blanc de Portugal, atingindo neste último alarmantes proporções, como se pode verificar através de um artigo inserto em Acto (Nº 2), onde se analisam os sonetos de Jorge de Sena. Neste a contradição adoça-se por uma poderosa cultura humanística, por um espírito mais original e independente que qualquer daqueles e por uma mais viva e ordenada inteligência crítica. Jorge de Sena já pode ser considerado um pedagogo da arte e não um teorizador (como José Blanc), um divulgador (José Augusto-França) ou um metafisico (Eduardo Lourenço). Em qualquer deles, porém, o pendor professoral mata o educador, cuja função é incompatível com as doutorisses que muito transparecem nas suas prosas, nas suas traduções, nas suas sapiências. A poesia de Jorge de Sena e José Blanc, bem como o seu teatro e mais o de José A.-F., são matéria para alguma discussão, como aliás toda a poesia inteligente, demasiado inteligente, que tem desaguado na nossa terra,  vinda desta vez de Inglaterra. Se os Blanc de Portugal à custa da Simbolic Logic de Dogson desenvolve um forçado humorismo (bem mais conseguido na Ulisseia Adúltera, peça em 1 quadro de Jorge de Sena), desdobrado em demonstrações silogísticas para fazer rir, fala já muito a sério quando se dispõe iniciar-nos n' «as bases para toda a Interpretação, em especial da interpretação da Poesia.”. O artigo em questão ( no já citado Acto nº 2) é informativo sob o aspecto do cerebralismo com presunções matemáticas.
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Este texto de Afonso Cautela, do ano 1956, deverá ter ficado inédito e felizmente