sábado, 21 de julho de 2012

MARCEL JEAN E ARPAD MEZEI: GÉNESE DO MODERNO


1-6 surrealismo e surrealistas

DA CIÊNCIA LÓGICA À HERMÉTICA: O MEU (DES) ENCONTRO COM OS SURREALISTAS

16/Julho/1989 - Este texto, longo e chato, permaneceu inédito (felizmente) e foi escrito, ao que parece, entre 1956 e 1958, destinando-se provavelmente aos cadernos «Zero», de que saíram em Ferreira do Alentejo apenas dois números, após os quais a PIDE interveio.
Com citações a figuras muito badaladas da cena literária de então, assume uma intenção polémica, no espírito de «crítica, convívio e controvérsia» que os cadernos «Zero» explicitamente e em subtítulo assumiam.
Sem nenhuma profundidade, dada a sua intenção deliberada e principalmente polémica, continham-se nesse texto algumas intuições fundamentais de A.C. (infelizmente) sobre a diversidade dos padrões culturais e o contributo que a literatura surrealista, nomeadamente ensaística, dera para a descolonização cultural do escritor, o meu maior cavalo de batalha dos anos 50, 60 e arredores.
Não será isso, no entanto, que o absolverá de ser um texto, além de longo e chato, imbecil (feliz ou infelizmente). (Afonso Cautela)


A LITERATURA COMO CRIAÇÃO DO MUNDO

Os surrealistas, partindo da prévia informação de que não querem letreiros, impedem-nos de os considerar o que são: e aqui começa a ambiguidade. Julgo que exageram os que pretendem arvorá-lo em processo e quase em teoria do conhecimento ou epistemologia; e julgo que a tal equívoco se deve a “prosa surrealista” de alguns dos ensaístas estudados a seguir. O pensamento elíptico e por imagens, contra o discursivo e racional, porque pretende um fim em si próprio que nenhum acto racional (e portanto social) pode ter, acaba por não ser nem pensamento nem poesia: letra morta. Já é mais aceitável o surrealismo como processo de confusão no mundo. E muito melhor ainda o surrealismo como “reabilitador do real quotidiano”, rejuvenescimento do comum e banalizado, enriquecimento do conhecimento do real sem ser o seu único ou principal método de conhecimento.
Como os surrealistas, vemos na literatura uma arma em vez de um fim, uma desforra e não uma cumplicidade com a abjecção. Por isso somos, com eles, anti-literários, no desprezo pela poesia-joia, poesia-arte e poesia-estilo, pela poesia palaciana ou inteligente, pela poesia “ao serviço de». E como os surrealistas, cremos numa possibilidade de comunicação com o real absoluto, surrealidade ou supra-realidade, aquela onde até agora tinham exclusivamente manobrado os metafísicos teóricos, comunicação essa efectuada através da poesia.
Mas o que nos impede de aceitar o surrealismo em toda a sua extensão é verificar que ele circunscreve o real ao literário, em vez de considerar a Poesia como Criação do Mundo. Não nos interessa a literatura nem os géneros literários. Interessa-nos, sim, em todos os géneros, em todos os idiomas, em todos os campos da actividade humana (e nem só no cultural, é nem só no artístico, e nem só no literário), em todas as épocas e em todos os lugares da torra (mesmo os que giram fora da órbita ocidental) descobrir a fotosfera, essa “fonte activa de energia radiante” em todos os grandes criadores do mundo.
Ora o surrealismo circunscreveu ao Ocidente, a determinadas épocas, quase que à língua e literatura francesas as suas pesquisas. Como podemos acreditar que os «sept sages de la civilization double», viessem todos de França, isto é, de Paris? Fora da literatura, quantos outros «sages» não conta a cultura francesa? E, além da cultura francesa, quantas não haveria ainda a averiguar? Esqueceram- se os surrealistas de que o mundo não é Paris? E de que os seus famosos «sept sages» podem não passar das fraldas muito raramente chamuscadas do «soleil noir» que arde e refulge sabe-se lá onde?
Sem falar, é claro, dos Shakespeares e que tantos outros da cultura ocidental e mais a sua incurável miopia (“estado daquele que tem a vista curta”, informa o dicionário). Os nossos surrealistas aceitaram a lição de Paris de modo incrítico e pueril. As primeiras impressões são as que prevalecem e nós somos, em grande parte, o que forem, em determinada idade crítica ( ou incrítica) os primeiros seis ou dez livros que nos impressionarem.
Ora, em determinada altura, foram livros surrealistas o que veio de Paris. Uma visão mais ampla de tudo, impede a fé absoluta na cartilha surrealista. Aliás, se o surrealismo não é uma escola literária nem artística, mas um estado de espírito, como estado de espírito, e antes que existisse o surrealismo soit-disant, ele existia e continuará a existir. Como movimento libertador, aqui o iremos passar em sumária revisão, já que historiá-lo cabe aos historiadores e vivê-lo aos que o aceitem como dogma revelado. O espaço que dedicarmos às manifestações surrealistas (como vamos preferir chamar-lhe, em vez de escola, movimento ou corrente) justifica não só o interesse que pessoalmente nos merece como o que, objectivamente, achamos dever merecer a toda a gente. Pena é que as publicações surrealistas (um pouco pelo gosto ocultista inerente...) apareçam e desapareçam, não cremos que pela venda imoderada ao público mas pela escassez de exemplares impressos e recolhimento imediato, à base, dos que sobram.
Contraponto, revista e depois editora antes das comadres se zangarem, propiciou algumas edições. Como revista, os dois exemplares que possuímos atestam a promiscuidade em que até certa altura viveram surrealistas e neo-realistas, talvez porque se entendessem quanto aos fins, embora se desentendessem quanto aos meios. Nestes é que a porca torce o seu já de si retorcidíssimo rabo.


JOSÉ AUGUSTO-FRANÇA

Gostamos sempre que nos ensinem. E a respeito do surrealismo não nos podemos queixar, pois há um dos do falecido grupo que fala muito em “pedagogia” e já escreveu um diálogo “pedagógico” a convencer não sei quem das excelências da por ele chamada Arte Moderna; houve, também, pintores surrealistas que vieram falar da sua pintura, expuseram-na e impuseram-na; e Cesariny, dos «melhores poetas pós-fernandino» (2) meteu-se, embora meteoricamente, a crítico, escreveu crónicas anacrónicas e parece que se houve bem no mister. São, enfim, uns sábios, epígonos que se consideram dos “sept sages de la civilization double”.(3)
E nós, que andamos tão empenhados em que nos ensinem tanto a ciência lógica como a hermética, nós que tanto aspiramos a tocar o “coração do real” como as barbatanas do mesmo real, não podemos ficar indiferentes, embora fiquemos de pé atrás, diante do “aveuglant éclat” dos referidos cirurgiões do “coeur du réel”(4).
Deve ser por causa do brilho, deve; mas - pergunto - o que nos ajudam os do centro a lá chegar, nós, os da periferia? Nem sequer se entendem entre si! O historiador oficial do movimento, aos soluços (ou arrotos?) escarra nas pessoas e não explica nada: ”E nela, e por ela, eles saberão onde o homem deve escarrar » (5)
Confusos “pedagogos” estes do “soleil noir ». Se estão de posse de uma ciência oculta, é evidente que a perdem se o desocultam e a única maneira ou pedagogia será tornarem-na ainda mais oculta. Mas então para quê tanta febre em nos leccionarem?
José Augusto-França é o jornalista e panfletário mais activo do grupo. As páginas literárias de que se alimenta o “cadaveroso reino” estão por conta dele e deles. Que têm o instinto didáctico de um grande advento, não há dúvida. Mas o que ensinam eles? Que querem? Onde vão? De onde vêm? De onde vêm, sabemos: saíram, acabados e prontos, do tabuleiro de Paris. E nós, que estamos aqui para perguntar, apenas para perguntar, como leitores, maus lei-tores e leigos de todas as ciências, inclusive as ocultas, nós, perguntamos: a ciência oculta que, nos tempos em que o Mundo estava metido no Mediterrâneo, já se alargava do Nilo à Mesopotâmia, com postos de pronto socorro em vários pontos do continente euro-asiático, poderá, hoje que o mundo é interplanetário, estreitar-se à França dos franceses? Se a arte moderna que, como se sabe, herdou de várias origens, as mais exóticas e longínquas, exóticas no espaço (México, Índia, China, Japão) e longínquas no tempo ( Altamira, manipanços, Miró), como se percebe que o pensamento moderno, cuja génese é estudada no já citado livro de Marcel Jean e Arpad Mezei, Genèse de la Pensée Moderne, que estamos a seguir de perto nesta acidentada travessia, se deva apenas aos sete sábios que, por coincidência, são todos franceses? Não conseguimos saber que “civilisation double” vem a ser essa. Mas desconfiamos, preliminarmente desconfiamos (que a virtude da desconfiança não tem sido das menos expandidas por estes cínicos e cépticos da nova idade).

De posse, além disso, deste tosco instrumento que, não sendo razão dialéctica, nem razão teórica, nem razão pura, nem razão vital, mas um apoucamento e degenerescência de todas elas, a que talvez possa chamar-se uma sem-razão ou bom-senso, o que podemos nós mais, em face da “civilisation double”, do que desconfiar? Em vista ao que de mais geral podemos concluir da doutrinação ocultista até nós chegada, a melhor tradução para essa “civilization double” será a de “civilização ambígua”. Isto, claro, para não lhes chamar, além de ambíguos, mistificadores ou cabotinos, de que é específico o já referido escarrador (o que escarra é escarrador) dos Córnios.
Julgamos que o nosso bom-senso, rebento podre e tardio das cepas cartesiana, kantista e hegelista, chega para a ambiguidade, igualmente um seco e degenerado pé do grande ramo existencialista: Nietzsche (dionisismo), Kafka (absurdo) e Kierkegaard (desespero). Como dúvida prévia temos assim que martelar nesta desproporção de métodos: a ambiguidade joga e não joga, faz e não faz, diz e não diz, afirma e não afirma, entende e não entende; o bom-senso, o nosso bom-senso, ou nega, ou afirma, ou diz, ou não diz, ou sim, ou sopas, nunca é e não é ao mesmo tempo. Reconheço a desmodernidade dos meus escrúpulos mas o respeito pela condição humana, onde cabem ambíguos de dois gumes e racionalistas de um só, exige que a ambos pratique este prefácio heurístico, este feixe do hipóteses perguntadeiras. Não querendo analisar nem penetrar em nenhum, apenas queria mobilizar os primeiros socorros que nos permitam, porventura, entendê-los um dia, a eles que nem a si próprios se entendem. Porque acima deles e de nós está o que está. Não somos detentores da Verdade nem lutadores contra a Mentira, mas prefaciadores de ambas, apesar de todas as Verdades maiusculadas que são, talvez, a outra metade do rosto de todas as Mentiras.

Mas falemos da corrente, nada marítima e toda e sempre continental como têm sido as correntes a que melhor chamaríamos vias férreas, visto que é o Sud-Express que as traz, no caso em questão dentro das malas especialmente viajadas do senhor da Galeria de Março, França chamado, não sei se por baptismo, se por alcunha, se por hábito adquirido. O França! E toda a gente sabe que se trata de um caixeiro-viajante, ajoujadinho com as últimas, que depois as já referidas folhas descarregam, com porte alfandegário. Gostamos de gente que trabalha e nada oporíamos ao labor generoso do articulista, se estas ondas invasoras e opressoras não dessem em resultado falsíssimas idolatrias, e o prolongamento da asfixia que sobre a liberdade de pensar de que tantos séculos dogmáticos, sistemáticos e escolásticos nos tinham desabituado. É como representante de mais uma escolástica que o trazemos a lume.
Professor e não pedagogo, porque:
1 - Notícias, notas, lembranças, informações, agendas, bagagem e mais bagagem vinda directamente, sem elaboração, de Paris, é mister de todo o bom repetidor da ciência alheia, de que há já, neste canteiro da Europa, muitos e exímios jardineiros.
2 - Incapaz de pensar como toda a gente e muito menos por si só, e de modo a que o diabo, ao menos, o perceba, usa de uma gramática cuja tradição vem daquele nominalismo metafísico que se entreteve séculos e séculos, a jogar ao bilhar com as altas palavras, os altos princípios e outras coisas tão altas que ninguém lhes chega. O publicista em questão acrescenta-lhe uns poses surrealistas, o que não chega.
3 - Um pedagogo tem ideias claras, ainda que sobre assuntos obscuros ou principalmente em relação aos assuntos obscuros, avisando o leitor de uma atenção mais concentrada para as obras que a reclamam. O pedagogo prefacia as obras. Cada um que penetre nelas, se lhe chegam os dentes. Mastigar-lhe a comida é que não é de pedagogo, é de professor. Se nos fala de Henry Miller, não ficamos a saber nada do espírito de Miller pela tradução, em muito mau português, que dele nos faz o crítico. Se fala de pintura, borda literatura (má) à volta dos quadros. E nós, nem quadros, nem nada: ficamos azuis.
4 - Não há uma linha de pensamento que ligue os artigos de aqui aos de ali, os de hoje aos de ontem. Parecem fruto de soluços incidentais, de momentâneas comichões, das primeiras palavras que ocorrem à caneta. Muito menos se descortina uma unidade substancial na obra, que se de imaginação não é, de pensamento também a não podemos considerar.

Quem parece tão aguerrido apologeta da imaginação, concorre assim, com a produção copiosa a que se entrega, com a dialéctica frustre, pretensa e pretensiosamente analítica, (não crítica, não racional - que seria o menos), ambígua, não pedagógica, portanto, para uma confrangedora esterilidade imaginativa, quer prática quer literária, para a estagnação das potências infernais da criação poética. Ora a esterilidade é tudo quanto há de mais contrário à pedagogia da criação... Não duvido que Augusto-França esteja repleto de boas intenções e todo o seu desejo seja, de facto, civilizar-nos. O método é que é infeliz, ineficaz e maléfico. Não lhe agradecemos, antes pelo contrário. Fora a propaganda de alguns pintorzinhos nacionais de abóboras ou de pinta-monos modernistas, que lhe devem a nomeada em catálogos, exposições, revistas e artigos por ele copiosamente distribuídos, aqueles que não precisam de José Augusto-França para toda a gente os conhecer e reconhecer, como é o caso de alguns grandes realizadores cinematográficos com os quais, por vezes, investe, como é o caso de Vieira da Silva, Amadeu de Sousa Cardoso e outros pintores ou escritores, esses não lhe estão, com certeza, agradecidos, porque ele só tem feito caricaturá-los, desfigurá-los, apresentando-os em versões suas.
5 - Aprendeu mal a lição. Um bom educador começa ele próprio por aprender e só depois é que ensina.
Discordar de José Augusto-França não quer dizer que discordemos do espírito das correntes que ele segue e que tão perniciosamente quer transportar, sem transfusão, de Paris para a Pátria. Estamos com ele: no primado da imaginação sobre a ciência; no ódio à civilização racionalista e tecnocrática; no amor da poesia e em que é ela o substratum de todas as formas de arte; na necessidade de uma pedagogia da arte, de uma educação para a arte e da arte na educação; no anti-literário e no gosto de caminharmos para a literatura não literária, para a pintura não pinturesca...; no estudo de algumas figuras fundamentais da poesia em prosa como as que os Cornios apresentaram; na não aceitação pura e simples do desespero existencialista, mas na sua transcenção pela liberdade, pela imaginação e pelo amor) na acção fora do especulativo, fundando revistas, dirigindo galerias de arte, escrevendo em jornais, desenvolvendo, enfim, uma acção pedagógica, que só é pena esteja falsamente orientada por um falso método.
Discordamos: que faça aquilo que nega, aplicando a razão a domínios onde não deve empregar-se como os da interpretação da arte, numa prosa forçosamente ocultista, que nada esclarece e nada contribui para introduzir o leitor no mistério das obras. Toda a prosa sobre arte, em nosso entender, deve constituir um prefácio ao irredutível da arte. A prosa de José Augusto-França não tem valor crítico nem ensaístico porque lhe faltam todos os atributos da crítica e da ensaística: clareza, inteligência, coerência, imaginação criadora
A sua prosa é académica, metafísica, na linha dos metafísicos ou filólogos do amor, da arte, da poesia, do espírito, de deus, a sua prosa é escolástica, como queríamos demonstrar.

UMA OPINIÃO

Entre a poesia que reclama o primado da inteligência e a que reclama o da imaginação, é oportuno arquivar a opinião de que a poesia não é ideia, sentimento, intuição, sensação, emoção » ( 6 ) como diz João Gaspar Simões, o que explica a desatenção com que tem visto os poetas da imaginação, Raul de Carvalho e Mário Cesariny. Para o poeta o mundo não é o “mundo como vontade e representação” dos metafísicos e muito me-nos “como vontade e sentimento” dos líricos. Para o poeta da imaginação ou poeta absoluto, Poesia é o “mundo como imagem e vontade”. João Gaspar Simões comentando a poesia de António Quadros, diz que esta beneficia de quantas regalias foram concedidas aos poetas pela nova «revolução francesa», o movimento poético que entronizou Baudelaire. Pois é, desde Baudelaire que poesia é “mundo como imagem” e desde Nietzsche que poesia é “mundo como vontade”. Falta agora a última e necessária síntese, que nos não virá certamente da lírica sentimental, cada vez mais pingadinha, mais exangue, mais roída do tempo, como foi assunto de um versículo de mais atrás, lá no «Zero-dois» que deus haja.
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(1) In Genèse de la Pensée Moderne, essai de Marcel Jean e Arpad Mezei, Paris, 1950, pg. 221.
(2) Manual de Prestidigitação, de Mário Cesariny de Vasconcelos, pg. 35
(3) Genèse de la Pensée Moderne, pg.221
(4) Genèse de la Pensée Moderne, pg 217
(5) Tetracórnio, pg. 72
(6) Diário Popular, 5/9/1952

ACÇÃO SURREALISTA: A CONQUISTA DO IMPOSSÍVEL

s&s-1> surrealismo e surrealistas - notas de leitura

A GRANDE AVENTURA: NA VANGUARDA DO DEBATE

A POSIÇÃO HISTÓRICA DO SURREALISMO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 28/7/1965, foi publicado na revista «Cronos» - «Cadernos de Arte e Literatura» - Nº4, em data inlocalizada


28/7/1965
- A história contemporânea propôs algumas encruzilhadas de que raros quiseram ter consciência; a resposta às perguntas, a solução (provável) dos problemas, a sequência das situações ficou normalmente no tinteiro, por covardia ou resignação. Mas os factos não deixam por isso de falar (e falar bem alto) até que os ouçam, até que se lhes responda.
O surrealismo, um dos poucos movimentos contemporâneos a ter consciência imperativa dessas contradições e desse apelo, tentou responder, tentou corresponder. Talvez falhasse, falhou com certeza, mas tentou: tentou a resposta e perspectivou a pergunta de um ângulo rigoroso, sem nenhumas concessões à ordem e forças que a sustentam. Simplesmente parece não haver, não ter havido espíritos que, trabalhando em seu nome e sob o seu rótulo, se mostrassem à altura das próprias ambições. Algumas obras surrealistas recaíram no artístico e os autores conformaram-se por vezes à ordem estética, política e ética estabelecida antes e depois mas que o movimento, em princípio e por definição, repudiaria. De qualquer modo, pertence-lhe o mérito de ter resistido mais tempo do que o habitual em tais emergências. E de ter dado o exemplo a futuras saídas para o impasse. Não faltou lucidez a muitos dos seus teóricos, mas fal-tou-lhes talvez clareza de pensamento, evidência na proposição pública dos temas e palavras de ordem fundamentais.
Fora do surrealismo, poucos foram também os ensaístas que ajudaram a esclarecer e a sistematizar. Confundiu-se tendenciosamente e por motivos de arregimentação ideológica, deturpou-se de propósito as intenções e realizações do movimento. Estalaram as polémicas e as energias consumiram-se quase todas num exibir de roupas pessoais. Entretanto, o surrealismo excedia as suas próprias intrigas de bairro, as suas próprias teorias e realizações, as suas próprias forças e fraquezas. Iria constituir, por velocidade adquirida, o ponto de encontro inevitável de muitas coisas esquecidas pela história oficial e outras coisas que o homem subterrâneo, oposto à história visível, iria revelar e relembrar. A primeira pesquisa do «sub-solo» pertence-lhe e pertence-lhe por isso o inegável, o irrevogável direito de prioridade. De tal maneira que venceu assim e por isso a notória obscuridade de pensamento dos seus teóricos, autores quase todos de uma prosa hermética ainda quando crítica.
Muitas figuras, obras e correntes «subterrâneas» houve que o surrealismo francês ignorou, limitando-se o grupo de Paris, no chauvinismo que imemorialmente caracteriza a cultura francesa, a pesquisar nesta o que havia e a minorizar ou ignorar o restante. Como se o mundo fosse a França! É este um dos aspectos a corrigir, pelo lado de fora; a corrigir pelos que olham, param e escutam o surrealismo, dispostos a superá-lo. Porque vale a pena aproveitar a experiência ganha e prossegui-la. Porque vale a pena retomar o que o surrealismo deixou em aberto e em suspenso, lembrar as vias que reabilitou, franquear as portas que entreabriu, redescobrir as fontes que ele descobrira.
O que se deverá, pois, entender hoje e aqui por surrealismo não será já o que se entendeu ontem e em França. Surrealismo não são apenas obras e autores do grupo francês ou dos grupos, fora de França, assim designados; é todo o levantamento bibliográfico e iconográfico promovido pelos surrealistas, re-iluminando tradições ocultas, religando circuitos aparentemente perdidos, pondo outra vez em causa e discussão temas dados por arrumados, assuntos tidos por tabus, verdades rotuladas de crendices, livros e autores declarados mortos (mas que se verificou estarem mais vivos do que muitos vivos!), critérios considerados anacrónicos.
Claro que conviria usar outra palavra, menos comprometido do que «surrealismo», mas não sei se tal palavra existe ou se será legítimo criá-la. Apenas por diligência simbólica, utilizaríamos a alegoria do «subterrâneo» para significar as correntes reunidas no e pelo surrealismo, que nele convergiram ou que dele irradiaram, já que a comum característica subterrânea as identifica a todas. Abrangendo o surrealismo, ponto central da encruzilhada, as várias metas e vias que nesse ponto central se cruzam, deve falar-se com mais propriedade de um «complexo surrealista», de modo a incluir nele não só o que explicita ou historicamente se designa de surrealista mas o que, antes e depois, vem animado do «espírito surrealista», proto-, cripto-, ou para-surrealista. Esta amplitude semântica deverá ter-se presente no uso da palavra «surrealismo».
Precisamente porque tentou solucionar problemas, ensaiar respostas, anular antinomias, realizar «impossíveis», podem apontar-se ao surrealismo contradições. Muitos surrealistas viveram e assumiram essas contradições no próprio corpo, às vezes de forma dramática. Na coragem ou lucidez com que o fizeram, reside o valor e exemplaridade da sua poesia. O surrealismo não temeu as contradições porque não quis fugir aos problemas. E se os outros agrupamentos apresentam maior coerência interna, menos fraquezas e pontos críticos, é simplesmente porque fugiram às perguntas, escaparam às situações, escamotearam os problemas. Escapismos vários e vários conformismos tecem assim a teia em que o surrealismo se viu enredado. Por eles vaiado, por eles foi entregue e apontado às massas como inimigo público número 1. Nem um só dos intelectuais bem criados (com todas as vantagens que dá o acordo com qualquer ordem estabelecida) deixou de proceder ao julgamento sumário e ao enterro precoce do surrealismo, cuja luta contra bem pensantes e conformistas, escapistas e académicos, obscurantistas e oportunistas (disto, daquilo, daquiloutro) se manteve com mais ou menos glória e assiduidade. Necessariamente polémico no meio da Abjecção aceite e fomentada, há que averiguar sempre, nas polémicas em que se envolveu, de que lado está o franco-atirador, o homem só-entregue-a-si-próprio e à mercê dos escorpiões, e de que lado estão os abnegados defensores das instituições que «corajosamente» defendem, nelas apoiados. Em tais polémicas há que averiguar sempre a desvantajosa posição dos surrealistas perante os autores de discursos. O surrealismo, neste aspecto, nada inovou, continua apenas a intérmina polémica do homem só contra o homem em grupo, do Indivíduo contra a Instituição, do franco-atirador contra o alistado. E não admira que tentasse reunir em grupo as unidades ou forças isoladas, as «solidões combatentes», embora haja de se lhe reconhecer aí uma das suas mortais contradições, a mais lealmente assumida e quixotescamente mantida: única tentativa que o nosso tempo conheceu de organizar o inorganizável, de aliar em uma só força os franco-atiradores de todo o mundo, de reunir em grupo os incuráveis individualistas chamados poetas, de submeter a uma lei de clã os rebeldes anarquistas de sempre, de tornar enfim o quadrado redondo...
Contradição estrutural - que Breton e os mais jovens responsáveis pelo movimento parece não terem resolvido - é de facto a que se verifica ao preconizar simultaneamente uma acção individual e um propósito de acção organizada ou colectiva. A acção individual ou poética não se compatibiliza com uma acção útil, prática, eficaz, organizada. A articulação entre os indivíduos para uma acção conjunta pressupõe aquilo que um individualismo anárquico não consente: coacções de ordem geral e disciplinar sobre os indivíduos, sobre as deliberações mais ou menos irracionais e indisciplinadas do indivíduo. Daí as purgas consecutivas verificadas no seio do grupo francês e a impossibilidade de haver grupos surrealistas por muito tempo. Daí também a utopia (o «drama» na expressão enfática de Victor Crastre) de o surrealismo querer participar numa acção política efectiva e daí a acusação (infundada) de ignorar a circunstância histórica, os problemas de base ou infra-estrutura, de ser um idealismo mascarado de predilecções ateias e dialécticas. Esta crítica, aliás, permanecerá vigente enquanto permanecer insuperável a antinomia histórica que lhe dá origem (indivíduo contra grupo) nas sociedades politicamente fechadas, estagnadas, ditas autoritárias e totalitárias.
No entanto, esta impossibilidade de facto é mais do que suficiente para provar que o surrealismo não esteve alheado da história nem propôs estética que preconizasse o indivíduo alheado dos problemas concretos, do movimento histórico, das circunstâncias. Antes ao contrário: nenhum outro movimento se preocupou mais com a ética e menos com a estética. Sem constituir teoricamente um humanismo moral, nenhum outro movimento se preocupou tanto com a posição (a dignidade) a manter pelo indivíduo frente à Instituição e, se necessário, contra a Instituição. Tão exigentes, aliás, foram os princípios da ética surrealista que poucos lhe ficaram fiéis, indo a maior parte substituí-la por uma política (ou «ética para uso de muitos»). Movimento «individualista», mesmo na acepção pejorativa que queira dar-se à palavra, é evidente que não podia resolver problemas materiais ao nível colectivo e, se nunca tal pretendeu, também é verdade que nunca ignorou esses problemas, nunca se alheou do tempo e mundo contemporâneo. Não ignora a História, embora, porque se trata de acção individual e individualista, não esteja preparado para agir e lutar colectivamente no sentido de a modificar. Agiu, sim, na esfera que lhe parecia própria e as dezenas de censuras a que os textos surrealistas continuam fazendo dores de cabeça dão prova da sua virulência, da sua utilidade, da sua eficácia. Se a palavra escrita é assim tão ociosa, tão platónica, tão historicamente ineficaz - porque se afanam tanto as ordens estabelecidas em cortar e perseguir, em calar e amordaçar a palavra «obscena» dos surrealistas? Os que o perseguem conferem-lhe um valor e significado que, de outro modo, talvez o surrealismo não tivesse...
Se a acção surrealista é uma específica pedagogia, uma educação sui-generis, se o seu campo de batalha se limita (ou amplia?) às ideias, e da literatura fez a temível arma que se sabe, evidentemente que o surrealismo teria de falhar enquanto movimento político (que aliás nunca quis ser). Ao doutrinar as gentes, da sua doutrina nada mais podia extrair-se que preceitos de conduta individual, relativamente embora a problemas de relacionação e convivência colectiva. Critica-se o surrealismo pelo seu «idealismo», pela sua revolta inconsequente, pela sua luta quimérica contra as várias formas de alienação organizada a que os regimes políticos - autoritários e liberais - submetem os homens. Mas qualquer epíteto com que se rotule, ninguém lhe contesta nobreza moral na intransigente atitude contra todos os conformismos e a prontidão com que, durante muitos anos, os mais activos surrealistas denunciaram toda e qualquer espécie de obscurantismo, de opressão, de «traição ao homem».
Resumindo e concluindo:
se a acção só é possível depois de organizado um grupo, se a organização de um grupo reclama sobreposição hierárquica e a hierarquia significa obediência, mutilação da liberdade individual, atrofia de capacidades críticas e criadoras, dir-se-ia que a acção surrealista estaria condenada por dois lados:
1º) porque não é possível conceber dentro do grupo a máxima liberdade ou indisciplina individual (sinónima de poesia);
2º) porque o acto de anarquia individual estaria condenado à sua própria solidão, não passando a acção surrealista de actos surrealistas isolados, dispersos, incapazes de coordenarem ou impulsionarem um movimento de alcance prático.
A contradição existe e o surrealismo não a ignora. Simplesmente tentou o impossível, enquanto outros se renderam perante ele. Por isso o surrealismo, mau grado esta e outras contradições de base, ganhou uma surpreendente e dinâmica irradiação, afirmou e continua afirmando uma notável vitalidade, o que leva a crer que não só as contradições são o seu campo privilegiado como essas são as contradições inerentes a uma época e a quantos assumam a sua época em toda a extensão e responsabilidade. Como tal, o surrealismo ainda não teve quem o batesse e superasse. As contradições assumem-se, não se evitam. Porque as viveu e assumiu, enquanto outros as escamoteavam e se lhe escapavam (quantos escapismos viu a nossa época!), o surrealismo continua a ser o movimento mais polémico e, em consequência disto, o movimento mais discutido de quantos, centrados na Europa em princípios do século, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, exerceram influência mais ou menos duradoura. Fraca influência, é certo, pois os debates de ordem intelectual deixam sempre a perder, em colorido e sangue derramado, às guerras armadas; mas, de qualquer maneira, debate que necessariamente interessa ao homem do nosso tempo e mundo, mergulhado nas contradições históricas e querendo aprender a vivê-las enquanto não puder ultrapassá-las.
Primeiro o futurismo (que desaguou na baixa política), depois o dadaísmo e o micróbio devastador que inoculou, depois o surrealismo - que há quarenta anos sustenta a vanguarda do debate - quer se considerem subprodutos históricos ou contributos para a marcha do progresso humano, todos concorreram para modificar a óptica com que o homem se examina a si próprio, desenhando-lhe simultaneamente a fisionomia dilacerada, convulsa e contraditória, assimétrica e ambígua. O clássico e o moderno, o académico e o anti-académico, o retrógrado e o revolucionário - eis, por culpa do surrealismo, os termos antitéticos inevitáveis em que o debate se formulou e terá de continuar a formular-se, facto que faz do surrealismo a mais importante encruzilhada intelectual do nosso tempo, onde não se pode parar mas onde não se pode deixar de passar. Ele representa hoje, para lá de todas as fraquezas e limitações, a «grande aventura», o mais constante e antigo anelo do homem: o seu renascimento, a sua perpétua metamorfose.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 28/7/1965, foi publicado na revista «Cronos» - «Cadernos de Arte e Literatura» - Nº4, em data inlocalizada