segunda-feira, 15 de agosto de 2011

TERRY CLIFFORD E A DIÁSPORA TIBETANA


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21-10-1990

Actualidade da tradição: A DIÁSPORA TIBETANA (**)

Se é verdade que o maior progresso da psicofarmacologia moderna, o primeiro grande tranquilizante, veio da pesquisa experimental, em laboratórios do Ocidente, sobre a «Rawolfia Serpentina», planta usada há séculos na Índia no tratamento da loucura, este indício pode sugerir o tipo de relações actualmente existente entre a medicina alopática moderna e os sistemas ou artes de curar mais antigos, como o chinês(acupunctura), o hindu(ayurveda), o helénico (hipocrático), para citar apenas as três grandes correntes de fundo que confluem na medicina sagrada tibetana.
Livros como o de Terry Clifford, « A Cura do Diamante»(*), são um manancial precioso de informação ignorada e por vezes intencionalmente esquecida. Os laboratórios continuam atentos.
Aliás, não sei se ingenuamente, a autora convida os industriais do Ocidente ao estudo aturado dos tantras médicos, para o que têm apenas que aprender a língua tibetana: « Os tibetanos - escreve ela - desenvolveram vasto campo de psicofarmacologia e têm um número enorme de medicamentos psiquiátricos, nenhum dos quais já foi identificado ou experimentado cientificamente no Ocidente.» Ora aí é que a Drª Terry naturalmente se engana: os serviços de psicofarmacologia não costumam tornar públicas as suas investigações laboratoriais e actividades farmacêuticas, até por causa da concorrência que é, tudo indica, feroz. A secreta e laboriosa pesquisa a que os laboratórios ocidentais se dedicam de toda a ciência e arte milenária de curar, é aspecto de que a autora - não sei se ingenuamente - só levanta uma pontinha do véu, como se percebe pela transcrição antecedente. Não são os aspectos parcelares, acidentais e tecnológicos ( o chamado receituário) destas artes o que a ciência ocidental rejeita mas sim a essência da arte, o espírito que a inspira, aquilo que não pode copiar nem estropiar à vontade. Aquilo que não percebe.

OS APROVEITADORES
Apesar de ter esmagado a maior parte da cultura tibetana, a China comunista continua a importar dos Himalaias grande quantidade de medicamentos fitoterápicos, feitos nas altas montanhas do Tibete conforme manda a tradição. Ainda que rejeite o melhor - o sistema global onde esses «específicos» se inserem, onde fazem sentido e onde resultam a cem por cento - a China comunista faz como o Ocidente comercial e capitalista: serve-se da parte (da casca) e deita fora a polpa (o fruto). Quer dizer: instrumentaliza. Serve-se. Usa.
Subdividindo - «para finalidade de estudo» diz ela - a medicina tibetana em «dármica ou religiosa, tântrica ou ióguica e somática ou comum», a Drª Terry não deixa de assinalar, porém, o artifício dessa divisão, já que «as três categorias se integram na prática real.» De facto e por mais que se subdivida, por razões metodológicas, a arte de curar tibetana permanece indivisível, íntegra, holística, conforme vem mostrar a Lisboa, em visita de surpresa, o médico-chefe da equipa do Dalai Lama, Dr. Tendzin Chodrak, ontem chegado ao aeroporto da Portela. E permanece íntegra, una, por uma razão física muito simples: a filosofia que a ilumina e de onde parte, começa por não separar nada, considerando, num a priori óbvio, que tudo é energia, para lá das dicotomias ocidentais entre espírito e matéria. As dicotomias da filosofia ocidental nunca existiram nos sistemas iniciáticos como o da medicina tibetana. Por isso não há necessidade de reunificar o que nunca foi desunificado.E por isso os maiores êxitos terapêuticos dos médicos tibetanos ocorrem no domínio chamado «psiquiátrico».
Esta concepção unitária do universo e da vida é que é o mais difícil ou mesmo impossível de compreender pelos analistas do Ocidente, de formação incuravelmente dualista. Doença esta que nenhuma arte de curar - tibetana, chinesa, hindu ou helénica - conseguirá curar.

Quando os chineses, usando o dualismo ocidental, ocuparam brutal e violentamente o Tibete, em 1959, cem mil tibetanos que conseguiram escapar à chacina foram para o exílio, figurando entre eles grandes lamas mas poucos médicos. Apesar de poucos, eles fizeram a diáspora e o mundo foi tendo conhecimento de que a ciência não chega aos calcanhares da sabedoria. Em matéria de corpo humano, então, não chega sequer ao tornozelo. «Havia afinal mais mundos» como diz o poeta. Que estão agora aí nas nossa mãos.

CURAR É LIBERTAR(DESCOLONIZAR)
A maior acusação que se pode fazer às medicinas iniciáticas como a tibetana é que elas remetem para o doente a principal responsabilidade de cura, isentando de culpas o clínico, que se limita ao papel de professor de saúde. Quem quiser que aprenda a lição, quem não quiser que vá prá faca.
Como diz a drª Terry Clifford, neste estudo que foi sua tese de doutoramento em Psicologia e Religião, «a prática da medicina do Dharma de Buda depende dos nossos próprios esforços do reconhecimento da impermanência, do controle da mente e da diminuição do anseio». Sabendo que responsabilidade é sinónimo de liberdade, esta responsabilização do próprio paciente significa a sua libertação, o que é exactamente o contrário do que faz a medicina colonial em vigor, que põe em total toxicodependência do sistema o doente imprecavido. Deve-se a este facto, unicamente a este facto - liberdade é responsabilidade - o grande êxito da medicina moderna ocidental e o olho vesgo que ela deita às medicinas eternas. Trocando por miúdos, quer dizer portanto que na «alienação» moderna (tal como o sentido psiquiátrico da palavra «alienado» ainda prova...) reside a raiz da questão terapêutica, que aplicada ao colectivo se chama política. Na qual questão, « libertar» ou «descolonizar» ainda não deixou de ser a palavra de ordem.

A reserva etnológica

A provar a sua diabólica perenidade, a medicina tibetana resiste inclusive às incursões «etnológicas» da Drª Terry Clifford que, colocada na perspectiva da sua especialidade universitária - «etnopsiquiatria - , deforma com essa postura a actuante actualidade deste sistema terapêutico. Segundo a autora, «o vasto campo da literatura médica tradicional, sua enorme farmacopeia, seus métodos de diagnóstico e tratamento, seus princípios éticos e seu suporte filosófico e psicológico» contribuem para «a história da medicina, da antropologia médica e da etnopsiquiatria». Esta catalogação etnológica, não só permite a uns quantos fazerem com a ajuda dos «media» o congresso de Vilar de Perdizes - destinado a identificar medicinas heterodoxas com bruxaria - como tranquiliza muito boa gente do sistema estabelecido. Mas não diz a verdade toda, aquilo que a drª Terry designa por «praticabilidade da medicina tibetana». De facto, é a actualidade prática e actuante das tecnologias holísticas de vida e de saúde que interessa acima de tudo sublinhar. Irrita o negócio mas é verdade. Face à impraticabilidade crescente das tecnologias alienantes e desapropriadas da alopatia moderna, o que está em causa no renascimento de sistemas como o taoísmo, a acupunctura, o ayurveda, a fitoterapia tibetana - tudo aquilo a que a própria OMS apela e com urgência na campanha de saúde para todos no ano 2000 - é a sua profunda adequação ao ser humano, a sua indesmentível eficácia e a sua plena funcionalidade, já, no mundo actual. Não são peças de museu etnológico, como boa e rica gente desejaria, mas técnicas (algumas de rigor geométrico) que estão para as curvas e para as curvas difíceis.
Se nos é lícito lembrá-lo, o adjectivo «holístico» colocado junto destas técnicas tradicionais, vem da Idade Média europeia e da tradição astrológica mais genuína. Quando se constata que o que está em baixo é igual ao que está em cima, quando se retoma a unidade homem/natureza, micro/macrocosmo, a concepção holística do homem e portanto da medicina, renasce. Com a ajuda da grande medicina tibetana que está aí à porta, vai crescer robusta, saudável e sem complexos.
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(*) «A Arte de Curar no Budismo Tibetano - A Cura do Diamante» , Drª Terry Clifford, Editora Pensamento, São Paulo (**) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 23 de Outubro de 1990 , secção «Livros na Mão»