quinta-feira, 26 de julho de 2012

ANTONIN ARTAUD EM RODEZ

1-6 quarta-feira, 8 de Janeiro de 2003-13568 bytes marº-24

O PAVILHÃO DOS INTERNADOS

DIÁRIO DE ANTONIN ARTAUD NO HOSPÍCIO DE RODEZ (*)

«Ceux qui vivent, vivent des morts»

(*) Este texto de Afonso Cautela foi parcialmente publicado ( Fevereiro de 1964 ) in «Cadernos Alfa - Poesia 1» – Editor: Álvaro Luz e Silva – Propriedade: Amicitia, Grupo Cultural de Portalegre.
I
Não é um medo em linha recta
um medo que por enquanto me deixa inseguro
é a porta estreita
a porta cada vez mais estreita do futuro
II
Está alguém à espera sem que eu saiba
se é para fins pacíficos ou de agressão
É um medo-atmosfera
um medo que se respira
e não deixa respirar
É um mau cheiro de que não posso fugir
e foge atrás de mim
III
Estou doente ou é do tempo?
Sei que podem erguer um mundo saudável
à vossa imagem e semelhança
para me encarcerar
Sei que não tenho lugar
mas talvez me consigam uma cama de hospital
E que pena não haver também um bolo de veneno
para os poetas
e outro bolo de veneno para os críticos
No fundo os poetas são gente indefesa
deixam-se encarcerar sem um latido
mas se aprenderem a morrer
talvez a poesia se resigne um dia
a nascer
IV
Aos meus diários de hospital
nunca chamei poemas
Diálogos
diálogos contigo
diálogos com o medo e a luz
diálogos com a sede
diálogos à boca fechado
É fácil encarcerar alguém na palavra «autismo»
V
Na cama contígua eles continuam autopsiando o Artaud
com um termómetro Fahreneit tiram a febre ao Carlo e ao Raul
já diagnosticaram o suicídio de Fialho
insistem em injectar morfina no Fernando Pessoa
(que pena a merda do Jarry não chegar para tanta gente)
Dizem que o Bousquet sofre de amnésias recentes
mas nem admira depois do que passou na frente
e continuam a deter - apenas por medida preventiva - o Sade na bastilha da Precaução (com ampolas diárias de surto diarreico)
Não há muitos dias sangraram o Exupéry
e aprovaram-no para piloto da aviação francesa
que é como quem diz da força aérea
Adiam indefinidamente o internamento de Maiakovski
por motivos de política hospitalar
mas toda a gente sabe que o Gulag já fechou para obras e é tarde
fazendo abluções edificantes no Lawrence
deitando pensos de algodão no Henry Miller
e claro fazendo as necessárias próteses dentárias no Cesariny tudo parece continuar em boa ordem no meu pavilhão de internados
Continuam buscando a doença imaginária
continuam inventando teorias que expliquem
esta súbita intervenção de humores e de plasma
no sangue de Lautréamont
nas células cerebrais de Dostoiewski
ou descobrindo na pele de Ésquilo e Sófocles tumores malignos naturalmente devidos ao grande buraco do Ozono
Continuam farejando a loucura de Blake que prudentemente agarram com pinças à mesa das experiências
enquanto vão aspirando sem querer o mau cheiro a Nada
que deita o Kafka e o Samuel Beckett
Os suores frios de Proust impacientam o distinto corpo clínico
e bem assim os desvios de Baudelaire
as ladroagens profissionais de Jean Genet sempre em estado de choque eléctrico com os cabrões do Fisco e da polícia
A intradérmica solidão de Nietzsche ainda os intriga mais
quando se recolhem na grande câmara escura da radioscopia para lhe fotografarem os testículos
Encaram o Gide com um entendido sorriso profissional
e tapam a cara ao Óscar Wilde com o grande lençol de um grandessíssimo pudor
À Florbela - no ventre de uma Azinheira louca - vão oferecer-lhe flores e desejar-lhe as melhoras
Do Plutarco dizem que sofria de bisbilhotice crónica e de mal dos ossos incurável na época tanto como hoje
Vindo mais tarde a demonstrar-se o carácter endémico da Nevrose galopante
estendida por engano a todos os cronistas profissionais que escalaram o Evereste mesmo nas minhas barbas
Esqueceram-se do Walt na cozinha, felizmente para o Whitman que até nem tinha nada com isso e que tinha ido à retrete quando o enfermeiro veio para o levar na camisa de forças com raios de luar
Greco e Miguel Ângelo passaram à secção de óptica pois ninguém normal vê o Mundo como eles viram - cheio de miasmas poluentes ainda por cima
Van Gogh foi declarado irremediavelmente incurável e Rimbaud - soube-se mais tarde pelo noticiário das Nove - não poderia continuar na clínica comum por ofensas ao pudor do poder
Crevel - um senhor bem vestido - foi submetido a urgente intervenção cirúrgica por causa da mania do suicídio com que ficou mesmo depois de se suicidar
E Virgílio - que sempre consideraram um caso manso de loucura - andou a monte uma data de anos até que o fisgaram na fímbria de uma asa negra de Corvo
enquanto o Verlaine era declarado urbi et orbi, aquém e além mar, hoje, amanhã e sempre, o autor do Único Crime Perfeito
VI
Oh meus irmãos de hospital
alienados
párias
suicidas
últimos descendentes das estrelas diurnas
corruptores de bispos
autores da Contra Reforma
incendiários da Renascença
Incas poderosos
Generosos discípulos de Hermes
Oh! revoltados e heróis
lúcidos encarcerados da Vida
andróginos apaixonados
destilando a Lua num travesseiro Sujo
Oh! Bíblicos profetas da Origem
Brama e Beethoven
Buda e Brecht
Oh! Condenados à Esperança
Chaplin e Camus
Confúcio e Cântico dos Cânticos (autor anónimo)
Cristo e Curie
Oh! Danados de um Fausto imortal
Darwin
Einstein
S. Francisco de Assis colhendo fioretti
Gagliostro e S. Paulo
Joana d'Arc e D.Juan
VII
Não sei se convidei todos os meus mortos
para lembrar este Dia da ressurreição
Não sei se me esqueci de algum
no forro do casaco
talvez ele durma
talvez se tenha atrasado o comboio
porque mora mais longe
VIII
A enfermeira veio com os jornais da manhã
e vi que ainda pertenço à galeria dos vivos
porque alguém falava no meu nome
ou pelo menos do nome que me deram no civil
por onde andei antes desta guerra
Legalmente e com todas as autorizações - do Papa - estou agora imobilizado
neste cama lisa de hospital
destinado a doentes perigosos
ou pelo menos incuráveis nos próximos séculos
pela medicina eternamente de merda
Sou contagioso e eles sabem isso porque me inocularam com um vírus contagioso escolhido por catálogo
todos concordam que me devo curar depressa pois um doente assim, mesmo leve como uma pena, fica pesado ao Orçamento do Estado que se escreve sempre com maiúscula
mas pelo seguro vão-se afastando da cama onde me têm retido para não dizerem preso
«Até Breve, Antonin, coragem e coração ao alto»: dizem-me vozes que suponho virem do colchão onde só grassam percevejos graças a Deus
Por isso o meu coração subiu tanto estes dias
por isso sinto no peito um balão vermelho a inchar
Não sei se os amigos vão voltar
para me propor novos programas de acção
Ontem era um corpo e hoje sou mais do que isso: sou um pesadelo com séculos de hereditariedade
Por isso nada me deterá nem os cinco sentidos que se encontram de sentinela à fortaleza
onde os incautos marinheiros perguntam se podem entrar
ou se haverá para lá disso mais do que isso
Nada me deterá nem os cinco sentidos
à entrada do desconhecido
Quantos sentidos tem agora este corpo?

Sou doente e para a sociedade civil é até uma coisa compreensível, mesmo razoável desde que não se abuse
As estações anunciam-se irregulares
e apesar das poeiras micro-activas em profusão nos vidros da janela
ninguém ousa dizer o nome da doença
que é a doença de que ninguém ousa dizer o Nome
IX
Além de humanista sofri de outras bexigas em pequeno
vacinaram-me cedo, eram quatro horas da manhã, e hoje dizem-me que há
um rio secreto correndo ao fundo da história
um rio de que só se adivinha à superfície o Rumor metálico e musical
um rio de que se pressente apenas o movimento ora convulso e doce ora sereno de angústia
um rio suspeito
um rio sagrado
um rio que raros iniciados têm a coragem de localizar
Um rio com mais força do que mil exércitos
X
Escrever é ir ao encontro desse rio
explorar druídicas cavernas e pesquisar
errar de estalagtites para estalagmites
de minifúndios para latifúndios
de afélio para periélio
do mágico para o trágico (Cassiano Ricardo)
Escrever é riscar e arriscar
em todos os sentidos sem sentido
e ganhar outros tantos sentidos além dos cinco
XI
Na encruzilhada não vejo Mallarmé
não descubro Apollinaire
mas Montessori mergulha as mãos no leite virgem da Aurora
mas Papini está lendo e cegando (l'uomo finito é finito)
mas Nero beija na boca o jovem favorito
enquanto Nietszche deifica a paixão e põe fim ao Nada
Não vejo a Arte
mas Orfeu encosta-se ao meu braço esquerdo - do lado do coração - sangrando do seu braço direito
Orígenes está escrevendo 2000 obras para a Igreja excomungar e Raimundo Lúlio cheio de ciúmes porque só escreveu 350
Mal descortino Pascal atrás daquelo biombo
mas S. Paulo surge maior do que o Clarão de Damasco
Nunca ouvi falar de um tal Aquilino Ribeiro
mas enxugo o suor na testa de Pasteur a quem a medicina capitalista ergueu o maior e mais sentido monumento de homenagem
Limpo com um lenço limpo as lágrimas de Pestalozzi por todos os relapsos que não quiseram educar a sua alma neste mundo sem deus
Sei que o Rousseau é uma menina sensível
e - dizem outros - um maroto de génio que chegou e sobrou para a época pequenina da revolução
Eu, por mim, vou ser expulso com Poe da Academia Militar de West Point e beber durante a grande farra do Carnaval no Rio
Quando Rodin correr o estor do seu estúdio
ficarei em silêncio olhando o rumor das formas
Não critico o pobre Rabelais
bem lhe basta a Inquisição dia sim dia não a bater-lhe na aldraba da porta
Espero que o Romain Rolland - perfeito gentleman - hoje não falte
ele nunca falta e aparece quase sempre à mesma hora
Uns dias por outros o Tagore acompanha-o
e o prazer é todo meu
Torga aparece nas fráguas a tremer com frio nos arredores onde vem caçar espécies vivas de aluguer
E ouço Voltaire dar grandes passadas no quarto
ele mora aqui por cima no segundo andar
O Amadeo, esse, quando é que o verei voltar de Paris naquele Sud-Express de revista antiga
quando poderá ele fugir à tarefa pouco rentável
de ensinar ao mundo a nova linguagem da Luz?
Quando posso assisto à Missa dos Pobres
gosto de os ver aos pobres no seu fatinho domingueiro
o Padre Américo costuma ser pontual e fala-me da caleche onde estranhamente se faz conduzir por criados de Libré
ele só se atrasa quando um dos filhos adoece de repente
(e fica ele mais doente que o doente)
XII
Oh! Meus companheiros de caserna
meus camaradas de Fome
Lá fóra a neve é um baloiço onde as crianças oscilam às risadas
e onde talvez os que não são crianças
deitam balanço à vida
Oh! Meus camaradas de Inocência Clara
de translúcida Ignorância da matéria dada
o que sei eu e o que sabeis vós do Amor
o que sei eu e o que sabeis vós da Morte
o que sei eu e o que sabeis vós do Tempo?
Oh! Meus criminosos queridos
porque matamos nós as pequenas vidas sem importância
nós que somos na Eternidade vidas sem importância?
Porque não quisemos ser espartanos em Esparta?

Nossa camaraderie é uma coluna dórica frustrada
Nossa fraternidade é fratricida

Tavira, 24/3/1961