quinta-feira, 19 de julho de 2012

MÁRIO CESARINY SEMPRE-VI

1-4 - 58-10-05-ls> terça-feira, 20 de Maio de 2003 – cesariny-6-s&s>

COLECÇÃO «A ANTOLOGIA EM 1958»:

 ALGUNS MITOS MAIORES E ALGUNS MITOS MENORES PROPOSTOS À CIRCULAÇÃO PELO AUTOR , MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS, LISBOA, 1958
 EXERCÍCIO SOBRE O SONHO E A VIGÍLIA DE ALFRED JARRY, SEGUIDO DE O SENHOR CÁGADO E O MENINO, DE ANTÓNIO MARIA LISBOA, LISBOA, 1958

(*) Este texto de Afonso Cautela terá ficado inédito ou foi publicado algures, a saber onde. Tem, pelo menos, uma data de origem: 5-Outubro-1958

Pertence a António Maria Lisboa o melhor manifesto surrealista sobre surrealismo, havido em Portugal . Ali se compendia o verdadeiro estatuto do bom surrealista. E como regra de vida , não conheço outra mais tirânica onde se fale tanto de liberdade, repetida e em caixa alta, bem como o amor, que ali é sempre múltiplo (quando não é único) e de várias pernas, creio que altas também.
Na exposição, intervalam-se fugas para o imaginário, o que não pode nem deve faltar no ritual do bom sacerdote surrealista, em plena missa (Erro Próprio é uma conferência-manifesto).
Como os mitos crescem à proporção que decresce o invólucro físico que os sustém, a morte de António Maria Lisboa abriu o ciclo mítico. E assim, o André Breton português, em vida, se transmuda no Rimbaud português, depois de morto.
Exumam-se os inéditos e os renitentes prestam-lhe culto póstumo. De cócoras, admiramos o mito desincarnado. Mas é que admiramos mesmo. À parte os «à-partes» de magia negra, em Erro Próprio deparamos com a austeridade que só os iluminados possuem. A nossa costela irracionalista não deixa de se sentir apoiada quando lê um bom surrealista, como é o caso sem discussão de António Maria Lisboa.
Revela-se, é certo, como em todos os sacerdócios, uma aceitação incrítica da fé regulamentar e, tratando-se de uma religião (eles não querem que lhe chamem religião) não teríamos nada que falar em CRÍTICA, se, tal como aqui a grafamos, em caixa alta, António Maria Lisboa a não tivesse grafado também (e julgamos a versão presente conforme com a edição original):
«Criticar , eis a nossa função positiva. A crítica, para nós, é a acção agressiva dum indivíduo que se opõe e contrapõe a outro. Quaisquer espécies de considerações compreensivas e elogiativas não podem ser consideradas como tal. Criticar pressupõe não o gostar ou desgostar , (...) mas não aceitar e impor (...).»
Valha-nos Santo André (Breton) nesta aflitiva conjuntura, pois já que «quaisquer espécies de considerações compreensivas e elogiativas não podem ser consideradas como tal», como «crítica» - António Maria Lisboa nos impõe («não aceitar e impor» diz ele) um modo crítico único de falar dele (e deles) , modo, portanto, que nem crítico é. Nem sequer nos é permitida a satisfação de urdir «considerações compreensivas» sobre si (e os outros) , nós que tanto gostamos de compreender e admirar, quando o caso é para tanto. Tudo isto, claro, em nome da tal liberdade que ali, no manifesto, se grafa também de coturnos altos.
Há, como se vê, nas falas surrealistas uma constante sobreposição de contrários, um ser e não ser ao mesmo tempo, que foi a grande faca de dois gumes com que eles se entretiveram a cortar manteiga no Verão... Não vamos prestar-nos ao jogo, à esgrima. Queremos apenas registar, citando o texto mais autorizado da nossa literatura surrealista, aquele passo que pode originar mais equívocos dos que já são constitucionalmente próprios de um tal género de dialéctica.
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De uma outra conformação é O Senhor Cágado e o Menino, sem intuitos de catequese e apenas auto-biográficos, o que fica bem nestas cavalarias, a mais altas se não devendo abalançar os cavaleiros. Ali se vê o arquétipo de auto-biografia surrealista e que, como tal, nos não parece de seguir, para evitar o pânico e o acrescente de mais alguns cágados de má catadura ao jardim zoológico nacional, tão rico já de espécies exóticas. Neste Cágado, mostra A.M.L., dentro das contradições vertebrais inerentes (inerente ao Cágado, entenda-se) uma rigorosa coerência de métodos , de pensamento e de conduta.
Deixou companheiros, mas não creio que venha a deixar discípulos . Nem mesmo os que lhe disputam os inéditos à dentada. É o que nos faz desconfiar a reprodução quase simultânea do texto sobre Jarry, no livro em epígrafe e de que vimos falando e nas Folhas de Poesia Nº 3.
Desejaríamos só e por amor a estas rigorosas coisas surrealistas que um outro (ou ambos) dos editores nos informasse de qual é a versão legítima, já que se verificam variantes notáveis de uma para outra das impressões do mesmo (cremos que o mesmo) texto. Na sucessão de números naturais ali aparecida , por exemplo, qual será a verdadeira e a apócrifa: a que repete o 6 ou a que o dá singelo? Precisamos de assentar nestas altas matemáticas, para rigoroso desanuviamento da crítica e para respeito da memória dos mortos. Amen.
Para desespero dos surrealistas ortodoxos, o pensamento parece encaminhar-se (a menos que a destruição nuclear o desencaminhe por uma vez, para sempre, ainda bem e felizmente) até à terceira força, síntese das antinomias que acenderam guerra entre 1900 e 1950 e da qual guerra a batalha entre racionalistas e irracionalistas não foi a menos brava.
Além disto, os poetas, cansados do imaginário e dos amorosos amando na última estrela da Galáxia, e porque incarnam a liberdade , não consentem no «afastamento imediato da chamada vida prática», não querem renunciar a viver todas as experiências, no mundo e fora dele, aqui morrer, em vida, e, depois, de morte certa e macaca. Dispensam-se de obedecer a esta que foi uma das muito rígidas disciplinas impostas pelo papado surrealista, como nova «internacional».
É de Henri Lefèbvre a paráfrase (cito de memória) : «Poetas do Mundo, uni-vos», num ensaio que é simultaneamente a apologia da «vida quotidiana» e o processo quase mortal a que submeteu o surrealismo.
Lê-se no Erro Próprio, manifesto de António Maria Lisboa:
« (...) pedia aos que assistem a esta conferência a máxima preparação : quer pelo recolhimento, quer por leituras lentas (...) quer, ainda, pelo afastamento imediato da chamada vida prática; »
Nessa e em muitas outras exigências, o surrealismo mostrou pouco respeito por tudo quanto se dizia respeitar: o amor que não existe fora da vida quotidiana, de que é mesmo o motor e a razão; a liberdade, que perde imanência e, portanto, conteúdo, fora do mundo quotidiano dos homens quotidianos, onde diariamente se deve perder e diariamente se tem de reconquistar; a crítica , que não admite outro plano que não seja o do humano concreto e perde todo o sentido fora da esfera das relações sociais; a individualidade, coarctada no surrealismo por um formulário de normas apertadas, tão apertadas que ser adepto do Grupo Surrealista, em certa altura, foi equivalente de excomungação prévia ou eminente.
Nos que mantiveram fidelidade ao templo, a obra traz sempre o aspecto de membro destacado de um corpo central, o corpo místico do surrealismo ortodoxo, apostólico e bretoniano... E na igreja se reúnem todos os surrealistas do mundo. Mário Cesariny devia, por isso, e graças a uma individualidade que o distinguia à légua, como herege no seio da pia congregação, ter sido excomungado da igreja surrealista nacional. E só não foi por não se poder excomungar a si próprio...
Eis como parece haver alguma utilidade de encarar estes mitos maiores e menores propostos à circulação pelo autor. No referido manifesto de A.M.L. , já eles se anunciavam:
«Impossibilidades editoriais trouxeram até hoje (Dezembro de 1949) por publicar «Algumas Entidades Míticas Propostas à Circulação » de que foi autor Mário Cesariny de Vasconcelos e (que) consiste num jogo de Cabala Fonética com o qual se pretende uma cada vez maior assimilação do irracional.»
Quase dez anos corridos, as impossibilidades transformaram-se em possibilidades editoriais e o livro vem a público . Seguindo à risca a palavra de A.M.L. , transcreve-se ainda:
«Muito para além da chamada Obra de Arte , e tanto para além, a Cabala Fonética abriu, entre nós, o caminho que se pretende – pois nos concretiza e dispersa, nos arruina e constroi (...).
Nos «arruina» , diz. Mas logo acrescenta , no contraponto tão característico da Religião da Ambiguidade: «e constrói». Vá lá o diabo saber se afinal arruina ou se afinal constrói.
Vistos a frio e sem hóstia, estes mitos parecem-nos um importante (mas imprudente , como deixar as cuecas a corar ao sol, na varanda) parcela da Obra (eles não querem que se chame Obra) de Cesariny, já que desmontam a máquina surrealista e o seu processo estilístico.
É, digamos, a gramática surrealista, o que põe à mostra a morfologia e a sintaxe do animal, e nem só a fonética como queria A.M.L.. O ponto da crítica em que nos coloca é, portanto, o filológico, e para filologias preferimos as de Aristóteles, cujo enterro já não precisa de fazer-se, porque está feito há muito.
Permita-se-me citar um epigrama feliz: o dos assassinos, decomposição morfológica de assa-ssinos e que é francamente uma coisa com graça. Todo o livro, aliás, se assinala como um sintoma de saúde, um fortíssimo abanão na nossa arqueologia literária, uma refrescante cerveja para as horas escaldantes do pântano. Com experiências destas, nada continua (nada se «constrói») mas tudo pode começar (tudo se «arruina») . Que mais não seja o despertar do dragão, neste país ocidental do Ocidente e que é saber rir, a tempo, e sobre os devidos e supra-ditos objectos de sala.
Faro (ou Ferreira,?), 5 de Outubro (República) de 1958

P.S.: Tal como foi escrito no verbo iluminado de António Maria Lisboa : «Quaisquer espécies de considerações elogiativas não podem ser consideradas como crítica .» Como crítico, esforçámo-nos por obedecer ao mandato e não damos o direito aos autores de se melindrarem porque os não elogiámos mais. Tudo o resto e adstritas confusões com personagens do mundo real , é pura coincidência.
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(*) Este texto de Afonso Cautela terá ficado inédito ou foi publicado algures, a saber onde. Tem, pelo menos, uma data de origem: 5-Outubro-1958