quinta-feira, 19 de julho de 2012

MÁRIO CESARINY SEMPRE-III


cesariny-3> surrealismo & surrealistas - notas de leitura - publicados ac de 1963

CRÓNICA DO MAU TEMPO: SURREALISMO-ABJECCIONISMO - UMA ANTOLOGIA DE INDESEJÁVEIS (*)

(*)Assinado por Henrique P. Ventura, pseudónimo de Afonso Cautela, este texto foi publicado no suplemento literário «Letras e Artes» do semanário «Notícias da Amadora», provavelmente no ano de 1963.
1963 - Entre autores e textos impublicáveis ou malditos, entre inéditos e edições do autor, Cesariny entendeu reunir, num feixe só, a documentação gráfica e literária suficiente, «de acordo com o propósito inicial».
Primeiro passo e primeiro volume de uma possível antologia de excluídos ou antologia do Obsceno, ninguém como Mário Cesariny de Vasconcelos para empreender a desintoxicação do ambiente. A sua obra, pelo oxigénio próprio, é das poucas, das raras que podem desviciar a viciada atmosfera. E não uso metáfora. O fenómeno é físico. Além de mágico, é físico.
Surrealismo-Abjeccionismo, na tradição de Mário Cesariny e este na tradição a que Ernesto Sampaio chama «a única real tradição viva» (à página 68 da obra), usa de um vigor desusado, de uma força compulsória-explosiva notável. Primeiro o vácuo, depois a corrente de ar. E depois muitas constipações. Isto é, a acção físico-química da Poesia. Uma antologia de indesejáveis, esta, no indesejável tempo-i-mundo-nosso.
Os espíritos positivos não deixam de clamar, bem alto, para afogar o susto, que não acreditam em génios ignorados. Eu, que não sou espírito positivo, também não acredito. Mas do escrever ao publicar é que vai a diferença, o busílis, o abismo. O espinho cravado no sono das glórias constituídas. A posteridade prega cada parte!
De qualquer modo, a primeira vantagem vai ganha. Quem joga seguro, não perde tudo. Pode perder o melhor, mas não perde tudo. O inseguro, porém, tem encantos, tem até mais encanto. Ali, no silêncio, pode não estar nada mas (para o editor) pode estar a galinha dos ovos de oiro. É vê-los então (à dentada, à unhada, à facada) para saber quem leva os ovos sem matar a galinha, quem leva a galinha sem partir os ovos. Disto não se aperceberam os leitores, e fingem que não os críticos.
Mostra a história da literatura (que para estes serviços domésticos tem seu préstimo) que os vivos de hoje são os mortos de ontem. Também é verdade e a história ensina que os editores de hoje vivem (bem) à custa dos escritores sem editor de ontem. Mas que isto e aquilo, servindo de lição, não sirva contudo de consolo (para os que se calaram, foram obrigados a calar-se, e fizeram eles muito bem), nem de pretexto (para fundar uma Sociedade Portuguesa de Escritores) nem para alguém supor que compra a glória de amanhã ao preço da vil pobreza e do anonimato solitário de hoje. As coisas como estão até estão muito bem e não se deve falar dos que se calaram.
«Ceux qui vivent, vivent des morts», (Antonin Artaud). Que seria de nós sem a reserva da literatura maldita que os tempos abendiçoaram? Que seria do consumo externo e interno - que seria da nossa balança de pagamentos - sem o Fernando Pessoa e família? Que seria da família? E do Veiga, do Pedro Veiga? Mas principalmente o que será dos cronistas de hoje e das glórias em uso se algum Fernando Pessoa se lembrar de estar chocando por aí outra ninhada?

(*)Assinado por Henrique P. Ventura, pseudónimo de Afonso Cautela, este texto foi publicado no suplemento literário «Letras e Artes» do semanário «Notícias da Amadora», provavelmente no ano de 1963.

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