1-6-planète-9-[surrealismo]
DO PENSAMENTO LÓGICO AO ANALÓGICO: O SURREALISMO
E A REABILITAÇÃO DO FANTÁSTICO(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República» (26/3/1966) e no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) em 7/4/1966
26/3/1966
Fenómeno relativamente moderno (apenas com vinte e tal séculos de existência), específico do pensamento racionalista, das regras lógicas, dos princípios imutáveis da razão, e mais tarde da civilização mecânica ou industrial, o homem cindido ou homem profano não compreende o «fantástico» e as obras que aparecem com o rótulo de «arte fantástica», constituem apenas, na sua maioria, produtos ou subprodutos de uma mentalidade atrofiada, sem inventiva nem poder imaginativo, devendo nós encarar a literatura que se designa de «fantástica», como um resíduo, hoje insignificante, de manifestações muito mais antigas, um dos poucos sinais que restam para avaliar, em certa época da história, as relações do homem com o universo, a sua participação e o seu enquadramento harmónico nas leis da Natureza.
Subjectivo e objectivo, visível e invisível, noite e dia, vigília e sonho, micro e macro-cosmos - eis algumas das antinomias que para os homens de certas épocas, lugares e mentalidades não existiam. Assim como não existia o «destino», nome que mais tarde seria dado apenas à ignorância das leis que regem o mundo dos homens em perfeita consonância com o mundo das coisas. Por desconhecerem essas leis, muitos classificam de loucuras tudo quanto foge à lógica comum, esquecendo-se de que rigorosas leis regem a imaginação criadora e rigorosos limites definem o fantástico.
Esquece o homem cindido, que sair da zona onde reinam soberanamente os princípios vectores da razão (identidade, causalidade e contradição), princípios directores do conhecimento científico, nem sempre significa cair no arbitrário puro, no delírio fantasista, no vácuo da irresponsabilidade. Não há dúvida que a linguagem dos símbolos se assemelha muito à linguagem dos loucos mas nem sempre um estado de alienação mental se resolve em obra de arte e nem sempre uma obra de arte «fantástica» resulta de um estado demencial. O único ponto de contacto da arte fantástica com a arte dos loucos, dos primitivos e das crianças, é afinal um ponto negativo: a sua arte, tal como a arte fantástica ou pensamento analógico, não conhece e não obedece à lógica comum dos adultos civilizados considerados normais e mentalmente sãos.
Após muitos séculos de descrença e descrédito que, pretensamente cépticos, apenas acrescentaram a uma superstição outra superstição (à superstição e dogmas da fé, a superstição e dogmas da razão), o fantástico na arte e na literatura viu-se a pouco e pouco reabilitado. Lentamente, muito lentamente, até os mais sisudos e de bom senso (sempre os últimos a ver as sensatas evidências) resolveram levar a sério o «fantástico». Talvez porque os surrealistas o andem a proclamar há quarenta e dois anos. Sabe-se hoje que ao homem nada é impossível e acreditar no fantástico não significa já acreditar em petas e anedotas de bruxa, mas acreditar n' «o homem, esse infinito», de que falam pessoas tão respeitáveis como o senhor Teilhard de Chardin.
Concluíram eles que a realidade hoje é que é fantástica. Comparadas ao que o homem já conseguiu e ainda pode conseguir, na exploração do mundo visível, nada significam já as mais ousadas ficções literárias. Júlio Verne viu-se ultrapassado em menos de um século pela realidade e as fantasias ou antecipações por ele formuladas parecem-nos hoje, de tão ingénuas, quase ridículas. Acreditar no fantástico é, assim, para muito boa gente, acreditar no progresso, na infinita capacidade de progresso do homem e de modo algum preconizar um retrocesso.
«Oh minha alma, não aspires à eternidade mas esgota o campo do possível!».
Este pensamento de Píndaro, que Camus escolheu para epígrafe do seu ensaio sobre O Mito de Sísifo, poderia constituir o lema de quantos perfilham a crença na evolução humana, os que se encontram na vanguarda de um «realismo fantástico» ou «humanismo evolucionário», os «contemporâneos do futuro», os que, parafraseando Novalis, afirmam: quanto mais fantástico mais real. Porque o conhecimento da realidade, conhecimento que caminha através de tantas dificuldadas e tateios, nunca será completo nem esgotará toda a complexidade do universo sem ir além daquilo que nos dá o conhecimento positivo, científico, experimental. Operação de vanguarda do conhecimento racional, a hipótese ou intuição comanda todas as outras operações da investigação científica. A imaginação estimula e fecunda a inteligência.
Na verdade, há quarenta anos que os surrealistas batalham para conseguir esse objectivo, para desabismar o homem do homem, para efectivar um verdadeiro humanismo dialéctico, para reunificar o homem cindido ou dividido, para descobrir o ponto central onde todas as antinomias se fundem. E há quarenta anos também que eles reclamam a autonomia do imaginário, do pensamento analógico relativamente ao pensamento lógico, do simbólico frente ao realista. E há quarenta anos que eles afirmam que surrealidade é apenas e unicamente a realidade total do homem total, a realidade do homem não alienado, do indivíduo religado ao universo e às forças cósmicas, ele próprio uma força da Natureza; não sendo, portanto, possível nem desejável que se exclua do visível o invisível, do possível o impossível, do real o seu lado mais real chamado fantástico.
O FANTÁSTICO SURREALISTA E A ANTECIPAÇÃO ABJECCIONISTA
Embora com alguns pontos de contacto, o “fantástico” e a “antecipação” têm, cada um à sua parte, características próprias que os separam e distinguem. Do “fantástico” à “antecipação” vai uma distância maior do que se supõe, distância que pode ficar definida pela que separa o “surrealismo” e o “realismo fantástico” do “abjeccionismo”.
Enquanto os dois primeiros movimentos participam de uma visão romântica e optimista da história (e do futuro) as antecipações abjeccionistas caracterizam-se fundamentalmente por uma consciência crítica aguda da história e uma denúncia realista dos factos. Sem expansões vitalistas, a antecipação “abjeccionista” desmonta o mecanismo da abjecção que caracteriza as sociedades presentes e próximas futuras.
Nas novelas e novelistas de “antecipação” há implícita uma “filosofia da História” que não tende, regra geral, para o cor-de-rosa. Ao apresentar as sociedades, não como se encontram (o estádio crítico ou de putrefacção em que se encontram) mas num estado paroxístico e definitivamente concentracionário, estas novelas e estes novelistas desempenham uma missão de alarme e aviso com certa função didáctica...
A verdadeira literatura de horror é hoje a de antecipação e não a que se filia nos vampiros domésticos da tradição gótica; esta literatura de antecipação, também rejeita, explicita ou implicitamente, as antecipações optimistas clássicas: Campanella, Platão, Júlio Verne e Tomás More; não se filia sequer em Edgar Poe (que deu origem a um outro tipo de raciocínio romanesco: a novela policiária) mas sim em Franz Kafka, o primeiro grande autor de antecipações abjeccionistas na literatura moderna.
As chamadas “fícções científicas”, que se caracterizam por uma inconsciência crítica da Abjecção e portanto por uma doce visão do futuro, entroncam directamente no Júlio Verne e na tradição feérica que ele renovou.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal diário «República» (26/3/1966) e no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto) em 7/4/1966
segunda-feira, 23 de julho de 2012
REALISMO & SURREALISMO
1-3-s&s-5> surrealismo e surrealistas - inéditos ac dos primeiros anos sessenta
O ACTO POÉTICO: NEM CLÁSSICO NEM ROMÂNTICO
A GRANDE AVENTURA ( ALGURES LONGE ) DA RAZÃO
2002-04-03 - Após digitalizar este texto, fiquei surpreendido com o nível atingido, em comparação com o que ontem disse, noutro file desta série, da minha produção sobre surrealismo nestes tristes anos que vão, pelo menos, de 1960 a 1963.
Curiosamente, este texto levanta os itens que ainda hoje (imagine-se !) eu subscreveria sem me envergonhar, nomeadamente: a crítica radical à ordem industrial e à ordem científica, os preconceitos racionalistas sobre a razão e a proposta de uma «grande aventura» por oposição à «grande empresa» que é a tal sociedade industrial.
Sem querer ver nisto - nesta feliz dicotomia - grandes antecipações das posteriores manias ecologistas do sr. Afonso Cautela, mas a verdade é que essas manias ecologistas derivaram do meu ódio à civilização, à indústria, à ciência como ditadura da razão, à falta de sabedoria da ciência, aos academismos e neo-academismos dos literatos, à dicotomia do real e do especulativo, a todas as dicotomias de que a cultura dominante está cheia.
Provavelmente o surrealismo é que não tinha nem tem nada a ver com estas minhas monomanias e aversões: mas a verdade também é que me convinha atribuir a um movimento prestigiado aquilo que eu convictamente detestava. E toda esta série sobre surrealismo & surrealistas deverá ser lida a essa luz: artificialmente e/ou com alguma razão, atribuí aos surrealistas o que era apenas de minha conta e risco. Fica aqui a minha confissão e espero que me desculpem por mais este abuso. A verdade é que eu nunca soube muito bem o que era o surrealismo e as obras que li com mais afinco foram ensaios sobre o dito e não o propriamente dito. - A.C.
1963 - Os surrealistas não foram prudentes. A mais elementar hipocrisia aconselha moderação na crítica que alguém pense fazer ao primado da ciência no mundo moderno e à necessidade de crer nela para crer em alguma coisa; a ciência constitui matéria de fé e foi uma perigosa imprudência a dos surrealistas, ao porem à prova mais essa fé, mais esse sistema de convicções.
Ao distinguir ciência e sabedoria, o surrealista afirma: os homens são hoje mais poderosos (porque têm a técnica), mais sabidos (porque têm a ciência), mais estultos (porque têm a filosofia) mas não são mais sábios porque não têm a sabedoria. Quando a lógica, a ciência, a filosofia e a técnica nasceram (mais ou menos do mesmo parto) havia já milhares de anos que a humanidade sabia coisas. Hoje, os homens não são mais sábios e a sua ignorância agrava-se à medida que se acumulam os preconceitos gerados pela ciência, pela lógica, pela filosofia e pela técnica.
Artaud, por exemplo, salientou a “porcaria” (“cochonnerie”) da cultura ocidental, acentuando a missão corruptora de escolas e escolásticas, pórticos e foruns (peripatéticos ou socráticos, alexandrinos ou medievais, enciclopedistas ou iluministas), enfim, os órgãos de comentário e transcrição, o sistema de ensino, os intermediários, os sacerdotes. As fontes, para Artaud, encontram-se assim sujeitas à inquinação dos eruditos e arqueólogos, essa interminável escala zoológica que se alimenta da verídica seiva, exoterizando o que era esotérico, tornando em metafísica para uso domiciliário aquilo que não era metafísica - a relação do homem com o universo.
Se esta crítica aos preconceitos do racionalismo acontece por parte de um movimento que se apresenta campeão da lucidez e da liberdade intelectual, não há que ver nisso um contra-senso e muito menos incompatibilidade entre tal atitude e o facto de os surrealistas tanto prezarem o irracional e sua função libertadora.
Suspenso de uma ambiguidade básica - ambiguidade que não me atrevo a classificar de dialéctica - a integração do irracional foi sempre feita por Breton em termos de argumentação racional e, desde os manifestos do surrealismo, os direitos do irracional são proclamados em textos que nada têm de irracionais. Ainda hoje não vemos que haja nisso um paradoxo ou incompatibilidade e de que se possa censurar aos surrealistas esse elogio do irracional, cujos direitos de cidade, explícita ou implicitamente todos os movimentos estéticos reconhecem.
Nem sempre tem sido explícita a posição polémica de alguns surrealistas a respeito dos limites, valor e significado da ordem apoiada sobre o primado da técnica, a sociedade que supõe uma “progressiva” e sistemática ultraburocratização, ou seja, uma rarefacção cada vez maior do indivíduo e dos seus direitos.
A crítica da alienação burocrática ficou feita por Kafka e não houve até hoje, mesmo entre os surrealistas, quem a superasse, ou sequer quem propusesse a solução técnica para os inúmeros problemas que a super-burocracia põe à acção dos políticos e à “inacção” dos poetas. Faltou ao surrealismo uma crítica desassombrada, explícita, directa ao mecanismo da super-organização totalitária e a sua revolta, nesse aspecto, é bastante doméstica, não indo além de protestos pueris ou simplesmente inócuos, quando não à apologia da tecnocracia. Se estava nos propósitos surrealistas pôr em causa o regime industrial vigente, recuou quase sempre perante a ofensiva organizada (coligada) da escola e das escolásticas.
Mas não admira que os surrealistas recuassem perante o mais forte e o mais bem armado. O facto de não ter vencido politicamente, nem as suas teses convencido grandes massas de opinião, não significa entretanto que tais teses sejam infundadas ou tenham perdido a virulência. Antes pelo contrário. Por isso valia a pena tratar em capítulo à parte as teses em parte surrealistas sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de coexistência pacífica entre a “grande aventura” e a sociedade industrial ou grande empresa.
A CIÊNCIA DA EXCEPÇÃO E OS QUE NUNCA DIZEM SIM
São os hereges ou malditos que fazem o progresso: eis uma redescoberta do surrealismo.
Para os surrealistas, a virtude reside na revolta e, sob qualquer ordem ou ortodoxia, é a heterodoxia ou heresia que tem valor; em todos os campos, mas também e principalmente na psicologia, ponto de encontro de todos os problemas levantados pela heresia surrealista.
Se alguma ciência nova eles propuseram, foi com certeza uma nova psicologia, ainda que a palavra “ciência” não se lhe ajuste com propriedade porque os surrealistas jamais preconizaram uma teoria. Propuseram um método, prefaciaram uma actividade do espírito, pretenderam talvez uma heurística ( se os historiadores e didactas consentissem no rejuvenescimento de uma palavra tão rica)uma propedêutica, uma psico-epistemologia (desde que o prefixo psico se não ligasse à ciência experimental da psique mas à sua “ciência da excepção”), ou patafísica (repetindo Alfred Jarry e convidando os filólogos a não se chatearem com a palavra).
Sobre a patafísica, um surrealista acrescentaria: Fez-se a ciência da lei, porque não há-de haver a ciência da excepção? Se há ciências para todas as classes de fenómenos, porque não há-de haver uma ciência desta particularíssima ordem de fenómenos que são os poéticos?
Se é possível uma patafísica - diz o surrealista - então para ela concorrem todos os “fora da lei”, os fora do texto, os fora da ordem: na poesia, na filosofia, na religião, e também na ciência, os que nunca estão de acordo, os que não dizem sim.
A REALIDADE QUE SE PROCURA
Tem-se considerado o surrealismo, além de coisas profundamente cómicas, esta coisa profundamente macabra: um neo-romantismo.
Alega-se então, segundo a velha querela «romântico versus clássico» , «sentimento versus razão” , que surrealismo, sendo neo-romantismo, é exaltação do sentimento em detrimento da sempre madre e comadre razão.
Claro que os termos do problema são postos assim e assim viciados, desde logo, conforme interessa a clássicos e a românticos, pois terceira coisa diferente dessas eles não sabem ser. Mas é claro, também, para quem pensa em termos não exclusivamente antinómicos (dialécticos?) que surrealismo, se nada tem de clássico, muito menos quer ter de romântico.
O dualismo sentimento-razão não tem sentido para o surrealista. O que ele diz, isso sim, é que o coração pode ter as suas razões (como o Pascal soletrava e queria) mas que a razão terá de ser uma “razão ardente”, paralisados ambos, ao que parece e consta, entre o assalto da estupidez inteligente e o assalto da inteligência estúpida, produtos ambos de uma sociedade de consumo, que apenas sabe ingerir sem digerir.
Sentir foi para o romântico sentir pelo vegetativo, pelo orgânico, pelo epidérmico, e, para o clássico, sentir sempre foi não submeter o que se dizia do coração às regras que se diziam racionais: ora se a luz criadora não vem do histerismo e do umbilicalismo, das melenas byronianas, de tristões e isoldas, de werthers, de joaninhas de olhos muito verdes, também não é da harmonia, do equilíbrio, da mesura, da regra - como ensina a sanfona clássica - que ele jorra. Só da desarmonia - afirma o surrealista e vá lá saber-se, disto tudo, quem tem menos razão - só da máxima desarmonia entre os extremos, da máxima tensão entre os contrários, jorra a luz da noite criadora. Sinal de silêncio e de alarme - diz o surrealista - eis o que foi, é e terá sempre que ser o acto poético, sem o qual acto não existe poesia. Nem romântico nem clássico, pois, mas surrealista.
Contra o que os seus detractores possam ter afiançado, o surrealismo não pretendeu nunca esgotar a realidade e ser um método totalitário para a desvendar. Propôs apenas algumas vias de acesso à realidade e algumas maneiras de a desatrofiar ou revalorizar, não se incompatibilizando, por isso, com outras anterior ou posteriormente propostas e descobertas.
O ACTO POÉTICO: NEM CLÁSSICO NEM ROMÂNTICO
A GRANDE AVENTURA ( ALGURES LONGE ) DA RAZÃO
2002-04-03 - Após digitalizar este texto, fiquei surpreendido com o nível atingido, em comparação com o que ontem disse, noutro file desta série
Curiosamente, este texto levanta os itens que ainda hoje (imagine-se !) eu subscreveria sem me envergonhar, nomeadamente: a crítica radical à ordem industrial e à ordem científica, os preconceitos racionalistas sobre a razão e a proposta de uma «grande aventura» por oposição à «grande empresa» que é a tal sociedade industrial.
Sem querer ver nisto - nesta feliz dicotomia - grandes antecipações das posteriores manias ecologistas do sr. Afonso Cautela, mas a verdade é que essas manias ecologistas derivaram do meu ódio à civilização, à indústria, à ciência como ditadura da razão, à falta de sabedoria da ciência, aos academismos e neo-academismos dos literatos, à dicotomia do real e do especulativo, a todas as dicotomias de que a cultura dominante está cheia.
Provavelmente o surrealismo é que não tinha nem tem nada a ver com estas minhas monomanias e aversões: mas a verdade também é que me convinha atribuir a um movimento prestigiado aquilo que eu convictamente detestava. E toda esta série sobre surrealismo & surrealistas deverá ser lida a essa luz: artificialmente e/ou com alguma razão, atribuí aos surrealistas o que era apenas de minha conta e risco. Fica aqui a minha confissão e espero que me desculpem por mais este abuso. A verdade é que eu nunca soube muito bem o que era o surrealismo e as obras que li com mais afinco foram ensaios sobre o dito e não o propriamente dito. - A.C.
1963 - Os surrealistas não foram prudentes. A mais elementar hipocrisia aconselha moderação na crítica que alguém pense fazer ao primado da ciência no mundo moderno e à necessidade de crer nela para crer em alguma coisa; a ciência constitui matéria de fé e foi uma perigosa imprudência a dos surrealistas, ao porem à prova mais essa fé, mais esse sistema de convicções.
Ao distinguir ciência e sabedoria, o surrealista afirma: os homens são hoje mais poderosos (porque têm a técnica), mais sabidos (porque têm a ciência), mais estultos (porque têm a filosofia) mas não são mais sábios porque não têm a sabedoria. Quando a lógica, a ciência, a filosofia e a técnica nasceram (mais ou menos do mesmo parto) havia já milhares de anos que a humanidade sabia coisas. Hoje, os homens não são mais sábios e a sua ignorância agrava-se à medida que se acumulam os preconceitos gerados pela ciência, pela lógica, pela filosofia e pela técnica.
Artaud, por exemplo, salientou a “porcaria” (“cochonnerie”) da cultura ocidental, acentuando a missão corruptora de escolas e escolásticas, pórticos e foruns (peripatéticos ou socráticos, alexandrinos ou medievais, enciclopedistas ou iluministas), enfim, os órgãos de comentário e transcrição, o sistema de ensino, os intermediários, os sacerdotes. As fontes, para Artaud, encontram-se assim sujeitas à inquinação dos eruditos e arqueólogos, essa interminável escala zoológica que se alimenta da verídica seiva, exoterizando o que era esotérico, tornando em metafísica para uso domiciliário aquilo que não era metafísica - a relação do homem com o universo.
Se esta crítica aos preconceitos do racionalismo acontece por parte de um movimento que se apresenta campeão da lucidez e da liberdade intelectual, não há que ver nisso um contra-senso e muito menos incompatibilidade entre tal atitude e o facto de os surrealistas tanto prezarem o irracional e sua função libertadora.
Suspenso de uma ambiguidade básica - ambiguidade que não me atrevo a classificar de dialéctica - a integração do irracional foi sempre feita por Breton em termos de argumentação racional e, desde os manifestos do surrealismo, os direitos do irracional são proclamados em textos que nada têm de irracionais. Ainda hoje não vemos que haja nisso um paradoxo ou incompatibilidade e de que se possa censurar aos surrealistas esse elogio do irracional, cujos direitos de cidade, explícita ou implicitamente todos os movimentos estéticos reconhecem.
Nem sempre tem sido explícita a posição polémica de alguns surrealistas a respeito dos limites, valor e significado da ordem apoiada sobre o primado da técnica, a sociedade que supõe uma “progressiva” e sistemática ultraburocratização, ou seja, uma rarefacção cada vez maior do indivíduo e dos seus direitos.
A crítica da alienação burocrática ficou feita por Kafka e não houve até hoje, mesmo entre os surrealistas, quem a superasse, ou sequer quem propusesse a solução técnica para os inúmeros problemas que a super-burocracia põe à acção dos políticos e à “inacção” dos poetas. Faltou ao surrealismo uma crítica desassombrada, explícita, directa ao mecanismo da super-organização totalitária e a sua revolta, nesse aspecto, é bastante doméstica, não indo além de protestos pueris ou simplesmente inócuos, quando não à apologia da tecnocracia. Se estava nos propósitos surrealistas pôr em causa o regime industrial vigente, recuou quase sempre perante a ofensiva organizada (coligada) da escola e das escolásticas.
Mas não admira que os surrealistas recuassem perante o mais forte e o mais bem armado. O facto de não ter vencido politicamente, nem as suas teses convencido grandes massas de opinião, não significa entretanto que tais teses sejam infundadas ou tenham perdido a virulência. Antes pelo contrário. Por isso valia a pena tratar em capítulo à parte as teses em parte surrealistas sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de coexistência pacífica entre a “grande aventura” e a sociedade industrial ou grande empresa.
A CIÊNCIA DA EXCEPÇÃO E OS QUE NUNCA DIZEM SIM
São os hereges ou malditos que fazem o progresso: eis uma redescoberta do surrealismo.
Para os surrealistas, a virtude reside na revolta e, sob qualquer ordem ou ortodoxia, é a heterodoxia ou heresia que tem valor; em todos os campos, mas também e principalmente na psicologia, ponto de encontro de todos os problemas levantados pela heresia surrealista.
Se alguma ciência nova eles propuseram, foi com certeza uma nova psicologia, ainda que a palavra “ciência” não se lhe ajuste com propriedade porque os surrealistas jamais preconizaram uma teoria. Propuseram um método, prefaciaram uma actividade do espírito, pretenderam talvez uma heurística ( se os historiadores e didactas consentissem no rejuvenescimento de uma palavra tão rica)uma propedêutica, uma psico-epistemologia (desde que o prefixo psico se não ligasse à ciência experimental da psique mas à sua “ciência da excepção”), ou patafísica (repetindo Alfred Jarry e convidando os filólogos a não se chatearem com a palavra).
Sobre a patafísica, um surrealista acrescentaria: Fez-se a ciência da lei, porque não há-de haver a ciência da excepção? Se há ciências para todas as classes de fenómenos, porque não há-de haver uma ciência desta particularíssima ordem de fenómenos que são os poéticos?
Se é possível uma patafísica - diz o surrealista - então para ela concorrem todos os “fora da lei”, os fora do texto, os fora da ordem: na poesia, na filosofia, na religião, e também na ciência, os que nunca estão de acordo, os que não dizem sim.
A REALIDADE QUE SE PROCURA
Tem-se considerado o surrealismo, além de coisas profundamente cómicas, esta coisa profundamente macabra: um neo-romantismo.
Alega-se então, segundo a velha querela «romântico versus clássico» , «sentimento versus razão” , que surrealismo, sendo neo-romantismo, é exaltação do sentimento em detrimento da sempre madre e comadre razão.
Claro que os termos do problema são postos assim e assim viciados, desde logo, conforme interessa a clássicos e a românticos, pois terceira coisa diferente dessas eles não sabem ser. Mas é claro, também, para quem pensa em termos não exclusivamente antinómicos (dialécticos?) que surrealismo, se nada tem de clássico, muito menos quer ter de romântico.
O dualismo sentimento-razão não tem sentido para o surrealista. O que ele diz, isso sim, é que o coração pode ter as suas razões (como o Pascal soletrava e queria) mas que a razão terá de ser uma “razão ardente”, paralisados ambos, ao que parece e consta, entre o assalto da estupidez inteligente e o assalto da inteligência estúpida, produtos ambos de uma sociedade de consumo, que apenas sabe ingerir sem digerir.
Sentir foi para o romântico sentir pelo vegetativo, pelo orgânico, pelo epidérmico, e, para o clássico, sentir sempre foi não submeter o que se dizia do coração às regras que se diziam racionais: ora se a luz criadora não vem do histerismo e do umbilicalismo, das melenas byronianas, de tristões e isoldas, de werthers, de joaninhas de olhos muito verdes, também não é da harmonia, do equilíbrio, da mesura, da regra - como ensina a sanfona clássica - que ele jorra. Só da desarmonia - afirma o surrealista e vá lá saber-se, disto tudo, quem tem menos razão - só da máxima desarmonia entre os extremos, da máxima tensão entre os contrários, jorra a luz da noite criadora. Sinal de silêncio e de alarme - diz o surrealista - eis o que foi, é e terá sempre que ser o acto poético, sem o qual acto não existe poesia. Nem romântico nem clássico, pois, mas surrealista.
Contra o que os seus detractores possam ter afiançado, o surrealismo não pretendeu nunca esgotar a realidade e ser um método totalitário para a desvendar. Propôs apenas algumas vias de acesso à realidade e algumas maneiras de a desatrofiar ou revalorizar, não se incompatibilizando, por isso, com outras anterior ou posteriormente propostas e descobertas.
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«A FARSA SURREALISTA» SEGUNDO AGOSTINHO VELOSO
1-2- notas de leitura - publicados ac em 1956 - surrealismo & surrealistas
MORAL DE EPICURO COM CITAÇÕES DE S. PAULO(*)
(*) Este texto não assinado de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário «Ângulo das Artes e das Letras» , do quinzenário «A Planície» (Moura), em 1/5/1956
Insiste-se em considerar o suicídio como um acidente de uma época acidentada e não como uma das suas coordenadas, senão a sua mais saliente coordenada. O suicídio representa, para algumas correntes modernas da poesia e da arte, não um acto de submissão mas de insubmissão; é uma afirmativa e não uma negativa; é um processo activo e não passivo. E’, ou pelo menos assim o consideram.
Reconhece-se, além do suicídio real, ( que se tornou em face das mil e uma torturas inventadas pela sociedade moderna para esticar os tendões ao paciente, demasiado fácil) , um suicídio virtual, modalidade muito mais complexa e que se distribui em variedades, umas inéditas outras correntes. Uma afirmação de vida total, irradiante, absoluta, tem fatalmente que se aproximar duma atitude suicida, pois tudo na sociedade (até os que legislam com ares de intelectuais) se conjuga para liquidar o que nessa sociedade levanta o véu de Maia das hipocrisias e falsidades.
Depois de Nietzsche já não devia ignorar-se que a obra reside mais no homem do que nos livros que ele escreve ou nas telas que pinta, de que toda a poesia é escrita com sangue. E o sangue, quando se esgota, equivale ao desaparecimento da vítima do número dos vivos.
E’ então que acorrem estes zeladores da moralidade pública que escrevem libelos como A Farça Surrealista, (1) a servir de chamariz aos leitores que gostem do ter os pés quentes com botija, como as fitas insecticidas servem de chamariz às moscas com mel pegajoso.
De que servem? Não é com palavras que se combatem atitudes. Profetizar a falência do surrealismo é asneira. O surrealismo, mesmo que nenhuma obra tivesse deixado, nem nomes, nem telas, nem poesias (que deixou, mesmo em Portugal) deixou um itinerário, um rastro, uma semente. Assim como Nietzsche, a sua obra foi mais a de destruir deu-ses do que a de impor algum (ao contrário também do que os nocivos intérpretes copiam uns dos outros e se esparrelam todos na mesmíssima asneira de considerar o Uber-Mensch como a incarnação humana dum Deus, ou, como eles dizem, o endeusamento do homem).
Os ditos escreventes de coisas contra o surrealismo ou outros ismos, esfalfam-se então a incriminá-los de cabotinos, mistificadores, absurdos, doentes, ilógicos, porque, coitadinhos, ignoram ainda que a arte não tem nada com Aristóteles, embora alguns digam que sim. No que eles acertam é em ver nessa arte, fundamentalmente, uma filosofia, que é. E se falam dela é porque colidem os sistemas que queriam harmónicos mas que as ovelhas ronhosas dos surrealismos e outras vêm desmanchar.
Daí a zanga com que se viram e vá de mais um tratado de apologética à conta da arte. A arte paga as favas. Valha-nos saber de que, como eles dizem, talvez não haja nomes nem obras a registar no surrealismo, mas estas perlendas, estilo manta de retalhos, com citações deste e daquele( os devotos do verbete, porque se não metem eles com a história e outras musas para que têm indubitavelmente muito mais jeito e não deixam em paz a poesia, que não precisa deles para nada?) é que não fica rastro, com certeza. Só um poeta é digno de falar de outro poeta. Os outros fariam melhor serviço se coleccionassem borboletas.
Outra blasfémia é a entronização do marquês de Sade para chefe do pelotão surrealista. Isso é que eles descompõem o conde por -causa das lubricidades (escolhem sempre uma nomenclatura inconfundível), dos desacatos, etc. Dum ponto de vista moralizante, está visto que qualquer pessoa, sem precisar de que ilustres intelectuais lho venham dizer, classificará de «imorais» os netos de Sade. Mas para um critério estético, que por sua vez determinará ou criará o ético, antes de mais nada cumpre-nos aceitar os actos de Sade como actos gratuitos, carregados duma funda aversão e desprezo pelos comedimentos de uso comum, não um gozo lúbrico, como dizem os olheirentos e castos senhores, mas um acto que, pela sua irresponsabilidade imanente se carrega do transcendência, que pela sua gratuidade é pura poesia, que pela sua insubmissão é afirmação do individual egolátrico. Qualquer um em nome dum absoluto do catecismo, pode dizer que aquilo assim não está certo. Pois não. Mas enquanto do lado dos que alçam um absoluto e em relação a ele aferem os Sade, os Crevel, os Nietszche, enquanto do lado destes tudo se passa no doce remanso da secretária (pois eles não escrevem com sangue mas com tinta de água), do lado dos outros há, com efeito, um inquietante proceder mas dele unicamente próprio se incrimina, e só ele recebe o prejuízo.
Inclusivamente pertence-lhe a liberdade inalienável, que ainda não houve nenhum carcereiro capaz de roubar: o corte horizontal da carótida, por exemplo. Ou esse, ou as várias torturas lentas a que a vítima pode ser submetida, pelos que, zeladores do bem do próximo, não vão na fita de perderem assim tão preciosa carne de açougue e injectam-lhe soros vitais, para que a vida se lhes prolongue. Sim, porque o suicídio é, além de um processo antiquado, uma maneira demasiado fácil de nos vermos livres dos optimistas que zelam para que sejamos optimistas, acreditemos com eles noutro mundo e, por essa mesma razão, gozemos este o mais epicenamente possível...
A moral de Epicuro, com citações de S. Paulo, afinal.
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(1) A Farça Surrealista , de Agostinho Veloso, separata da revista «Brotéria», Lisboa, 1956
MORAL DE EPICURO COM CITAÇÕES DE S. PAULO(*)
(*) Este texto não assinado de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário «Ângulo das Artes e das Letras» , do quinzenário «A Planície» (Moura), em 1/5/1956
Insiste-se em considerar o suicídio como um acidente de uma época acidentada e não como uma das suas coordenadas, senão a sua mais saliente coordenada. O suicídio representa, para algumas correntes modernas da poesia e da arte, não um acto de submissão mas de insubmissão; é uma afirmativa e não uma negativa; é um processo activo e não passivo. E’, ou pelo menos assim o consideram.
Reconhece-se, além do suicídio real, ( que se tornou em face das mil e uma torturas inventadas pela sociedade moderna para esticar os tendões ao paciente, demasiado fácil) , um suicídio virtual, modalidade muito mais complexa e que se distribui em variedades, umas inéditas outras correntes. Uma afirmação de vida total, irradiante, absoluta, tem fatalmente que se aproximar duma atitude suicida, pois tudo na sociedade (até os que legislam com ares de intelectuais) se conjuga para liquidar o que nessa sociedade levanta o véu de Maia das hipocrisias e falsidades.
Depois de Nietzsche já não devia ignorar-se que a obra reside mais no homem do que nos livros que ele escreve ou nas telas que pinta, de que toda a poesia é escrita com sangue. E o sangue, quando se esgota, equivale ao desaparecimento da vítima do número dos vivos.
E’ então que acorrem estes zeladores da moralidade pública que escrevem libelos como A Farça Surrealista, (1) a servir de chamariz aos leitores que gostem do ter os pés quentes com botija, como as fitas insecticidas servem de chamariz às moscas com mel pegajoso.
De que servem? Não é com palavras que se combatem atitudes. Profetizar a falência do surrealismo é asneira. O surrealismo, mesmo que nenhuma obra tivesse deixado, nem nomes, nem telas, nem poesias (que deixou, mesmo em Portugal) deixou um itinerário, um rastro, uma semente. Assim como Nietzsche, a sua obra foi mais a de destruir deu-ses do que a de impor algum (ao contrário também do que os nocivos intérpretes copiam uns dos outros e se esparrelam todos na mesmíssima asneira de considerar o Uber-Mensch como a incarnação humana dum Deus, ou, como eles dizem, o endeusamento do homem).
Os ditos escreventes de coisas contra o surrealismo ou outros ismos, esfalfam-se então a incriminá-los de cabotinos, mistificadores, absurdos, doentes, ilógicos, porque, coitadinhos, ignoram ainda que a arte não tem nada com Aristóteles, embora alguns digam que sim. No que eles acertam é em ver nessa arte, fundamentalmente, uma filosofia, que é. E se falam dela é porque colidem os sistemas que queriam harmónicos mas que as ovelhas ronhosas dos surrealismos e outras vêm desmanchar.
Daí a zanga com que se viram e vá de mais um tratado de apologética à conta da arte. A arte paga as favas. Valha-nos saber de que, como eles dizem, talvez não haja nomes nem obras a registar no surrealismo, mas estas perlendas, estilo manta de retalhos, com citações deste e daquele( os devotos do verbete, porque se não metem eles com a história e outras musas para que têm indubitavelmente muito mais jeito e não deixam em paz a poesia, que não precisa deles para nada?) é que não fica rastro, com certeza. Só um poeta é digno de falar de outro poeta. Os outros fariam melhor serviço se coleccionassem borboletas.
Outra blasfémia é a entronização do marquês de Sade para chefe do pelotão surrealista. Isso é que eles descompõem o conde por -causa das lubricidades (escolhem sempre uma nomenclatura inconfundível), dos desacatos, etc. Dum ponto de vista moralizante, está visto que qualquer pessoa, sem precisar de que ilustres intelectuais lho venham dizer, classificará de «imorais» os netos de Sade. Mas para um critério estético, que por sua vez determinará ou criará o ético, antes de mais nada cumpre-nos aceitar os actos de Sade como actos gratuitos, carregados duma funda aversão e desprezo pelos comedimentos de uso comum, não um gozo lúbrico, como dizem os olheirentos e castos senhores, mas um acto que, pela sua irresponsabilidade imanente se carrega do transcendência, que pela sua gratuidade é pura poesia, que pela sua insubmissão é afirmação do individual egolátrico. Qualquer um em nome dum absoluto do catecismo, pode dizer que aquilo assim não está certo. Pois não. Mas enquanto do lado dos que alçam um absoluto e em relação a ele aferem os Sade, os Crevel, os Nietszche, enquanto do lado destes tudo se passa no doce remanso da secretária (pois eles não escrevem com sangue mas com tinta de água), do lado dos outros há, com efeito, um inquietante proceder mas dele unicamente próprio se incrimina, e só ele recebe o prejuízo.
Inclusivamente pertence-lhe a liberdade inalienável, que ainda não houve nenhum carcereiro capaz de roubar: o corte horizontal da carótida, por exemplo. Ou esse, ou as várias torturas lentas a que a vítima pode ser submetida, pelos que, zeladores do bem do próximo, não vão na fita de perderem assim tão preciosa carne de açougue e injectam-lhe soros vitais, para que a vida se lhes prolongue. Sim, porque o suicídio é, além de um processo antiquado, uma maneira demasiado fácil de nos vermos livres dos optimistas que zelam para que sejamos optimistas, acreditemos com eles noutro mundo e, por essa mesma razão, gozemos este o mais epicenamente possível...
A moral de Epicuro, com citações de S. Paulo, afinal.
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(1) A Farça Surrealista , de Agostinho Veloso, separata da revista «Brotéria», Lisboa, 1956
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surrealismo e surrealistas
ACÇÃO SURREALISTA: A VOZ SUBTERRÂNEA
1-5-surreal-65- scan segunda-feira, 24 de Junho de 2002
NA VANGUARDA DO DEBATE «INDIVÍDUO» VERSUS «INSTITUIÇÃO»
SURREALISMO :A MAIS IMPORTANTE ENCRUZILHADA INTELECTUAL
DO NOSSO TEMPO(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi parcialmente (muito parcialmente...) publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes», em 28/7/165
28/7/1965 - Os factos formulam perguntas, determinam situações, engendram problemas que as pessoas podem ou não atender, conforme o lugar, as moscas e as conveniências. A história contemporânea propôs algumas encruzilhadas de que raros quiseram ter consciência. A resposta às perguntas, a solução (provável) dos problemas, a sequência das situações ficou normalmente no tinteiro, por covardia ou simples resignação. Mas os factos não deixam por isso de falar e falar bem alto, até que os ouçam, até que se lhes responda.
O surrealismo foi um dos poucos movimentos contemporâneos a ter consciência imperativa dessa voz e dessa certeza mas tentou a resposta e perspectivou a pergunta, de um ângulo rigoroso, sem nenhumas concessões aos factos e forças que os manobram. Simplesmente parece não ter havido espíritos que, trabalhando em seu nome e com o seu rótulo, se mostrassem à altura de tais ambições. Algumas obras surrealistas recaíram no artístico e os autores conformaram-se por vezes às ordens estéticas, políticas ou éticas estabelecidas antes e depois mas que o movimento, em princípio, repudiaria.
De qualquer maneira, pertence-lhe o mérito de ter resistido mais tempo do que o habitual em tais emergências. E de ter dado o exemplo a futuras saídas para o impasse. Não faltou lucidez a muitos dos seus teóricos, mas faltou-lhes talvez clareza de pensamento, evidência na proposição pública dos temas e palavras de ordem fundamentais. Enlearam o crítico no poético e às tantas nem poético nem crítico.
Fora do surrealismo, poucos foram os ensaístas que ajudaram a esclarecer e a sistematizar. Confundiu-se tendenciosamente e por motivos de arregimentação ideológica, deturpou-se de propósito as intenções e realizações do movimento. Estalaram as polémicas e as energias consumiram-se quase todas em roupa suja.
Entretanto, o surrealismo excedia as suas próprias intrigas de bairro, as suas próprias teorias e realizações, as suas próprias fraquezas e falhanços. Iria constituir o ponto de encontro inevitável entre muitas coisas esquecidas pela história oficial e outras coisas que o homem subterrâneo, oposto à história visível, iria revelar e lembrar. A primeira pesquisa do subsolo pertence-lhe e pertence-lhe por isso o inegável mérito, o irrevogável direito de prioridade. De tal maneira que venceu a notória obscuridade de pensamento dos seus teóricos, autores quase todos de uma prosa hermética ainda quando crítica.
Muitas figuras, obras e correntes "subterrâneas" houve que o surrealismo francês ignorou, limitando-se o grupo de Paris, no chauvinismo que imemorialmente caracteriza a cultura francesa, a pesquisar nesta o que havia e a minorizar ou ignorar o restante. Como se o mundo fosse a França! É este um dos aspectos a corrigir, pelo lado de fora: a corrigir pelos que olham, param e escutam o surrealismo, dispostos a superá-lo. Porque vale a pena aproveitar a experiência ganha e prossegui-la. Porque vale a pena retomar o que o surrealismo deixou em aberto e em suspense, lembrar as vias que reabilitou, franquear as portas que entreabriu, redescobrir as fontes que já descobrira.
O que se deverá, pois, entender hoje e aqui por surrealismo não será já o que se entendeu ontem e em França. Surrealismo não são apenas obras e autores do grupo francês ou dos grupos, fora da França, assim designados; é todo o levantamento bibliográfico e iconográfico promovido pelos surrealistas, re-iluminando tradições ocultas, religando circuitos aparentemente perdidos, pondo outra vez em causa e discussão temas dados por arrumados, assuntas tidos per tabus, verdades rotuladas de crendices, livros e autores declarados mortos (mas que se verificou estarem mais vivos do que muitos vivos!), critérios considerados anacrónicos.
Claro que conviria usar outra palavra menos comprometida do que "surrealismo", mas não sei se tal palavra existe ou se será legítimo criá-la. Apenas por diligência simbólica, utilizaríamos a alegoria do "subterrâneo" para significar as correntes reunidas no e pelo surrealismo, que nele convergiram ou que dele irradiaram, já que a comum característica subterrânea as identifica a todas. Abrangendo o surrealismo, ponto central da encruzilhada, as várias metas e vias que nesse ponto central se cruzam, deve falar-se com mais propriedade de um "complexo surrealista", de modo a incluir nele não só o que explìcita ou historicamente se designa de surrealista mas o que, antes e depois, vem animado do "espirito surrealista", proto, - cripto - ou para-surrealista. Esta amplitude semântica deverá ter-se presente no uso da palavra "surrealismo".
Precisamente porque tentou solucionar problemas, ensaiar respostas, anular antinomias, realizar «impossíveis», podem apontar-se ao surrealismo contradições. Muitos surrealistas viveram, e assumiram essas contradições no próprio corpo, única testemunha e única vítima, às vezes de forma dramática. Mas na coragem ou lucidez com que o fizeram reside o seu valor e a exemplaridade da sua poesia. O surrealismo não temeu as contradições porque nunca fugiu aos problemas. E se outros movimentos apresentam maior coerência interna, menos fraquezas e pontos críticos, é simplesmente porque fugiram às perguntas, «escaparam» às situações, escamotearam os problemas. Escapismos vários e vários conformismos tecem assim a teia em que o surrealismo se viu enredado, por eles vaiado, por eles foi entregue às feras, e por eles foi apontado às massas como o inimigo público número 1.
Bem pensantes e bem falantes, nem um só dos intelectuais bem criados (com todas as vantagens que dá o estabelecimento e o acordo próspero, estável com qualquer ordem estabelecida) deixou de proceder ao julgamento sumário, ao enterro precoce do surrealismo, cuja luta contra bem pensantes e conformistas, escapistas e académicos, obscurantistas (disto, daquilo ou daquiloutro) se manteve com mais ou menos glória e assiduidade.
Necessariamente polémico no meio da abjecção aceite e fomentada, há que averiguar sempre, nas polémicas em que se envolveu, de que lado está o franco-atirador, o homem só-entregue-a-si-próprio, e de que lado estão as costas quentes, os palradores, os abnegados defensores das instituições que "corajosamente" defendem, nelas ( e suas metralhadoras) apoiados.
Em tais polémicas há que verificar sempre a desvantajosa posição dos surrealistas perante os quase sempre omnipotentes autores de discursos, defensores dos respectivas mas ocultos senhorios. O surrealismo, neste aspecto, nada inovou, continua apenas a intérmina polémica do homem só contra o homem em grupo, do Indivíduo contra a Instituição, do franco-atirador contra o alistado. E não admira que tentasse reunir em grupo as unidades ou forças isoladas, as "solidões combatentes", embora haja que se lhe reconhecer aí uma das suas mortais contradições, a mais lealmente assumida e quixotescamente mantida: única tentativa que o nosso tempo conheceu de organizar o inorganizável, de aliar em uma só força os franco-atiradores de todo o mundo, de reunir em grupo os incuráveis individualistas chamados poetas, de submeter a uma lei de clã os rebeldes anarquistas de sempre, de tornar enfim o quadrado redondo...
Contradição estrutural - que Breton e os mais jovens responsáveis pelo movimento parece não terem resolvido - é de facto a que se verifica ao preconizar simultaneamente uma acção individual e um propósito de acção organizada ou colectiva. A acção individual ou poética não se compatibiliza com uma acção útil, prática, eficaz, organizada. A articulação entre os indivíduos para uma acção conjunta pressupõe aquilo que um individualismo anárquico não consente: coacções de ordem geral e disciplinar sobre os indivíduos, sobre as deliberações mais ou menos irracionais e indisciplinadas do indivíduo. Daí as purgas consecutivas verificadas no seio do grupo francês e a impossibilidade de haver grupos surrealistas por muito tempo. Daí também a utopia (o "drama" na expressão enfática de Victor Crastre) de o surrealismo querer participar numa acção política efectiva e daí a acusação (infundada) de ignorar a circunstância histórica, os problemas de base ou infra-estruturas, de ser um idealismo mascarado de predilecções ateias e dialécticas. Esta crítica, aliás, permanecerá vigente enquanto permanecer insolúvel e insuperável a antinomia histórica que lhe dá origem (indivíduo contra grupo) nas sociedades politicamente estáticas, fechadas, estagnadas, ditas autoritárias e totalitárias.
No entanto, esta impossibilidade de facto é mais do que suficiente para provar que o surrealismo não esteve alheado da história nem propõe uma estética que preconizasse o indivíduo alheado dos problemas concretas, do movimento histórico, das circunstâncias. Antes ao contrário: nenhum outro movimento se preocupou mais com a ética e menos com a estética. Sem constituir teoricamente um humanismo moral, nenhum outro movimento se preocupou tanto com a posição (a dignidade) a manter pelo indivíduo frente à Instituição e, se necessário, contra a Instituição.
Tão exigentes, aliás, foram os principios da ética surrealista que poucos lhe ficariam fiéis, indo a maior parte substituí-la por uma política (ou "ética para uso de muitos"). Movimento "individualista", mesmo na acepção pejorativa que queira dar-se à palavra, é evidente que não podia resolver problemas materiais ao nível colectivo e, se nunca tal pretendeu, também é verdade que nunca ignorou esses problemas, nunca se alheou do tempo e mundo contemporâneo. Não ignora a História, embora, porque se trata de acção individual e individualista, não esteja preparado para agir e lutar colectivamente no sentido de a modificar.
Agiu, sim, na esfera que lhe parecia própria e as dezenas de censuras a que os textos surrealistas continuam fazendo dores de cabeça dão prova da sua virulência, da sua utilidade, da sua eficácia. Se a palavra escrita é assim tão ociosa, tão platónica, tão historicamente ineficaz - porque se afanam tanto as ordens estabelecidas em cortar e perseguir, em calar e amordaçar a palavra "obscena" dos surrealistas? Os que o perseguem conferem-lhe um valor e significado que, de outro moda, talvez o surrealismo não tivesse...
Se a acção surrealista é uma específica pedagogia, uma educação sui-generis, se o seu campo de batalha se limita (ou amplia?) às ideias, e da literatura fez a temível arma que se sabe, evidentemente que o surrealismo teria de falhar enquanto movimento político (que aliás nunca quis ser). Ao doutrinar as gentes, da sua doutrina nada mais podia extrair-se que preceitos de conduta individual, relativamente embora a problemas de relacionação e convivência colectiva.
Critica-se o surrealismo pela seu "idealismo", pela sua revolta inconsequente, pela sua luta quimérica contra as várias formas de alienação organizada a que os regimes políticos - autoritários e liberais - submetem os homens. Mas qualquer epíteto com que se rotule, ninguém lhe contesta nobreza moral na intransigente atitude contra todos os conformismos e a prontidão com que, durante muitos anos, as mais activos surrealistas denunciaram toda e qualquer espécie de obscurantismo, de opressão, de "traição ao homem".
Resumindo e concluindo:
Se a acção só é possível depois de organizado um grupo, se a organização de um grupo reclama sobreposição hierárquica e a hierarquia significa obediência, mutilação da liberdade individual, atrofia de capacidades críticas e criadoras, dir-se-ia que a acção surrealista estaria condenada por dois lados:
1º) Porque não é possível conceber dentro do grupo a máxima liberdade ou indisciplina individual (sinónima de poesia);
2º) Porque o acto de anarquia individual estaria condenado à sua própria solidão, não passando a acção surrealista de 'actos' surrealistas isolados, dispersos, incapazes de coordenarem ou impulsionarem um movimento de alcance prático.
A contradição existe e o surrealismo não a ignora. Simplesmente tentou o impossível, enquanto outros se renderam perante ele. Por isso o surrealismo, mau grado esta e outras contradições de base, ganhou uma surpreendente e dinâmica irradiação, afirmou e continua afirmando uma notável vitalidade, o que leva a crer que não só as contradições são o seu campo privilegiado como essas são as contradições inerentes a uma época e a quantos assumam a sua época em toda a extensão e responsabilidade. Como tal, o surrealismo ainda não teve quem o batesse e superasse.
As contradições vivem-se, não se escamoteiam. Assumem-se não se evitam. Porque as viveu e assumiu, enquanto outros as escamoteavam e se lhe escapavam (quantos escapismos viu a nossa época?), o surrealismo continua a ser o movimento mais 'polémico' e, em consequência disto, o movimento mais discutido de quantos, centrados na Europa em princípios do século, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, exerceram influência mais ou menos duradoura. Fraca influência, é certo, pois os debates de ordem intelectual deixam sempre a perder, em colorido e sangue derramado, às guerras armadas; mas de qualquer maneira, debate que necessariamente interessa ao homem do nosso tempo e mundo, mergulhado nas contradições históricas e querendo aprender a vivê-las enquanto não puder ultrapassá-las.
Primeiro o futurismo (que desaguou na baixa política), depois o dadaísmo e o micróbio devastador que inoculou, depois o surrealismo - que há quarenta anos sustenta a vanguarda do debate,- quer se considerem subprodutos históricos ou contributos para a marcha do progresso humano, todos contribuíram para modificar a óptica com que o homem se examina a si próprio, desenhando-lhe simultaneamente a fisionomia dilacerada, convulsa e contraditória, assimétrica e ambígua. O clássico e o moderno, o académico e o antiacadémico, o retrógrado e o revolucionário - eis, por culpa do surrealismo, os termos antitéticos inevitáveis em que o debate se formulou e terá de continuar a formular-se, acto que fez do surrealismo a mais importante encruzilhada intelectual do nosso tempo, onde não se pode parar mas onde não se pode deixar de passar. Ele representa, hoje, para lá de todas as fraquezas e limitações, a "grande aventura", o mais constante e antigo anelo do homem: o seu renascimento, a sua perpétua metamorfose.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi parcialmente (muito parcialmente...) publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes», em 28/7/1965
NA VANGUARDA DO DEBATE «INDIVÍDUO» VERSUS «INSTITUIÇÃO»
SURREALISMO :A MAIS IMPORTANTE ENCRUZILHADA INTELECTUAL
DO NOSSO TEMPO(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi parcialmente (muito parcialmente...) publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes», em 28/7/165
28/7/1965 - Os factos formulam perguntas, determinam situações, engendram problemas que as pessoas podem ou não atender, conforme o lugar, as moscas e as conveniências. A história contemporânea propôs algumas encruzilhadas de que raros quiseram ter consciência. A resposta às perguntas, a solução (provável) dos problemas, a sequência das situações ficou normalmente no tinteiro, por covardia ou simples resignação. Mas os factos não deixam por isso de falar e falar bem alto, até que os ouçam, até que se lhes responda.
O surrealismo foi um dos poucos movimentos contemporâneos a ter consciência imperativa dessa voz e dessa certeza mas tentou a resposta e perspectivou a pergunta, de um ângulo rigoroso, sem nenhumas concessões aos factos e forças que os manobram. Simplesmente parece não ter havido espíritos que, trabalhando em seu nome e com o seu rótulo, se mostrassem à altura de tais ambições. Algumas obras surrealistas recaíram no artístico e os autores conformaram-se por vezes às ordens estéticas, políticas ou éticas estabelecidas antes e depois mas que o movimento, em princípio, repudiaria.
De qualquer maneira, pertence-lhe o mérito de ter resistido mais tempo do que o habitual em tais emergências. E de ter dado o exemplo a futuras saídas para o impasse. Não faltou lucidez a muitos dos seus teóricos, mas faltou-lhes talvez clareza de pensamento, evidência na proposição pública dos temas e palavras de ordem fundamentais. Enlearam o crítico no poético e às tantas nem poético nem crítico.
Fora do surrealismo, poucos foram os ensaístas que ajudaram a esclarecer e a sistematizar. Confundiu-se tendenciosamente e por motivos de arregimentação ideológica, deturpou-se de propósito as intenções e realizações do movimento. Estalaram as polémicas e as energias consumiram-se quase todas em roupa suja.
Entretanto, o surrealismo excedia as suas próprias intrigas de bairro, as suas próprias teorias e realizações, as suas próprias fraquezas e falhanços. Iria constituir o ponto de encontro inevitável entre muitas coisas esquecidas pela história oficial e outras coisas que o homem subterrâneo, oposto à história visível, iria revelar e lembrar. A primeira pesquisa do subsolo pertence-lhe e pertence-lhe por isso o inegável mérito, o irrevogável direito de prioridade. De tal maneira que venceu a notória obscuridade de pensamento dos seus teóricos, autores quase todos de uma prosa hermética ainda quando crítica.
Muitas figuras, obras e correntes "subterrâneas" houve que o surrealismo francês ignorou, limitando-se o grupo de Paris, no chauvinismo que imemorialmente caracteriza a cultura francesa, a pesquisar nesta o que havia e a minorizar ou ignorar o restante. Como se o mundo fosse a França! É este um dos aspectos a corrigir, pelo lado de fora: a corrigir pelos que olham, param e escutam o surrealismo, dispostos a superá-lo. Porque vale a pena aproveitar a experiência ganha e prossegui-la. Porque vale a pena retomar o que o surrealismo deixou em aberto e em suspense, lembrar as vias que reabilitou, franquear as portas que entreabriu, redescobrir as fontes que já descobrira.
O que se deverá, pois, entender hoje e aqui por surrealismo não será já o que se entendeu ontem e em França. Surrealismo não são apenas obras e autores do grupo francês ou dos grupos, fora da França, assim designados; é todo o levantamento bibliográfico e iconográfico promovido pelos surrealistas, re-iluminando tradições ocultas, religando circuitos aparentemente perdidos, pondo outra vez em causa e discussão temas dados por arrumados, assuntas tidos per tabus, verdades rotuladas de crendices, livros e autores declarados mortos (mas que se verificou estarem mais vivos do que muitos vivos!), critérios considerados anacrónicos.
Claro que conviria usar outra palavra menos comprometida do que "surrealismo", mas não sei se tal palavra existe ou se será legítimo criá-la. Apenas por diligência simbólica, utilizaríamos a alegoria do "subterrâneo" para significar as correntes reunidas no e pelo surrealismo, que nele convergiram ou que dele irradiaram, já que a comum característica subterrânea as identifica a todas. Abrangendo o surrealismo, ponto central da encruzilhada, as várias metas e vias que nesse ponto central se cruzam, deve falar-se com mais propriedade de um "complexo surrealista", de modo a incluir nele não só o que explìcita ou historicamente se designa de surrealista mas o que, antes e depois, vem animado do "espirito surrealista", proto, - cripto - ou para-surrealista. Esta amplitude semântica deverá ter-se presente no uso da palavra "surrealismo".
Precisamente porque tentou solucionar problemas, ensaiar respostas, anular antinomias, realizar «impossíveis», podem apontar-se ao surrealismo contradições. Muitos surrealistas viveram, e assumiram essas contradições no próprio corpo, única testemunha e única vítima, às vezes de forma dramática. Mas na coragem ou lucidez com que o fizeram reside o seu valor e a exemplaridade da sua poesia. O surrealismo não temeu as contradições porque nunca fugiu aos problemas. E se outros movimentos apresentam maior coerência interna, menos fraquezas e pontos críticos, é simplesmente porque fugiram às perguntas, «escaparam» às situações, escamotearam os problemas. Escapismos vários e vários conformismos tecem assim a teia em que o surrealismo se viu enredado, por eles vaiado, por eles foi entregue às feras, e por eles foi apontado às massas como o inimigo público número 1.
Bem pensantes e bem falantes, nem um só dos intelectuais bem criados (com todas as vantagens que dá o estabelecimento e o acordo próspero, estável com qualquer ordem estabelecida) deixou de proceder ao julgamento sumário, ao enterro precoce do surrealismo, cuja luta contra bem pensantes e conformistas, escapistas e académicos, obscurantistas (disto, daquilo ou daquiloutro) se manteve com mais ou menos glória e assiduidade.
Necessariamente polémico no meio da abjecção aceite e fomentada, há que averiguar sempre, nas polémicas em que se envolveu, de que lado está o franco-atirador, o homem só-entregue-a-si-próprio, e de que lado estão as costas quentes, os palradores, os abnegados defensores das instituições que "corajosamente" defendem, nelas ( e suas metralhadoras) apoiados.
Em tais polémicas há que verificar sempre a desvantajosa posição dos surrealistas perante os quase sempre omnipotentes autores de discursos, defensores dos respectivas mas ocultos senhorios. O surrealismo, neste aspecto, nada inovou, continua apenas a intérmina polémica do homem só contra o homem em grupo, do Indivíduo contra a Instituição, do franco-atirador contra o alistado. E não admira que tentasse reunir em grupo as unidades ou forças isoladas, as "solidões combatentes", embora haja que se lhe reconhecer aí uma das suas mortais contradições, a mais lealmente assumida e quixotescamente mantida: única tentativa que o nosso tempo conheceu de organizar o inorganizável, de aliar em uma só força os franco-atiradores de todo o mundo, de reunir em grupo os incuráveis individualistas chamados poetas, de submeter a uma lei de clã os rebeldes anarquistas de sempre, de tornar enfim o quadrado redondo...
Contradição estrutural - que Breton e os mais jovens responsáveis pelo movimento parece não terem resolvido - é de facto a que se verifica ao preconizar simultaneamente uma acção individual e um propósito de acção organizada ou colectiva. A acção individual ou poética não se compatibiliza com uma acção útil, prática, eficaz, organizada. A articulação entre os indivíduos para uma acção conjunta pressupõe aquilo que um individualismo anárquico não consente: coacções de ordem geral e disciplinar sobre os indivíduos, sobre as deliberações mais ou menos irracionais e indisciplinadas do indivíduo. Daí as purgas consecutivas verificadas no seio do grupo francês e a impossibilidade de haver grupos surrealistas por muito tempo. Daí também a utopia (o "drama" na expressão enfática de Victor Crastre) de o surrealismo querer participar numa acção política efectiva e daí a acusação (infundada) de ignorar a circunstância histórica, os problemas de base ou infra-estruturas, de ser um idealismo mascarado de predilecções ateias e dialécticas. Esta crítica, aliás, permanecerá vigente enquanto permanecer insolúvel e insuperável a antinomia histórica que lhe dá origem (indivíduo contra grupo) nas sociedades politicamente estáticas, fechadas, estagnadas, ditas autoritárias e totalitárias.
No entanto, esta impossibilidade de facto é mais do que suficiente para provar que o surrealismo não esteve alheado da história nem propõe uma estética que preconizasse o indivíduo alheado dos problemas concretas, do movimento histórico, das circunstâncias. Antes ao contrário: nenhum outro movimento se preocupou mais com a ética e menos com a estética. Sem constituir teoricamente um humanismo moral, nenhum outro movimento se preocupou tanto com a posição (a dignidade) a manter pelo indivíduo frente à Instituição e, se necessário, contra a Instituição.
Tão exigentes, aliás, foram os principios da ética surrealista que poucos lhe ficariam fiéis, indo a maior parte substituí-la por uma política (ou "ética para uso de muitos"). Movimento "individualista", mesmo na acepção pejorativa que queira dar-se à palavra, é evidente que não podia resolver problemas materiais ao nível colectivo e, se nunca tal pretendeu, também é verdade que nunca ignorou esses problemas, nunca se alheou do tempo e mundo contemporâneo. Não ignora a História, embora, porque se trata de acção individual e individualista, não esteja preparado para agir e lutar colectivamente no sentido de a modificar.
Agiu, sim, na esfera que lhe parecia própria e as dezenas de censuras a que os textos surrealistas continuam fazendo dores de cabeça dão prova da sua virulência, da sua utilidade, da sua eficácia. Se a palavra escrita é assim tão ociosa, tão platónica, tão historicamente ineficaz - porque se afanam tanto as ordens estabelecidas em cortar e perseguir, em calar e amordaçar a palavra "obscena" dos surrealistas? Os que o perseguem conferem-lhe um valor e significado que, de outro moda, talvez o surrealismo não tivesse...
Se a acção surrealista é uma específica pedagogia, uma educação sui-generis, se o seu campo de batalha se limita (ou amplia?) às ideias, e da literatura fez a temível arma que se sabe, evidentemente que o surrealismo teria de falhar enquanto movimento político (que aliás nunca quis ser). Ao doutrinar as gentes, da sua doutrina nada mais podia extrair-se que preceitos de conduta individual, relativamente embora a problemas de relacionação e convivência colectiva.
Critica-se o surrealismo pela seu "idealismo", pela sua revolta inconsequente, pela sua luta quimérica contra as várias formas de alienação organizada a que os regimes políticos - autoritários e liberais - submetem os homens. Mas qualquer epíteto com que se rotule, ninguém lhe contesta nobreza moral na intransigente atitude contra todos os conformismos e a prontidão com que, durante muitos anos, as mais activos surrealistas denunciaram toda e qualquer espécie de obscurantismo, de opressão, de "traição ao homem".
Resumindo e concluindo:
Se a acção só é possível depois de organizado um grupo, se a organização de um grupo reclama sobreposição hierárquica e a hierarquia significa obediência, mutilação da liberdade individual, atrofia de capacidades críticas e criadoras, dir-se-ia que a acção surrealista estaria condenada por dois lados:
1º) Porque não é possível conceber dentro do grupo a máxima liberdade ou indisciplina individual (sinónima de poesia);
2º) Porque o acto de anarquia individual estaria condenado à sua própria solidão, não passando a acção surrealista de 'actos' surrealistas isolados, dispersos, incapazes de coordenarem ou impulsionarem um movimento de alcance prático.
A contradição existe e o surrealismo não a ignora. Simplesmente tentou o impossível, enquanto outros se renderam perante ele. Por isso o surrealismo, mau grado esta e outras contradições de base, ganhou uma surpreendente e dinâmica irradiação, afirmou e continua afirmando uma notável vitalidade, o que leva a crer que não só as contradições são o seu campo privilegiado como essas são as contradições inerentes a uma época e a quantos assumam a sua época em toda a extensão e responsabilidade. Como tal, o surrealismo ainda não teve quem o batesse e superasse.
As contradições vivem-se, não se escamoteiam. Assumem-se não se evitam. Porque as viveu e assumiu, enquanto outros as escamoteavam e se lhe escapavam (quantos escapismos viu a nossa época?), o surrealismo continua a ser o movimento mais 'polémico' e, em consequência disto, o movimento mais discutido de quantos, centrados na Europa em princípios do século, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, exerceram influência mais ou menos duradoura. Fraca influência, é certo, pois os debates de ordem intelectual deixam sempre a perder, em colorido e sangue derramado, às guerras armadas; mas de qualquer maneira, debate que necessariamente interessa ao homem do nosso tempo e mundo, mergulhado nas contradições históricas e querendo aprender a vivê-las enquanto não puder ultrapassá-las.
Primeiro o futurismo (que desaguou na baixa política), depois o dadaísmo e o micróbio devastador que inoculou, depois o surrealismo - que há quarenta anos sustenta a vanguarda do debate,- quer se considerem subprodutos históricos ou contributos para a marcha do progresso humano, todos contribuíram para modificar a óptica com que o homem se examina a si próprio, desenhando-lhe simultaneamente a fisionomia dilacerada, convulsa e contraditória, assimétrica e ambígua. O clássico e o moderno, o académico e o antiacadémico, o retrógrado e o revolucionário - eis, por culpa do surrealismo, os termos antitéticos inevitáveis em que o debate se formulou e terá de continuar a formular-se, acto que fez do surrealismo a mais importante encruzilhada intelectual do nosso tempo, onde não se pode parar mas onde não se pode deixar de passar. Ele representa, hoje, para lá de todas as fraquezas e limitações, a "grande aventura", o mais constante e antigo anelo do homem: o seu renascimento, a sua perpétua metamorfose.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi parcialmente (muito parcialmente...) publicado no semanário «Jornal de Letras e Artes», em 28/7/1965
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