domingo, 29 de julho de 2012

ANDRÉ BRETON «SANTIFICADO» POR CLAUDE MAURIAC

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SURREALISTAS E MILIONÁRIOS DA CRENÇA

CRIME NA CATEDRAL (*)


(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», coluna «Leituras ao Acaso», em 11.4.1972

O tradutor da peça «Murder in the Cathedral» (edições Delfos, Lisboa) propos-se trazer à cena, num posfácio, três reis magos: Artaud, Jarry e Jean Genet.
A intenção - vê-se! - é escrever um posfácio; depois, patentear erudição e mostrar aos surrealistas (naturalmente!) que «ele também sabe coisas»; finalmente, aproveitar os mortos que já não podem piar ou um vivo, Genet, que está lá longe e tem mais que fazer.
E é assim que, a propósito de catolicidade, de não versilibrismo, de neo-classicismo, do «Poetry and Drama» e outras douradas misérias do senhor T. S. Eliot, se arrancam, sem mais nem menos, à paz dos túmulos dois poetas - vivos! - cujas misérias e Miséria nunca tiveram nada a ver com os versos de ninguém e muito menos com os versos dos «milionários da Crença»; e muito menos com os dramas em verso clássico de T. S. Eliot.
Aparentemente inédita, a manobra de anexação é velha e revelha. De vez em quando, o crítico faz mão baixa dos tesouros profanos e em nome da fé, da esperança, da caridade, não deixa o pio crítico e pio senhor de aproveitar a caridade e a ocasião para surripiar dali - da Poesia, pais de onde havia de ser? — algo em benefício da Fé.
A esse respeito, os «Vingt Ans de Surréalisme (1939-1959)», livro de Jean Louis Bédouin, publicado em 1961, informa largamente, relatando o que têm sido as operações mais ou menos tácticas e aritméticas - subtrair para adicionar — a que se dedicam ou dedicaram, entre outros Pierre Klossowki, «a propósito do «deísmo» de Sade»; do senhor Dom Claude Jean-Nesmy que, segundo Bédouin, «se esforça por demonstrar o valor finalmente religioso da mais oficialmente ateia das escolas poéticas: o surrealismo»; Michel Carrouges, cujo livro André Breton e os dados fundamentais do surrealismo e em especial o capítulo «Surrealismo e Esoterismo» tem dado origem ao que Bédouin designa de «tentativas apologéticas abusivas»; tudo isto, além das já célebres espoliações sobre o legado de Jarry (que o pós-faciador referido repete) e o de Rimbaud, que nas mãos do senhor Claudel ficou reduzido a «místico em estado selvagem».
Confirmando, transcreva-se do livro citado, um parágrafo do manifesto colectivo ali reproduzido - «A La Niche des Glapisseurs de Dieu», subscrito por mais de cinquenta nomes :
«Mencionemos algumas destas tentativas, aliás conhecidas: em Julho de 1947, na revista «Témoignagne», um beneditino, Dom. Claude Jean-Nesmy, declara: «O programa de André Breton testemunha aspirações que são inteiramente paralelas às nossas. «Em Agosto, M. Claude Mauriac escreve na Nef, a propósito de «Fata Morgana»: «Um cristão não teria falado de outra maneira». Em Setembro, M. Jean de Cayeux proclama na «Foi et Vie» que tenciona subscrever, na medida em que elas poderiam estar de acordo com as intenções do movimento ecuménico, várias proposições enunciadas num artigo de um de entre nós. Depois houve nos Cahiers d’Hermès o penetrante estudo de M. Michel Carrouges: «Surrealismo e Ocultismo», que só tomou todo o seu sentido, entendemos seu sentido apologético, depois do recente aparecimento da obra do mesmo autor « La Mystique du Surhomme». Houve em «La Table Ronde» as elocubrações de M. Claude Mauriac que não se auto-reconhece talvez cristão mas todo se agita à ideia de intitular um ensaio futuro: Santo André Breton. Que bela farça!»

A. C.

ANDRÉ BRETON E JACQUES MONOD EM LINHA

breton-2> notas de leitura - as correspondências imaginárias - as correspondências mágicas - surrealismo & surrealistas - pistas de pesquisa

AS LEIS DA IMAGINAÇÃO: O ACASO OBJECTIVO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário - «Literatura e Arte» - do «Diário Ilustrado» (Lisboa), em 29/3/1972

Relendo, ao mesmo tempo, «O Amor Louco», de André Breton, na tradução de Luísa Neto Jorge e «O Acaso e a Necessidade», de Jacques Monod, algumas ideias ficam para futuras investigações do Desconhecido. Do Impossível.
“Para a maioria dos espíritos literários, o fantástico define-se como uma violação das leis naturais, uma aparição do impossível”-, diz Louis Pauwels, que logo a seguir comenta e rejeita aquela definição tradicional: “Junto ao insólito e ao curioso, fantástico seria um aspecto mais do pitoresco. Ora investigar o pitoresco nos parece uma actividade ociosa e, resumindo, uma ocupação burguesa. Segundo o nosso parecer, o fantástico não é jamais uma violação, mas uma manifestação das leis naturais. Surge do mesmo contacto com a realidade, com a realidade observada directamente e não filtrada através dos nossos preconceitos e prejuízos, velhos e novos.»
Temos então que, ao contrário do assente e aceite, o fantástico não é uma violação das leis mas um alargamento dessas leis naturais até onde os preconceitos e prejuízos não deixavam ir a imaginação (a razão imaginadora).
Não parece abusivo, pois, considerar que Jarry com a Patafísica, Breton com o surrealismo, Pauwels com o realismo fantástico, Jacques Monod com as heresias de biólogo heterodoxo, estão prolongando e não negando a ciência.
Não é mera questão de palavras chamar«ciência» à ciência A, o que, de A a Z merece tal nome. Não é indiferente e a diferença é importante. Porque está em jogo o reconhecimento «científico» de coisas como as leis da excepção (Jarry), a lógica do contraditório (Lupasco), e a dialéctica da individualidade criadora (anarco-utopismo). No fundo, trata-se de (re)-descobrir a imaginação e suas leis. Ora o que uma concepção tradicional da ciência recusa é que haja leis para a imaginação e que a liberdade possa ter a sua gramática.
Tal como Breton ensina em «O Amor Louco», pode trabalhar-se o acaso e pode trabalhar-se para não sermos cegas vítimas do finalismo fatalista e determinista.
Pode-se ir ao encontro do livre arbítrio. Pode violentar-se a liberdade.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário - «Literatura e Arte» - do «Diário Ilustrado» (Lisboa), em 29/3/1972

O ABJECCIONISMO EM 1963 - II

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O SURREALISMO: UMA ÉTICA EM ACÇÃO
CALAR EM ABJECÇÃO É A ÚNICA FORMA DE FALAR (*)


Tavira, 10.Março.1963

Quando uma ordem colectiva se sobrepõe totalitariamente à ética individual, deixa de existir ética, no verdadeiro sentido desta palavra, para haver política, isto é, uma ética imposta, uma ética-para-uso-de-muitos.
Uma ordem totalitária, monopolizando o direito individual de ter cada um a ética que lhe aprouver, impossibilita, em nome de uma pseudo-ética, de uma ética-para uso-de-muitos, todo e qualquer acto de carácter genuinamente ético. É a ausência total de liberdade. É a sociedade totalmente fechada. É a total abjecção (1).
Ético (mas suicida) continuará, no entanto, a ser o acto de revolta dentro da ordem totalitária, acto que tenta possibilitar a percentagem mínima de eticidade (obscenidade) que neutralize a carga máxima de abjecção (2).

É assim que o surrealismo, fundamentalmente uma ética em acção e fundamentalmente acção ética, aparece, sob ordens totalitárias, na forma de um desaparecimento, falando em silêncio. Numa sociedade fechada, o surrealismo existe latente, manifesta-se sob a forma de um vácuo ou ausência.
O surrealismo, perante aquilo que diagnostica e designa de Abjecção, aparentemente abdica, desiste, cala-se, e neste sentido parece colaborar Nela. Só na aparência, porém. Calar – reconhece o homem surrealista – é ainda a única forma de falar, e não colaborar é ainda a única forma de colaboração, a única forma de acção não identificável com reacção.
A meu ver, seria esta existência virtual do surrealismo que alguns surrealistas, em Portugal, teriam pressentido sob a designação de abjeccionismo, termo cuja ambiguidade lhe define o conteúdo também ambíguo: «o que é não aparece e o que aparece não é», segundo Cesariny.
Abjeccionismo seria a forma que teria de assumir, nas condições que se sabem, um movimento estruturalmente revolucionário (totalitaria ou totalitaristicamente revolucionário) como o surrealismo.
Assim é que, enquanto alguns neo-realistas foram fazendo romances proletários para a burguesia, o surrealista manteve-se, a maior parte do tempo, em silêncio, querendo com esse silêncio dizer muito mais do que a algazarra dos outros todos.
A aparente abstenção do surrealista é, no fundo, a única maneira de ter realmente agido em vez de reagido.
Proliferar editorial e industrialmente, quer com crónica da alta burguesia à Joaquim Paço de Arcos, quer com romances folclóricos à Aquilino, quer com ciclos ruralistas à Alves Redol, quer com histerias pseudo-místicas à Régio, quer com narrativas cripto-existencialistas à Virgílio Ferreira, foi sempre, para o surrealista, colaboracionismo e do pior (4).
O que levou muitos surrealistas, em climas totalitários ou semi-totalitários, a abster-se não digo de escrever mas de publicar (a suicidar-se política, literariamente ou realmente), foi, não há dúvida, uma violenta exigência ética, uma ardente necessidade de ar puro (não viciado).
Por isso, são eles talvez os únicos homens em que o homem ainda se pode reconhecer. Dir-se-ia que o surrealista foi o que conseguiu manter-se livre onde todos se submeteram à servidão, revoltado onde todos se conformaram, incorrupto onde todos se deixaram corromper: o que, apesar de abjecto, o reconheceu a tempo e se manteve irredutível às forças e formas suplementares da Abjecção. Há no surrealista uma ânsia de pureza que não deve nem pode confundir-se com nenhuma espécie de puritanismo. O surrealista sabe que está mergulhado na Abjecção e que pode fracassar no esforço que fez, faz ou fará para se libertar dela. No entanto, esse esforço - a revolta, a permanente revolta - é que importa saber se existe, ou se, mais cedo ou mais tarde, directa ou indirectamente, vem a ser substituído por qualquer conformismo.
Os surrealistas têm, de certa maneira, direito a sentir-se um grupo à parte (3) . Enquanto movimento contra todos os tipos de alienação , enquanto Ética em acção e Acção ética, enquanto Revolução total, o surrealismo é único no nosso tempo.
Mais do que nenhum outro movimento , portanto, tem o surrealismo sido vítima dos climas totalitários, promotores e protectores de todas as formas de alienação.
Outras revoluções pode ter havido na filosofia, nas ciências, na psicologia, nas artes, na literatura, na economia, na política, na pedagogia.
A Revolução, porém, aos surrealistas pertence.
A Revolução, no mais geral e profundo sentido, a Revolução que abranja o homem, simultaneamente na sua unidade, na sua totalidade e na sua identidade, só o surrealismo a tentou. E só ele continua a tentá-la.
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(1) Verdade seja que, se tudo estivesse preparado, por parte da ordem política que me contém, para me conduzir individualmente à liberdade – padrão único de eticidade – talvez não tivesse mérito «moral» consegui-lo.
Quando tudo conspira para me alienar, quando uma ordem totalitária ou semi-totalitária torne suicida a minha exigência de liberdade, é que o meu esforço tem verdadeiro mérito «moral», pois começa a ser um esforço de afirmação individual contra a negatividade da ordem colectiva e colectivista.
Se aquilo que por imperativo ético, ou o que deve ser não coincide obviamente com o que é, cada um terá que se realizar nas circunstâncias que lhe é dado viver.

(2) Só pode haver um critério de eticidade e esse critério é a liberdade. Sou tanto mais humano quanto mais livre for. Humanizar-me é libertar-me. Quanto mais liberdade perco (quanto mais me alieno a outrém ou a outra coisa) mais humanamente me empobreço, depaupero, degrado.

(3) Todo o humanismo tende para a teorização, explícita ou implícita, de uma aristocracia (o padrão humano ideal): aristocracia espiritual ou cultural, política ou militar, de sangue ou de dinheiro, em qualquer caso aristocracia.

(4) Muitos humanismos se têm preconizado no papel. Mas os humanismos não chegam para humanizar o homem. Alguns actuam mesmo contra o homem.
Uma doutrina não é um comportamento, um sistema não é uma conduta, uma teoria não é um acto. As ideias que eu perfilhe, só por si, nada garantem do meu modo de ser. Porque as ideias podem existir num mundo á parte da minha existência. As ideias em nada garantem o meu tipo de comportamento.
«Uma doutrina não vale pelo que os homens fazem dela, mas pelo que ela faz dos homens.»

O ABJECCIONISMO EM 1963 - I

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VOLTAS E REVIRAVOLTAS DO ABJECCIONISMO

COMENTANDO UMA FRASE DO SURREALISTA PEDRO OOM COM CITAÇÕES DE ANDRÉ BRETON E CESARINY


Tavira, 7 de Março de 1963

Verificada (por alguns) a Abjecção, pergunta-se: há ou não há diferença entre:
1º - os que aceitam, servem (servilmente servem), apoiam, defendem e prorrogam a Abjecção
2º - os que, embora nela nascidos e mergulhados, não agem nem reagem contra, indirectamente colaborando nela
3º - os que (suicidando-se, virtual ou realmente) lutam por uma gravidade em sentido contrário à da física: isto é, de baixo para cima.
Pergunta-se ainda: poderá falar-se de "excesso de pureza" em André Breton?
O que explica, justifica e valida todo o surrealismo não será exactamente esse ímpeto para cima, essa impulsão directamente proporcional à opressão?
Poderá sem esta noção axilar ou axial de "bem" (Amor=Liberdade=Verdade) existir experiência ou actividade que mereça o nome de surrealista?
A exigência de “pureza" (pureza entendida como libertação das
impurezas) está, a meu ver, certa. Que daí se depreenda , inevitavelmente, a excomunhão dos não-puros, é que já não. Porque o problema não se põe em termos antinómicos de "puros" e "não-puros"; põe-se em termos dialécticos de purifícação ou libertação, de movimento para estados cada vez mais livres e mais puros.
O que importa, no seio da Abjecção, é o "índice de obscenidade" de um acto ou de uma acção. Quanto mais obsceno (quanto mais violentamente agressivo contra a Ordem ou Abjecção Vigente) mais moral, isto é, "melhor". O índice de obscenidade há-de variar, de indivíduo para indivíduo e, no mesmo indivíduo, conforme as circunstâncias ambientes e as disposições do sujeito. Cada um só terá de saber não onde finda a Abjecção (o que é Impossível) mas onde começa a contra-Abjecção e até onde ela sobe.

Quando o surrealista Pedro Oom pergunta "O QUE PODE FAZER UM DESESPERADO QUANDO O AR É UM VOMITO E NÓS SERES ABJECTOS?"
pergunto eu: - Que amplitude terá aí a palavra "nós"?
- Refere-se esse "nós" aos três tipos de participação acima referidos? Ou a dois deles? Ou apenas a um? Qual ou quais?
Se, indistintamente, todo e qualquer que nasce num meio determinado é e será simplesmente o que o meio dele e nele determina, estaríamos perante um determinismo - o que nem o surrealismo nem o abjeccionismo, ou ambos conjuntamente, creio aceitarem.
André Bréton por várias vezes afirma a "transcendência” do espírito sobre a história, da vontade humana sobre a fatalidade ou facticidade dos acontecimentos, o valor liberdade ou livre-arbítrio como supremo.
Postulando o livre-arbítrio, é indispensável reconhecer a soberania da vontade humana e que a vontade de uns faça deles algo que os diferencia dos outros.
Logo, a pergunta formulada por Pedro Oom tem, a meu ver, esta resposta:
Verificando-se que:
- nem para todo o ar é um vómito, e os que o reconhecem é porque têm a percepção de um outro ar
- nem todos se considerara abjectos, e só têm disso a noção os que, não tendo ou não querendo ter algo de abjecto, percepcionam a noção do não abjecto
- o que um homem desesperado pode fazer, quando o ar (para ele) é um vómito e ele (para ele) um ser abjecto, é :
1º - Manter-se desesperado, isto é, manter a noção de vómito (que há) e do abjecto (que é)
2º - Passar do desespero ( da noção do desespero ou vivência da angústia) à revolta (à acção) agudizando os contrários
3º - Passar da revolta à revolução, pela síntese dos contrários ou acção obscena (acção poética, criadora ou absoluta)
Eis o motivo por que a palavra "abjeccionismo" me parece insuficiente para expressar toda a amplitude deste esquema trifásico, circunscrevendo a totalidade do mesmo a uma fase - a lª - e correspondendo-lhe, por isso, um conteúdo negativo ou niilista, de abdicação e desistência. Ora não me parece que a desistência frontal e definitiva esteja nos propósitos dos que podem reclamar-se de "abjeccionistas”. Seria preferível, a meu ver, falar-se de uma "fase abjeccionista" de um processo muito mais vasto, e não de um abjeccionismo.
Assim, à fase abjeccionista", fase inicial ou do acento agudo, seguir-se-ia a fase intermédia ou crítica (a do acento grave) e finalmente a fase esdrúxula, obscena, criadora ou revolucionária.

O termo “abjeccionismo", além de me parecer, no caso indicado , restritivo da intenção última dos próprios abjeccionistas, creio que induz, por outro lado e devido à terminação em ismo, o observador comum em erro. Ele suporá, como tantas vezes supôs e continua supondo do "surrealismo*, tratar-se de mais uma doutrina, de um sistema, de uma filosofia, de uma escola, de um humanismo, de uma estética, etc.
Em compensação, uma das vantagens digamos públicas ou publicitárias da designação de "abjeccionismo” sobre a de "surrealismo", é deslocar o acento tónico da epistemologia para e ética, como convém. A problemática do real e do não-real, do material e do espiritual, dos monismos e dos dualismos (que a palavra "surrealismo" logo evoca), parece-me, com efeito, uma excrescência não só das metafísicas
tradicionais como das anti-metafísicas modernas. Nem metafísico nem anti-metafísico, nem materialista nem anti-materialista, etc., etc. - eis o que o Poeta (ser simultaneamente físico e metafísico) pode afirmar. Bizantinas questões me parecem as epistemológicas, vistas deste ponto de vista: a realidade Poeta.
"Eu sou dos que não acreditam nela” – diz Pedro Oom, referindo-se à "estética surrealista”. Eu diria que também não. Quando tudo se referir ao Poeta e não às "produções poéticas", a Estética ruirá. Perante o Poeta - a realidade a partir da qual o Real (todo o real) se cria - as especulações abstractas era torno de "poemas", "quadros , etc. deixam de ter sentido e consumar-se-á, creio eu, e afirmação de Breton, renegada por ele mesmo: "Toda a arte é estupidez", devendo acrescentar-se: toda a arte, e principalmente toda a Estética (ou teoria da arte) é estupidez (uma vez que colabora numa das mentiras capitais da ordem reaccionária (ou Abjecção), a mentira de dissociar o homem - que é unidade, totalidade e individualidade - em uma ou em várias das suas actividades (neste caso a actividade dita artística).

Antes de conhecer as opiniões de Pedro Oom, pensava eu (de acordo com as escassas referências de que dispunha) que "abjeccionismo” só diferia de "surrealismo" na maneira de parecer e aparecer aos olhos das gentes, continuando no fundo e no entanto a ser a mesma coisa.
Supunha eu que a única diferença era entre o meio que refractava um e o meio que refractava outro, quero dizer, entre um contexto político-social mais ou menos demo-liberal e um contexto totalitário, entre uma sociedade, apesar de todos os diques e tampões, relativamente aberta e uma sociedade hermética e literalmente fechada.
Supunha eu que "abjeccionismo" seria assim o nome e forma peculiares assumidos pelo surrealismo em vaso fechado.
Perante as afirmações de Pedro Oom, vejo que atribui ele ao "abjeccionismo” um conteúdo (ligeiramente embora) diferente do do surrealismo. Não difere só na forma de parecer e aparecer, mas, no fundo, na própria forma de ser.
Tratar-se-ia de uma heterodoxia, entre as muitas a que, na opinião de Cesariny (3-4-1959, in «Diário de Lisboa») a ortodoxia surrealista teria dado origem.
Deste ponto de vista, porém, restringe-se ainda mais a acepção atribuível ao "abjeccionismo". Se a direcção "abjeccionista" é uma entre os milhares de direcções em que a ortodoxia surrealista pode disparar, dir-se-ia que o "abjeccionismo" é Pedro Oom e Pedro Oom é o "abjeccionismo". Pessoal e intransmissível, a designação teria assim uma amplitude estrita, definida, limitada.
Mas um problema subsiste acreditando, com Cesariny, que o surrealismo, enquanto ortodoxia, fez nascer heterodoxias - algumas identificáveis não já com grupos de indivíduos mas com individualidades, elas só e elas próprias. Acreditando nisto necessário é inventar uma designação global que abranja não só o surrealismo e seus derivados, mas também o surrealismo e seus afluentes, não só o dadaísmo de que, por sua vez, o surrealismo derivou, mas todos os movimentos confluentes ou inter-fluentes, movimentos ou autores que, através da história, representam a anti-História, que, no meio da Abjecção mas contra a Abjecção, mantiveram a palavra de revolta ou de liberdade. Dadaísmo-surrealismo-abjeccionismo: Eis três rios que podem seguir leitos diversos, mas que partem todos da mesma nascente e apontam todos à mesma foz. Outros rios-afluentes haverá, antes, entretanto e depois desses, convergindo na grande Corrente ou Rio Subterrâneo. E para este há um nome: O OBSCENO.

Pedro Oom opõe Angústia e Abjecção e, a meu ver, confunde planos: o psicológico e o histórico.
A Abjecção existe, principalmente, nas instituições e organizações, na sociedade tal qual está e tal qual a foram fazendo.
A angústia, por outro lado, só pode existir na mente individual. A alternativa, pois, parece-me ser não entre conduta abjecta e conduta angustiada, mas entre conduta abjecta (participação individual na Abjecção colectiva) e conduta obscena (oposição estritamente individual à Abjecção colectiva). O índice de obscenidade de um acto, acção ou conduta é que define o seu valor ético.
A angústia, por outro lado, é uma resultante psicológica inevitável em todo o indivíduo que, primeiro se revolta, depois se desespera e por fim se angustia.