quinta-feira, 19 de julho de 2012

CONTEMPORÂNEOS DO FUTURO

O VISIONÁRIO GIORDANO BRUNO

1-3 - terça-feira, 29 de Abril de 2003- 70-05-12-ls-prefácio- imaginação-2

ELOGIO DA IMAGINAÇÃO:
VISIONÁRIOS OU CONTEMPORÂNEOS DO FUTURO ? (*)



[(*) Este texto de Afonso Cautela, só parcialmente inédito, aparece como um «prefácio» a qualquer coisa, e que hoje francamente não sei o que seja: fica a data em que foi escrito e a parte publicada na respectiva data de publicação.]


Escrito em 12-5-1970

Nem seria necessário evocar os casos exemplares de Sócrates, Giordano Bruno, Sade, Galileu, Freud, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche e Artaud, para comprovar de como a imaginação – virtude cardial do homem – tem sido quase sempre pouco apetecida pela ordem ou ordens estabelecidas.
Os visionários, contemporâneos de um futuro que quase nunca coincide com o presente onde estão, encontram-se mais ou menos condenados à morte, ao hospital ou ao gueto, perseguidos pelos que, no tempo e no templo, detêm o poder temporal.
Assim, a imaginação, por força da própria história que os seus autores desenham, se liga a uma vivência ou experiência de pessoa, indesligável da obra.
E assim vãos se afiguram os propósitos de a reduzir aos fabricos ou sinais externos da linguagem; embora, claro, sem a intervenção dos signos não exista manifestação imaginativa.
Se entre os mais recentes autores de uma imaginação absoluta – Teilhard, Jorge Luís Borges, Agustina Bessa Luís, Samuel Beckett, - são menos frequentes os casos de fogueira, asilo, hospital ou campo concentracionário, não quer dizer que, por mais subtis, por terem mudado de forma e de táctica, por se encontrarem "actualizados" os processos de trituração e esmagamento não se façam sentir e até de maneira mais drástica, porque menos espectacular.
Porque mais ardilosas são também as formas que dizem representar hoje o reino solar da imaginação, mais difícil se torna distinguir entre o real fantástico e a mera rotina ou pirotecnia verbal, entre o revolucionário e o académico, entre o clássico e o moderno-de-sempre.
Qualquer que seja o campo ou tema onde estas páginas vão bater, vão ter e deter-se, um propósito ou ambição comum as anima: a procura do que representa, para lá das aparências e tentações do momento e da moda, do que estimula, respeita ou prepara a imaginação. Palavra difícil de delimitar, só por tacteios em vários sentidos se lhe pressente , um pouco, do conteúdo possível. Daí que estes ensaios pareçam dispersar-se em vários sentidos divergentes, quando afinal convergem para o mesmo alvo.
Estóico e um bocado ingénuo terá de ser o aprendiz de feiticeiro que, no meio da cultura constituída, não queira perder o pé. Nos últimos tempos, muitas têm sido as armadilhas que, sob o alibi de modernismo, se perfilam para suprimir ou deter exactamente toda a manifestação moderna, a força original de onde brota e se alimenta a imaginação - de um autor ou de um povo.
Os que doutrinam e teorizam, por exemplo, sobre poesia, os que decretam quem é quem não é, quem vale e quem não vale, quem vive e quem morre, os que exportam e importam, os que dedilham o novo romance, os que desenterram sistemas metafísicos, os que se apegam a fórmulas dogmáticas sob a desculpa ideológica de urgentes obrigatoriedades políticas- tudo isso corrompe a esperança, tudo isso concorre para tornar irrespirável qualquer atmosfera de ousio e aventura.
E sem imaginação, a época é de obscuridade, qualquer que seja o nome daquilo em que esse "obscurantismo" procura triunfar.
Se é verdade que para um Herberto Helder , a escola experimentalista actuou ou actua como um estímulo da soberana imaginação que é a sua, o facto é que a muitos outros serviria para desculpar fatais esterilidades poéticas e de sigla para instaurar uma academia, uma escolástica, uma dogmática de onde a imaginação sai cuspida e vexada, esvaziada e vencida.
Não são muitos os casos de imaginação-absoluta com que conta a recente literatura portuguesa (Raul de Carvalho e Mário Cesariny devem citar-se, porque logo ocorrem), e o facto, se pode obter justificação mas não desculpa, num subdesenvolvimento crónico, deveria, por outro lado, alertar-nos para a necessidade, a urgente obrigação que sobre todos os que escrevem impende de procurar saída.
Dentro de seus magros e parcos recursos, como é o caso (sem falsa modéstia) dos ensaios aqui reunidos.
Se a imaginação pertencia tradicionalmente aos poetas, cujo visionarismo os manuais se encarregam de historiar, desprezando e menosprezando, - o que se verificou, em algumas teorias estéticas recentes, foi o desvio e desvirtuação dessa linha digamos comum, aos heréticos de todos os tempos.
E porque, nos poetas, doutrinados por tais escolas, o conformismo começou de sobrepor-se à heresia, é natural que em outros campos da inteligência se procurasse quem exerça o livre trânsito da imaginação.
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Quando os postulados e propósitos iniciais do surrealismo começaram a sofrer um natural processo deteriorativo por parte de epígonos e exploradores do sucesso, não nos devemos admirar que se procurassem novas vias para o exercício da imaginação - ainda que essas vias se chamassem realismo fantástico ou prospectiva.
Aceitando o desafio da tecnologia, houve alguns autores empenhados em demonstrar, a partir dela, duas coisas: que a inteligência especulativa e calculatriz nunca substituiria a imaginação; que, antes pelo contrário, a tecnologia dos computadores não só abria uma esperança à actividade mental, deixando-a livre das tarefas subservientes do cálculo e da informação para projectar em full-time na criação poética ; como, ela própria, permitia novas mil combinações capazes de servir (ao lado do non-sense, do cadáver esquisito, do automatismo, etc.) o pensamento analógico ou poético e um aparelho de controlo capaz de tornar a crítica à obra muito mais precisa, muito mais rigorosa, afastando, portanto do templo os vendilhões.
Quer dizer; a tecnologia dos computadores abria uma dupla esperança, ao contrário do que os pessimistas profetizavam, supondo que chegara a época do "robô", do homem-máquina, do sujeito totalmente alienado à mecânica, sem margem para imaginar outra coisa que não fosse o círculo vicioso e tautológico das suas alienações.
A tecnologia dos computadores dava à imaginação, finalmente, o estatuto de actividade soberana e autónoma, especificamente humana, a única insubstituível (por enquanto) por qualquer máquina. Aquilo que se pressentia há séculos, era agora materialmente comprovado.
Nesta reabilitação e neste esclarecimento, é de salientar o papel que a obra de Louis Pauwels e Jacques Bergier - publicada em 1960 com o título Le Matin des Magiciens - , discutida embora quer por surrealistas atrasados quer por racionalistas míopes, veio desempenhar.
Incluir no processo reabilitatório da imaginação, a ciência e sua técnica ( um pouco ao contrário do surrealismo que não quis aceitar esse desafio, que o preferiu ignorar e que acabaria, portanto, por se deixar ultrapassar por ele) o realismo de Louis Pauwels, que se confessa grandemente subsidiário do surrealismo (como não podia deixar de ser, se era a imaginação que estava em jogo) aceita da ciência e da técnica o seu desafio, querendo ver depois onde, servindo-se dela, a podia superar, a podia dis-pensar.
Quaisquer que sejam as objecções de ordem prática, de ordem política que se coloquem a movimentos como o realismo fantástico e a prospectiva, (nem todas as objecções são tão pertinentes e justas como a ignorância dos dados às vezes leva a supor), de um único ponto de vista essas duas correntes (assim como o surrealismo a sua pertinaz intervenção) nos podiam, nos deviam interessar aqui, nestas páginas: numa sociedade que pretende submergir tudo e todos na vácua mediocridade do senso comum, ou de uma estreita racionalidade, de onde o melhor do homem é expulso e escorraçado, ou de um dogmatismo esclerosante, - essas duas correntes são propostas, desafios, hipóteses da imaginação à imaginação, que em nada perturbam outras hipóteses, que em nada impedem uma acção prática, que em nada colidem com propósitos de mudar o mundo, de transformar a vida. Antes pela contrário. Nunca a imaginação contrariou essa mudança, antes é ela que, sempre, a visiona, antecipa, pressente e torna urgente.
Desta perspectiva, nenhum autor ou corrente me parecem desprezáveis, desde que e até ao momento em que se verifique a sua total impossibilidade de estimular o pensamento imaginativo e a heresia poética.
Teilhard pode ser tão fascinante e necessário como Marx, porque a leitura de qualquer deles, à parte as aplicações concretas e o aproveitamento oportunista do seu pensamento, é fonte do nosso próprio movimento mental, tenha ele ou não oportunidade de se projectar e aplicar na transformação concreta do mundo e da história.
A pedagogia da imaginação, em suma, não me parece prejudicial em nenhuma circunstância.
A tese defendida nestas paginas é, portanto, a de que nenhum pensamento livre é pernicioso, se o encararmos como estímulo e sequência de uma mesma aventura humana chamada Imaginação - qualidade vectorial que, por enquanto, distingue a espécie humana não só das outras espécies animais como das máquinas por ele - homem - construídas.
Enquanto não houver animal ou máquina capaz de imaginar, tal tese parece prestável como rumo de trabalho e estas páginas úteis a quem tenha o ofício de existir, quer dizer, imaginar.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, só parcialmente inédito, aparece como um «prefácio» a qualquer coisa, e que hoje francamente não sei o que seja: fica a data em que foi escrito e a parte publicada na respectiva data de publicação.