quinta-feira, 19 de julho de 2012

GEORGES BATAILLE : GALERIA DE «ESPÍRITOS INFERNAIS»


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GEORGES BATAILLE
E A SUA GALERIA DE «ESPÍRITOS INFERNAIS» (*)


Este texto de Afonso Cautela foi publicado, como recensão de livros, na revista «Vida Mundial», em 19.Julho.1968


• A LITERATURA E O MAL — Georges Bataille — Ensaio — N.° 3, da Col. «Ulisseia»—Trad. António Borges Coelho — Capa, Pedro Frazão — 264 págs.—40$00.


Georges Bataille, um dos ensaístas franceses menos dotados pelo senso do rigor geométrico e da claridade cartesiana nas ideias, de estilo refractário à transplantação idiomática, está agora editado em português e em versão de António Borges Coelho, que se deverá considerar fiel. A dificuldade dessa versão pode aquilatá-la quem leu o original e nele apreciou ao mesmo tempo que o atractivo das hipóteses formuladas sobre a literatura e sua génese «maléfica» o estilo hermético e fascinante em que estão escritas. O autor de «A Literatura e o Mal» trouxe, com efeito, um contributo de peso à polémica da Modernidade; ao mesmo tempo que enraizou a criação literária num húmus existencial de consciência bastante actual, vai filiar-se na mais remota linha esotérica ou hermética, da qual reproduz o espírito e a sintaxe...
Literatura onde não seja posta em questão a realidade básica da existência—a liberdade humana contra todos os constrangimentos —, literatura que não vá além das aparências epicuristas, do cinismo erótico ou dos enredos novelísticos, não pôde ter tal nome para Bataille. Sem perfilhar inteiramente esta tese, talvez de base e consequências metafísicas, uma conclusão no entanto se impõe: há que banir da «existência literária» as mitologias da frivolidade, as escolas do olho (nas receitas...), as estéticas da forma.
Ao estudar apenas escritores malditos (e na falta de muitos outros que interessaria inserir nesta esplêndida galeria de «espíritos infernais»), Bataille coloca a função da literatura fora das determinantes superficiais e contingências efémeras: concede-lhe, em contrapartida, o lugar quase absoluto de «liberdade livre», o único lugar onde é possível encontrar o terrível rosto da verdade.
Se a literatura é definida como o único esforço onde o indivíduo pode fazer prevalecer a sua própria lei, esquecido das leis gerais que regem o comportamento de grupo (dentro de qualquer sistema de normas), então o escritor será, por definição, o que infringe a norma e se coloca, por princípio, do lado do Mal contra o Bem, quer dizer contra a ordem estabelecida. Georges Bataille ao glosar o tema da «Literatura e o Mal», procura demonstrá-lo através de alguns autores que, pela rebeldia e pelo testemunho dessa rebeldia, foram exemplos frisantes da literatura que se alia ao Mal, naquela acepção que, vinda de Baudelaire e das suas «Flores do Mal», se encontra hoje talvez ultrapassada ou é, pelo menos, bastante discutível.
No fundo, a concepção de Georges Bataille radica num neo-romantismo mesclado de inquietações existenciais, demonstrado na análise que faz de Jean Genet, apoiado em Sartre e no seu famoso «Saint-Genet». Kafka é estudado em função da hostilidade que um realismo de estreita amplitude lhe votou, e Proust tem, nas palavras de Bataille, a sua máscara mortuária mais própria. Sade é visto com uma exaltação que roça o demoníaco e William Blake surge demasiado linear para a complexidade que sabemos ter sido a sua.
Emily Brontë abre o volume, e ficamos a pensar se, de certo modo, embora não figurem neste livro, todos os escritores que ultrapassaram o seu tempo, todos os «contemporâneos do futuro», não tiveram, por um lado ou por outro, pacto com o Diabo, e se a qualidade de visionários que lhes permitiu adivinhar o tempo para lá do seu tempo não constituiu sempre uma cumplicidade com o Mal, uma desobediência com o suposto Bem com que sempre a si própria se identifica qualquer ordem estabelecida.
A literatura entendida como heresia sistemática deita luz sobre os conformismos em que algumas vanguardas tão académicas e tão obedientes como as escolas que dizem combater se empenham. Um livro que vem dizê-lo, no estilo desalinhado mas fascinante em que Bataille o sabe fazer, parece-me de grande utilidade quando a arte está entre nós nas mãos de artífices e os inquéritos para a situar pretendem estabelecer programas a cumprir sem excepções, nem desvios, nem desobediência. Um livro com grande margem perecível mas altamente higiénico no nosso meio de Sénecas e celebridades em satisfeito conluio. E uma vez mais saberemos, para logo o esquecer, que «literatura ou é o essencial ou não é nada».
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, como recensão de livros, na revista «Vida Mundial», em 19.Julho.1968

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