segunda-feira, 30 de julho de 2012

JOÃO PALMA-FERREIRA E AFONSO CAUTELA: POLÉMICA 1959

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CULTURA IMÓVEL E CULTURA FASCINANTE (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, publicado no suplemento literário do «Diário Popular» (30-4-1959), faz parte de uma polémica então havida, entre o crítico João Palma-Ferreira e A.C., naquele jornal e nas seguintes datas:
16-4-1959 - «Uma Pretensa Geração Espontânea» , de J.P.-Ferreira
30-4-1959 - O texto de A.C. a seguir transcrito
07-5-1959 - «Resposta a uma Pasquinada» , tréplica de J.P.-Ferreira




«A propósito do artigo do nosso colaborador sr.dr. Palma Ferreira, publicado neste suplemento no passado dia 16, com o título «Uma Pretensa Geração Espontânea», enviou-nos o sr. Afonso Cautela uma carta a perguntar por quanto lhe pagaríamos a réplica àquele artigo. Claro que não respondemos e, assim, recebemos posteriormente a resposta, que segue:


NA (DES) GRAÇA DOS DEUSES
Costumam os deuses recluir-se no silêncio propiciador do prestígio, da segurança e da comodidade que lhes convém. Costumam os deuses não descer nunca até aos mortais do rés-do-chão, porque a sua morada é nas nuvens, nas cúpulas ou nos terraços dos arranha-céus. Costumam os deuses não deixar por mãos profanas o crédito da sua divindade. Mas um dia o Olimpo agita-se e, nascido de um trovão, Júpiter aparece e fala em nome da Corte. O diálogo que se pedia, em regra, não atinge a almejada cordura. Mas depois de tantos meses a chamá-los para a controvérsia (em que continuamos a acreditar, apesar de tudo), depois de tantas horas a falar de convívio com surdos, depois de a crítica tanto e tanto malhar em ferro frio, sentimo-nos compensados quando um dos deuses, deturpando embora o essencial do idioma que falamos, nos responde bugalhos onde nós disséramos alhos. Valha-nos isso e agradeçamos a João Palma-Ferreira, depois da refrega, este artigo, que o dele, aparecido no «Diário Popular» de quinta-feira, dia 16 de Abril de 1959, me incita a escrever.

ESCORREGAR NÃO É CAIR
Antes de saber ao certo o que o orador quis, com todo aquele discurso, preferimos adiar, inclusivamente para conversa no café e até que ele as venha exigir escritas e publicadas, as respostas de índole pessoal («negócios particulares e ninguém se pode neles imiscuir» - repara o critico, que nem por isso se inibiu de lá meter o nariz), as quais apenas reverteriam para uma recíproca auto-propaganda, de que não desejo servir-me e que não desejo facultar-lhe. Prefiro debater os assuntos de interesse geral que possam pescar-se dessa onda de fel que a caneta, sempre tão matreira, sigilosa, prudente, calculista e calculada do comentarista de poesia não fazia prever. «Não há ninguém que, um dia, na vida, não tenha escorregado numa casca de laranja escondida na valeta» - declara. Infelizmente chegou esse dia para o nosso peralta, cuja compostura deu finalmente em descompostura, cuja fidalguia se desembuçou, cuja peraltice se perdeu, não deixando dúvidas a ninguém de que, pelo menos, a água da valeta (onde todos um dia escorregamos, segundo ele) não era nada limpa.


QUO VADIS, ESCRITOR?
O ilustre crítico não se poupou a esforços para confundir o leitor, usando da pirotécnica sobejamente conhecida em baixa polémica: transcrições arbitrárias, comentários insólitos, uns pozinhos de humor para manter o «estado de graça», uns nomes de escritores vivos para chamar as atenções menos atenciosas, a aparente ordenação dada por um surto de alíneas, onde a única ordem é a alfabética.
Pergunto: Estarei, para responder, obrigado a usar métodos idênticos, sofística semelhante, análoga desonestidade, pespontando de comentários jocosos afirmações fragmentárias desse outro dos poucos artigos que o meu atacante tem a elementar prudência de publicar? Valerá a pena seguir via tão fácil de dar nas vistas e ouvidos? Claro que não. E para conseguirmos obter algum resultado de uma conversa que logo de início foi posta tão baixo pelo provocador, procuremos estabelecer ordem na confusão, responder com honestidade às desonestidades, hierarquizar os assuntos e, finalmente, levantar para plano condigno o que foi atirado ao charco.
No caso de o exegeta querer trepar a alguma banda, além de misericordiosa intenção de abrilhantar um magazine que começou de se embaciar com a retirada dos dez mil, isto é, com a retirada estratégica da falange de colaboradores de brilho e nomeada, - vejamos onde e por onde quer ele ir.

DEZ TOSTÕES PARA QUEM DESCOBRIR
Apesar de tão amofinado, logo no limiar, com o texto de análise e apologia que dediquei aos livros de Ernesto Sampaio e Herberto Helder («Diário de Notícias», 2/4/59), o pássaro não se contenta com tão pobre seara e, preferindo voltear até Agosto de 58, mete o bico noutra. Exuma o caderno Zero-um, (sobre que comete logo de entrada uma inexactidão de pouca monta, afirmando que «ninguém colabora nesse caderno além do próprio A. C.», quando na verdade é que nesse caderno colaboravam também José Augusto Seabra e Domingos Carvalho), e transcreve uma falta que, valha também à verdade, não vinha nada a propósito. Mas ele quis encher o papo e ter entretenga até de manhã. Deixemo-lo saciar-se e vejamos o que se pode mondar, já que nos permitimos ocupar toda a quinta-feira à tarde até de madrugada.
Que tinetas são, em suma, as dele? Na maioria, puras inexactidões, saltos no vácuo, contorcionismos de efeito polémico, pirotecnias, tiros disparados no ar com o alvo em toda a gente e em ninguém. Além destas, abaixo de zero, conseguem descortinar-se, com boa vontade, algumas ocorrências de sinal positivo, que vale a pena discutir para recíproco e público esclarecimento. De outras nos não ocuparemos.
As tinetas que vale a pena exarar são as seguintes:
a) Obnubila-o a possível existência de um novo ismo, descoberta que o magoaria imenso no caso de o tempo vir a confirmá-la;
b) Não perdoa que esse ismo possa ter um nome tão caricato como o de fotosferismo;
c) Dá «dez tostões (duas coroas) a quem conseguir ler a «Luz Central» (...) e encontrar lá (...) Amor.

UM PARÊNTESIS NECESSÁRIO
Antes de circunstanciarmos estas três alíneas coesas e complementares a que confinámos a nossa quota parte no processo, e visto que o adversário preferiu derramar a formulação do dele por cinco átimos díspares e disparatados, bramindo cada qual para seu quadrante - forçoso é que comecemos em a) até nos estatelarmos em e).
De a) a e), com efeito, decorre o processo que o juiz viciou logo na origem. Ele lá as fez e lá as baptizou desta maneira pimpona. Pergunta ele:
«Segundo o dito manifesto, como se poderá atingir essa pretensiosa transformação do Mundo?». E ele mesmo responde:
«Ê o senhor C. que enumera os vários processos mais rápidos e eficientes para a supracitada transformação.»
E, vai daí, eis as alíneas a salvarem de aflições um homem sem assunto. Porque a verdade é só uma: o dito senhor C. não enumerou, não enumera nem enumerará jamais, como o impetuoso atirador escreve e quer, nem sequer os vários processos de matar pulgas, quanto mais os de «transformar o mundo». O que escrevi, isso sim, e me prezo de escrever e pensar em todas as circunstâncias, é isto: «O dever do trabalhador intelectual não é o namoro das estrelas mas a luta, corpo a corpo, com as forças do mal, e a comparticipação efectiva, concreta, indignada na transformação do Mundo».
Uma afirmação destas autorizava alguém, porventura, a induzir os processos que porventura preconizo de «transformação do Mundo»?
Ao cérebro e à sensibilidade do maldoso rapazinho repugna esta minha exasperante mania de que a missão e luta do escritor é hoje a mesmíssima do homem comum e que «a poesia é uma arma» (Raul de Carvalho) sem perceber que os meios de lá chegar não são complexos, nem ínvios, nem subreptícios, nem sequer precisam de tantas alíneas como as que me atribui.
O meio é apenas um: a força da obra de criação que autenticamente o for. Uma obra de arte age por si. E por ela o escritor toma parte na «transformação do Mundo». O ponto está só (só!) em saber onde está esse escritor.
Para sintoma imediato (e sem ironia) eu diria que, depois de tantas provas a favor, o «escritor que importa», o «autêntico criador», o «revolucionário», o «portador, mensageiro e apóstolo da nova criação do homem» será todo aquele contra quem a sanha dos críticos bem educados se virar. O literato de boa educação não pode suportar a luz central, a literatura mal educada. É um teste infalível. E denuncia-se, da maneira que o estamos vendo: malcriadamente…
Como ele reconhece, num dos escassos relâmpagos de lucidez que atravessam as colunatas chilras da sua prosa «Afonso Cautela não desiste de de transformar o mundo a partir da literatura». Pois não, não desisto de transformar o mundo pela literatura. Mas por isso a literatura tem sido para o A. C. muito diversa coisa de «um piquenique da glória» (contestá-lo-á, senhor J. P.-F,?), tem sido aquilo que nunca foi, não é nem será para os que, não comendo os figos, no entanto lhes rebenta a boca, sabe-se lá porquê! Sempre o A. C. pensou (e procurou ser como pensava) da missão do escritor o que a seguir consta.

A MISSÃO DO ESCRITOR
Impossível acreditar nos escritores de ocasião, nos oportunistas, nos «estrategas da glória». A vocação de escritor, se existe, sobrepõe-se a todas as conveniências e circunstâncias, aos deveres de segunda ordem, porque é um dever absoluto. Nada lhe resiste, impele a moral e as mesuras, as tabelas e preços de uso comum, abre na sociedade uma lavra de fogo, chicoteia por dentro as hipocrisias institucionalízadas. Ser escritor é usar uma arma de sucessivas metamorfoses, do azorrague ao lírio, uma arma defensiva dos fracos e ofensiva dos fortes, sempre que necessário. Ser escritor é ter na mão uma pena amargurada mas crente, impulsiva ou mordaz, à qual se sacrifica tudo, pela qual se deu e dá tudo (mesmo quando se não tem e já não se tem nada) e que, dia a dia, exige tudo de nós, sangue e nervos, saúde e trabalho, a vida e a morte. A grande, a interminável muralha da china dos sofrimentos humanos nunca se despega dos olhos assustados ou exaustos do escritor.

LITERATURA DE QUINTAL
Foi isto, acaso e algum dia, em acto ou em conceito, ou sequer em intenção, ou sequer em suspeita, perto ou à distância, a missão do escritor para tão sisudo literato? Como não há-de ele admirar-se que eu entregue à literatura «a transformação do Mundo», se literatura ainda é e continuará a ser para ele a maneira de encaixar, na tribuna da ordem, os reptícios interesses da ordem (pessoal, tribal, partidária) e a remuneração regular do serviço? Claro que essa «literatura» nem para transformar o quintal das traseiras, quanto mais o mundo!...

ONDE A FALTA DE UM «S» PROVOCA CAMBALHOTA
Não contente em viciar a discussão na origem, atribuindo-me o que nunca constou das minhas atribuições, autoriza-se depois o autoritário colunista a despender induções como esta:
«Mas quem são os valores sem idade nem índole de cristalizar? (...) Em primeiro lugar e, sobretudo, são os neo-realistas».
Puro, simples e piedoso disparate, visto que ele leu em onde eu escrevera sem. Basta rever a escritura e isso se saberá. É claro como água que os «valores sem idade nem índole de cristalizar» só poderiam ser os jovens, os independentes, os não reconhecidos, os que a imprensa e edição comercial sistematicamente irradia (com as excepções agora vigorantes, sim senhores, que só vieram confirmar a regra e, talvez, manifestar até que ponto o manifesto do Zero e d'A Planície têm sido ouvidos e pressurosamente remediados…) – e nunca, e jamais os neo-realistas ou outros que nessa imprensa e edição largamente se encontram representados.
Mas o nosso marinheiro tinha de fazer saltar a truta — o neo-realismo — que lhe estava a causar impressão na manga, e não hesita. Só lamentamos que tão má pontaria manifestasse e que, na altura própria, quando abrimos no caderno Zero o debate sobre o neo-realismo, não tivesse aparecido com as mesmas artes de prestidigitador. Não diremos que seja agora demasiado tarde para voltar àquela lebre, mas fica com certeza um pouco fora da volta. Deixemos, pois, o neo-realismo de remissa, até que, esgotados outros objectos de maior virulência nesta controvérsia, a ele possamos voltar. Não deixemos de estranhar, contudo a inusitada condescendência que o nosso marinheiro dedica ao neo-realismo e o miríade de inexactidões que é o prato forte de quem se mete ao mar e tão pouco percebe da pesca.
Estranho também é que alguém, a quem nunca se ouviram palavras entusiásticas de aplauso e admiração para ninguém, venha insinuar-se como protector dos nomes sobre que nos cadernos Zero eu disse opiniões que são, no mínimo, responsáveis e que o opinioso cavaleiro (com suspeita mas ainda não comprovada linhagem nos da Távola e Graal) deveria ter o cuidado de discutir, se era acaso discuti-las o que lhe interessava.
Porque se mostra tão hipocritamente defensor de tanta gente sobre que, «em família», tão pouco favoráveis opiniões urde? Já que a expressão pública destes críticos, que têm no café uma opinião e na tribuna da tarde onde pontificam já a têm do avesso, é sempre a da mais ropiosa hipocrisia, não queiram ao menos iludir o leitor e passar por pobres lagartos, protectores dos «oprimidos» escritores que eu deliberadamente descasquei (quando e como entendi) ou a quem coloquei, por obrigação crítica, reparos ou restrições. Mas reparos ou restrições os que digo para dentro são os que escrevo para fora, para as colunas assinadas.
Poderá ser deselegante, desairoso, imprudente, mortal, expressar sobre contemporâneos vivos uma opinião. Mas não é, com certeza, partilhar da comédia hipócrita a que tais e tantos críticos se prestam, ao veneno das alfurjas literárias onde se destila mais veneno contra tudo e todos (à boca fechada, à porta fechada, sempre em circuito fechado) do que bicas escaldantes pelas goelas abaixo.
O Dr. João Palma-Ferreira, de seu natural apaziguador e evangélico, nunca deu «pancadaria» e assim se canoniza, de bracinhos para o céu, cioso dos que apanharam, de injusto chicote, a justa tareia:
«Em torno disto tudo, pancadaria em muitos que não se incomodam com isso, noutros que se incomodam mas não respondem por causa do escândalo e em alguns que não podem responder».
«Os que não se incomodam» é mentira. Há os que não sabem ler, que é diferente, ou os que não lêem, os que ignoram, os que encolhem os ombros, os que se julgam e nos julgam ainda em 1920, à espera da aurora boreal presencista ou de qualquer equivalente salvação do Mundo.
Há, sim, «os que se incomodam mas não respondem por causa do escândalo». E sem medo ao escândalo foi que o heróico defensor dos «humilhados e ofendidos» escritores - Tomás Kim, Jorge de Sena e os demais nomes que adrega de citar, ainda estou para saber segundo que critério e por que carga de água - queimando-se ele e deixando os outros na galeria a bater as palmas, veio para a arena.
Os outros, áfonos por constituição, sem pio além do lírico, ficaram admirando e bendizendo o discóbulo corajoso capaz de enfrentar a fera…


A ÚLTIMA ALÍNEA
Na última alínea o desvairamento atinge culminâncias:
«O Sr. C., em suma, (e que eu saiba) de tudo só salvou três coisas, para bem do literato, do irmão obreiro e da reforma do mundo: o Amor, Raul de Carvalho e o surrealismo».
Quem julgará ele que vai acreditar num tão arrepiante dislate? Se o hermeneuta parece tão lido nas laudas de quem quis atacar por que não cuidou de verificar que, positivamente e para não andarmos a jogar as palavras, de tudo o que confessei admirar (e não foi pouco, e não foi sem interesse desinteresseiro e apaixonado) salvei até hoje muito mais do que essa trindade a que o cruel justiceiro me quer cingir e condenar?
Não há dúvida, considero o Amor um princípio revolucionário se o virmos fundamentalmente como o oposto da Razão, contra toda a Razão, e Inteligência, e Esperteza, e Ciência, e Sapiência, e Técnica, e Artimanha, e Presciência, e Omnisciência, e Sabichice, de que sofre o mundo e, pelos vistos, os eruditos senhores dele.
Mas além do Amor, muito se salva. Também é verdade que considero Raul de Carvalho um «lírico maior», um «lírico da imaginação», um «poeta absoluto», um «profeta da absoluta terceira verdade». Mas não creio que seja único e várias companhias lhe apontei em Zero-dois. E também é verdade que considero o surrealismo capaz de salvar o mundo, em face da facilidade com que tantos o vão, de olhos tapados, levando à última desintegração; num mundo de inteligentes, de cientistas, de eruditos, de sábios, tudo gente lógica, formada, infalível, geométrica, x + y = z, num mundo de loucos inteligentes, ainda prefiro os inteligentes loucos que são os surrealistas; e que ninguém pode caminhar sem atravessar o surrealismo também me parece já verdade de cartilha elementar.
Mas onde é que tudo isto significa eu salvar apenas o Amor, o Raul de Carvalho e o surrealismo?

CULTURA ACADÉMICA E CULTURA FASCINANTE
Após a ginástica sueca a que o polemista nos obrigou, reatemos o fio das nossas três alíneas; isto é, a discussão de Luz Central, livro de Ernesto Sampaio que pretextou todo este colóquio.
Atribui-me o vidente, por excesso de velocidade, uma pretensão que francamente não tive: a de criar um ismo. Não pretendi tal e muito menos o pretendeu Ernesto Sampaio, porque seria fundamentalmente contraditório -- mas quem poderá deixar de ser contraditório, se se mete a discutir com os esculápios da lógica, da crítica, da filosofia do rigor, que só conhecem a lógica formal? -- pretenderem mais uma teoria, mais uma metafísica, mais uma doutrina duas pessoas que procuram precisamente a abolição da cultura que tem permitido tantas e desvairadas teorias, metafísicas, doutrinas.
Falar eu de uma «nova teoria da Criação Humana» não passou de uma condescendência do mesmo tipo da que levou Ernesto Sampaio a dividir o livro em três tipos de texto - quando nós sabemos só existir ali um texto, uma unidade perfeita de tudo - , não por sua vontade mas conforme a terminologia académica, querendo significar (aqui e no artigo que escrevi) por académica a cultura que, não for «fascinante», termo este muito mais adequado do que qualquer dos ismos propostos e que Ernesto Sampaio usou, já depois de escrito, em 13 de Outubro de 1958, o meu artigo, só aparecido na Imprensa decorrido quase meio ano...
«Cultura Fascinante», de facto expressa com muito mais propriedade o nosso intuito, que não é já o de substituir uma teoria por outra teoria - dentro do mesmo tipo cultural - mas uma cultura por outra cultura.
Falei de fotosferismo e de gravitacionismo como poderia ter falado de essencialismo, de nuclearismo, de qualquer ismo que tivesse a virtude (como parece ter tido) de afitar as orelhas dos que só com ismos as afitam. Usei um ismo, em certo pendor irónico, principalmente para isca. E se o leviano senhor leu mal o que escrevi, releia: «Para prática da crítica futura, à volta com o catálogo dos «ismos», aqui lhe noticiamos o novo «ismo». Para prática da crítica passada, presente e futura - repito e completo agora, - foi que usei a ingenuidade do «fotosferismo», isca que o ratinho mordeu e que, antes de o ter feito guinchar a ele, já me fizera rir a mim.

O PONTO VITAL DA CONTROVÉRSIA
Espera-se que da «cultura fascinante» resulte nova tromba de água do tempestuoso senhor, e então haverá oportunidade de entrar no que afinal interessa, desempeçando a conversa da teia de mesquinharias a que o nosso argonauta a conduziu. Ponto a discutir : a necessária substituição da cultura morta pela cultura viva, da cultura académica pela cultura fascinante, o norte pelo sul, o gelo pelo fogo, a Razão pelo Amor.

ALGUNS PASSOS DE DANÇA
Se o doutor não gostou do fotosferismo, chame-lhe o que quiser, na certeza de que todas essas expressões poderão não dizer a verdade (nunca a verdade pede estar num ismo!) mas dão dela a imagem parcelar, aproximativa, convergente, que é necessário ir ajustando até à coincidência, no centro, do Todo com o Todo: «Todo o conhecimento intelectual é falso: só a vida conhece a vida» - disse alguém, ou, se ninguém disse, digo eu. Os ismos que poderíamos indicar ajudam em linguagem dialéctica a fazer perceber a hermética sabedoria que se preconiza e onde chegaremos com tempo, peso e medida. A luta é desigual, porque se trata de combater com as próprias armas que queremos destruir: as dialécticas. Prefaciaremos, contudo, até onde for possível, a Alegria, a Dor e a Graça — trilogia inconfundível que Leonardo Coimbra também combinou num só livro.
«Coincidências astrológicas» — dirá com um sorrizinho fungado o lógico e racionalista crítico. Pois bem: preferimos a sabedoria dos astros e das bruxas, ao bruxedo e à astrologia barata da pseudo-crítica que não ata nem desata, que não vê, que não viu, em Luz Central o que até Alfredo Margarido viu, na única ou numa das únicas vezes em que acertou: «À procura de uma fundamentação mais extensa anda Ernesto Sampaio, com a sua «Luz Central». (In «Diário ilustrado», 31/Dezembro/58).
Para argúcia tão funda como a do autor do Poema para uma Bailarina Negra, foi um acertar em cheio no alvo. Só talvez lhe escapasse que a «cultura morta» em vez da «cultura fascinante» não permitiu à sua bailarina mais do que dançar em pontas... Vem a propósito relembrar que o referido poema, sacrilegamente comparado ao de Herberto Helder nas tertúlias do Rossio, muito aplaudido pela crítica adstrita, bairrista e muito «inteligente», não passando de uma ficção à base de elementos estilizados e compósitos, sem integração numa vivência, postiço, inautêntico, incaracterístico e despaisado, mau grado a muita paisagem de cenário que por ali se pinta; não tem, embora quisesse ter, força de rio nem de contra-corrente equatorial. Não derruba sequer um dedo do monstro (a «cultura morta»), que continua de cócoras e dormindo, enlevado, nos primores artísticos, arquitectónicos e monumentais do seu fabuloso passado e do seu abastecido presente. Não é uma bailarina negra a dançar numa boite de Paris ou numa adega típica do Bairro Alto o que se exige do poeta, se acaso o poeta quisesse virar do avesso, coma devia, o casaco ao monstro. O que ele teria era de transportar a negra, com armas e bagagens, isto é, com habitat, ascendência e cultura para a Língua portuguesa. E só então chamaríamos a isso um caminho original (percurso de origens) sobre os caminhos andadiços de uma cultura que nunca foi original nem «fascinante», porque foi sempre o pesadelo do Passado (a História) ou a insegurança do Futuro (a Metafísica) a abortar a alvorada de toda e qualquer experiência inaugural.
«Fascinante», sim, chamamos nós ao encargo de destruir, com armas de sangue, luz e nervos, primeiro a dialéctica de que uma civilização inteira se nutriu, e depois a civilização que serviu de esqueleto, de suporte sangrento e de torre de enforcados à dialéctica. Demasiado «fascinante» é tal encargo para aceitarmos qualquer habilidade estilística, sofística ou «científica» como suficiente ou sequer razoável morbo desintegrante. O sangue arterial que substituirá o sangue venoso em intensa circulação por quase todos os interstícios e órgãos da nossa prezada sociedade racionalista e democrática, (incluindo as orgânicas, tirânicas e ditirâmbicas das Américas Central e do Sul em desaparição) ou da Europa e colónias europeias dos continentes africano, australiano e asiático (em decomposição) — o sangue arterial que virá, só pode brotar de uma aventura total, de um mergulho absoluto muito abaixo da corrente da civilização em que os críticos e outras pessoas inteligentes navegam.


A HIPÓTESE HEURÍSTICA
Quando Ernesto Sampaio publicar o seu novo livro - Cultura Fascinante é precisamente o título - cá estamos para voltar a discutir dialecticamente o que, no fundo, não admite dialécticas, mas honra os críticos em exercício e seu cego peregrinar sobre cadáveres, sobre piras mortas, sobre suspiros que já nem os corvos nem a noite ouvem.
Limitar-me-ei, então, ao que fiz com Luz Central: lançar sobre ele uma das hipóteses a cuja luz poderemos interpretá-lo. Pode mesmo ser que Ernesto Sampaio esteja ou venha a discordar da hipótese proposta por mim. Mas é uma, entre outras que deveriam ter surgido, que um livro com o mérito do de Ernesto Sampaio deveria ter feito surgir, não se desse o caso de os críticos dormirem a sono solto e patentearem a mais crassa das indiferenças perante um livro revolucionário, desafiante, magnético e arrebatador como é Luz Central. Se não lhes agrada o fotosferismo, olhem ao menos com olhos de ver para o que lhes está diante dos respeitabilíssimos narizes.

A NOTA FINAL: ÚNICA AFINADA
Vamos finalmente ao pescoço da ave, vamos findar por onde a chilreada começou. E, diga-se, pela única nota, afinada da sinfonia:
«Afonso Cautela (...) parece querer manifestar ou, pelo menos, denunciar o espírito de uma "geração» - afirma o prometedor ensaísta.
Finalmente, depois de tantos tropeços e aleijões, de tanta má-fé e de tanta frivolidade, o pássaro poisou certo e disse bem — quis eu, de facto, manifestar o espírito de uma geração. Com o caderno«Zero» e especialmente com as «mensagens de abertura» (assim as denomina o meu opositor) que estavam previstas para os cinco números, queria ir «reflectindo os anseios de outros jovens», como ele acentua, e nem só os meus. Preocupei-me, de facto, menos em falar no singular do que no plural. E o plural, cuja força de aglutinação, na vida intelectual, é mais forte, é a geração, comunidade que, contrariando os egoismos de grupo, os egoismos de bairro, os egoismos de partido e até os egoismos entre gerações, pode constituir o degrau da solidariedade, do convívio que preconizamos.

AFONSO CAUTELA

domingo, 29 de julho de 2012

ANDRÉ BRETON «SANTIFICADO» POR CLAUDE MAURIAC

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SURREALISTAS E MILIONÁRIOS DA CRENÇA

CRIME NA CATEDRAL (*)


(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», coluna «Leituras ao Acaso», em 11.4.1972

O tradutor da peça «Murder in the Cathedral» (edições Delfos, Lisboa) propos-se trazer à cena, num posfácio, três reis magos: Artaud, Jarry e Jean Genet.
A intenção - vê-se! - é escrever um posfácio; depois, patentear erudição e mostrar aos surrealistas (naturalmente!) que «ele também sabe coisas»; finalmente, aproveitar os mortos que já não podem piar ou um vivo, Genet, que está lá longe e tem mais que fazer.
E é assim que, a propósito de catolicidade, de não versilibrismo, de neo-classicismo, do «Poetry and Drama» e outras douradas misérias do senhor T. S. Eliot, se arrancam, sem mais nem menos, à paz dos túmulos dois poetas - vivos! - cujas misérias e Miséria nunca tiveram nada a ver com os versos de ninguém e muito menos com os versos dos «milionários da Crença»; e muito menos com os dramas em verso clássico de T. S. Eliot.
Aparentemente inédita, a manobra de anexação é velha e revelha. De vez em quando, o crítico faz mão baixa dos tesouros profanos e em nome da fé, da esperança, da caridade, não deixa o pio crítico e pio senhor de aproveitar a caridade e a ocasião para surripiar dali - da Poesia, pais de onde havia de ser? — algo em benefício da Fé.
A esse respeito, os «Vingt Ans de Surréalisme (1939-1959)», livro de Jean Louis Bédouin, publicado em 1961, informa largamente, relatando o que têm sido as operações mais ou menos tácticas e aritméticas - subtrair para adicionar — a que se dedicam ou dedicaram, entre outros Pierre Klossowki, «a propósito do «deísmo» de Sade»; do senhor Dom Claude Jean-Nesmy que, segundo Bédouin, «se esforça por demonstrar o valor finalmente religioso da mais oficialmente ateia das escolas poéticas: o surrealismo»; Michel Carrouges, cujo livro André Breton e os dados fundamentais do surrealismo e em especial o capítulo «Surrealismo e Esoterismo» tem dado origem ao que Bédouin designa de «tentativas apologéticas abusivas»; tudo isto, além das já célebres espoliações sobre o legado de Jarry (que o pós-faciador referido repete) e o de Rimbaud, que nas mãos do senhor Claudel ficou reduzido a «místico em estado selvagem».
Confirmando, transcreva-se do livro citado, um parágrafo do manifesto colectivo ali reproduzido - «A La Niche des Glapisseurs de Dieu», subscrito por mais de cinquenta nomes :
«Mencionemos algumas destas tentativas, aliás conhecidas: em Julho de 1947, na revista «Témoignagne», um beneditino, Dom. Claude Jean-Nesmy, declara: «O programa de André Breton testemunha aspirações que são inteiramente paralelas às nossas. «Em Agosto, M. Claude Mauriac escreve na Nef, a propósito de «Fata Morgana»: «Um cristão não teria falado de outra maneira». Em Setembro, M. Jean de Cayeux proclama na «Foi et Vie» que tenciona subscrever, na medida em que elas poderiam estar de acordo com as intenções do movimento ecuménico, várias proposições enunciadas num artigo de um de entre nós. Depois houve nos Cahiers d’Hermès o penetrante estudo de M. Michel Carrouges: «Surrealismo e Ocultismo», que só tomou todo o seu sentido, entendemos seu sentido apologético, depois do recente aparecimento da obra do mesmo autor « La Mystique du Surhomme». Houve em «La Table Ronde» as elocubrações de M. Claude Mauriac que não se auto-reconhece talvez cristão mas todo se agita à ideia de intitular um ensaio futuro: Santo André Breton. Que bela farça!»

A. C.

ANDRÉ BRETON E JACQUES MONOD EM LINHA

breton-2> notas de leitura - as correspondências imaginárias - as correspondências mágicas - surrealismo & surrealistas - pistas de pesquisa

AS LEIS DA IMAGINAÇÃO: O ACASO OBJECTIVO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário - «Literatura e Arte» - do «Diário Ilustrado» (Lisboa), em 29/3/1972

Relendo, ao mesmo tempo, «O Amor Louco», de André Breton, na tradução de Luísa Neto Jorge e «O Acaso e a Necessidade», de Jacques Monod, algumas ideias ficam para futuras investigações do Desconhecido. Do Impossível.
“Para a maioria dos espíritos literários, o fantástico define-se como uma violação das leis naturais, uma aparição do impossível”-, diz Louis Pauwels, que logo a seguir comenta e rejeita aquela definição tradicional: “Junto ao insólito e ao curioso, fantástico seria um aspecto mais do pitoresco. Ora investigar o pitoresco nos parece uma actividade ociosa e, resumindo, uma ocupação burguesa. Segundo o nosso parecer, o fantástico não é jamais uma violação, mas uma manifestação das leis naturais. Surge do mesmo contacto com a realidade, com a realidade observada directamente e não filtrada através dos nossos preconceitos e prejuízos, velhos e novos.»
Temos então que, ao contrário do assente e aceite, o fantástico não é uma violação das leis mas um alargamento dessas leis naturais até onde os preconceitos e prejuízos não deixavam ir a imaginação (a razão imaginadora).
Não parece abusivo, pois, considerar que Jarry com a Patafísica, Breton com o surrealismo, Pauwels com o realismo fantástico, Jacques Monod com as heresias de biólogo heterodoxo, estão prolongando e não negando a ciência.
Não é mera questão de palavras chamar«ciência» à ciência A, o que, de A a Z merece tal nome. Não é indiferente e a diferença é importante. Porque está em jogo o reconhecimento «científico» de coisas como as leis da excepção (Jarry), a lógica do contraditório (Lupasco), e a dialéctica da individualidade criadora (anarco-utopismo). No fundo, trata-se de (re)-descobrir a imaginação e suas leis. Ora o que uma concepção tradicional da ciência recusa é que haja leis para a imaginação e que a liberdade possa ter a sua gramática.
Tal como Breton ensina em «O Amor Louco», pode trabalhar-se o acaso e pode trabalhar-se para não sermos cegas vítimas do finalismo fatalista e determinista.
Pode-se ir ao encontro do livre arbítrio. Pode violentar-se a liberdade.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário - «Literatura e Arte» - do «Diário Ilustrado» (Lisboa), em 29/3/1972

O ABJECCIONISMO EM 1963 - II

1-3- ética-1-

O SURREALISMO: UMA ÉTICA EM ACÇÃO
CALAR EM ABJECÇÃO É A ÚNICA FORMA DE FALAR (*)


Tavira, 10.Março.1963

Quando uma ordem colectiva se sobrepõe totalitariamente à ética individual, deixa de existir ética, no verdadeiro sentido desta palavra, para haver política, isto é, uma ética imposta, uma ética-para-uso-de-muitos.
Uma ordem totalitária, monopolizando o direito individual de ter cada um a ética que lhe aprouver, impossibilita, em nome de uma pseudo-ética, de uma ética-para uso-de-muitos, todo e qualquer acto de carácter genuinamente ético. É a ausência total de liberdade. É a sociedade totalmente fechada. É a total abjecção (1).
Ético (mas suicida) continuará, no entanto, a ser o acto de revolta dentro da ordem totalitária, acto que tenta possibilitar a percentagem mínima de eticidade (obscenidade) que neutralize a carga máxima de abjecção (2).

É assim que o surrealismo, fundamentalmente uma ética em acção e fundamentalmente acção ética, aparece, sob ordens totalitárias, na forma de um desaparecimento, falando em silêncio. Numa sociedade fechada, o surrealismo existe latente, manifesta-se sob a forma de um vácuo ou ausência.
O surrealismo, perante aquilo que diagnostica e designa de Abjecção, aparentemente abdica, desiste, cala-se, e neste sentido parece colaborar Nela. Só na aparência, porém. Calar – reconhece o homem surrealista – é ainda a única forma de falar, e não colaborar é ainda a única forma de colaboração, a única forma de acção não identificável com reacção.
A meu ver, seria esta existência virtual do surrealismo que alguns surrealistas, em Portugal, teriam pressentido sob a designação de abjeccionismo, termo cuja ambiguidade lhe define o conteúdo também ambíguo: «o que é não aparece e o que aparece não é», segundo Cesariny.
Abjeccionismo seria a forma que teria de assumir, nas condições que se sabem, um movimento estruturalmente revolucionário (totalitaria ou totalitaristicamente revolucionário) como o surrealismo.
Assim é que, enquanto alguns neo-realistas foram fazendo romances proletários para a burguesia, o surrealista manteve-se, a maior parte do tempo, em silêncio, querendo com esse silêncio dizer muito mais do que a algazarra dos outros todos.
A aparente abstenção do surrealista é, no fundo, a única maneira de ter realmente agido em vez de reagido.
Proliferar editorial e industrialmente, quer com crónica da alta burguesia à Joaquim Paço de Arcos, quer com romances folclóricos à Aquilino, quer com ciclos ruralistas à Alves Redol, quer com histerias pseudo-místicas à Régio, quer com narrativas cripto-existencialistas à Virgílio Ferreira, foi sempre, para o surrealista, colaboracionismo e do pior (4).
O que levou muitos surrealistas, em climas totalitários ou semi-totalitários, a abster-se não digo de escrever mas de publicar (a suicidar-se política, literariamente ou realmente), foi, não há dúvida, uma violenta exigência ética, uma ardente necessidade de ar puro (não viciado).
Por isso, são eles talvez os únicos homens em que o homem ainda se pode reconhecer. Dir-se-ia que o surrealista foi o que conseguiu manter-se livre onde todos se submeteram à servidão, revoltado onde todos se conformaram, incorrupto onde todos se deixaram corromper: o que, apesar de abjecto, o reconheceu a tempo e se manteve irredutível às forças e formas suplementares da Abjecção. Há no surrealista uma ânsia de pureza que não deve nem pode confundir-se com nenhuma espécie de puritanismo. O surrealista sabe que está mergulhado na Abjecção e que pode fracassar no esforço que fez, faz ou fará para se libertar dela. No entanto, esse esforço - a revolta, a permanente revolta - é que importa saber se existe, ou se, mais cedo ou mais tarde, directa ou indirectamente, vem a ser substituído por qualquer conformismo.
Os surrealistas têm, de certa maneira, direito a sentir-se um grupo à parte (3) . Enquanto movimento contra todos os tipos de alienação , enquanto Ética em acção e Acção ética, enquanto Revolução total, o surrealismo é único no nosso tempo.
Mais do que nenhum outro movimento , portanto, tem o surrealismo sido vítima dos climas totalitários, promotores e protectores de todas as formas de alienação.
Outras revoluções pode ter havido na filosofia, nas ciências, na psicologia, nas artes, na literatura, na economia, na política, na pedagogia.
A Revolução, porém, aos surrealistas pertence.
A Revolução, no mais geral e profundo sentido, a Revolução que abranja o homem, simultaneamente na sua unidade, na sua totalidade e na sua identidade, só o surrealismo a tentou. E só ele continua a tentá-la.
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(1) Verdade seja que, se tudo estivesse preparado, por parte da ordem política que me contém, para me conduzir individualmente à liberdade – padrão único de eticidade – talvez não tivesse mérito «moral» consegui-lo.
Quando tudo conspira para me alienar, quando uma ordem totalitária ou semi-totalitária torne suicida a minha exigência de liberdade, é que o meu esforço tem verdadeiro mérito «moral», pois começa a ser um esforço de afirmação individual contra a negatividade da ordem colectiva e colectivista.
Se aquilo que por imperativo ético, ou o que deve ser não coincide obviamente com o que é, cada um terá que se realizar nas circunstâncias que lhe é dado viver.

(2) Só pode haver um critério de eticidade e esse critério é a liberdade. Sou tanto mais humano quanto mais livre for. Humanizar-me é libertar-me. Quanto mais liberdade perco (quanto mais me alieno a outrém ou a outra coisa) mais humanamente me empobreço, depaupero, degrado.

(3) Todo o humanismo tende para a teorização, explícita ou implícita, de uma aristocracia (o padrão humano ideal): aristocracia espiritual ou cultural, política ou militar, de sangue ou de dinheiro, em qualquer caso aristocracia.

(4) Muitos humanismos se têm preconizado no papel. Mas os humanismos não chegam para humanizar o homem. Alguns actuam mesmo contra o homem.
Uma doutrina não é um comportamento, um sistema não é uma conduta, uma teoria não é um acto. As ideias que eu perfilhe, só por si, nada garantem do meu modo de ser. Porque as ideias podem existir num mundo á parte da minha existência. As ideias em nada garantem o meu tipo de comportamento.
«Uma doutrina não vale pelo que os homens fazem dela, mas pelo que ela faz dos homens.»

O ABJECCIONISMO EM 1963 - I

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VOLTAS E REVIRAVOLTAS DO ABJECCIONISMO

COMENTANDO UMA FRASE DO SURREALISTA PEDRO OOM COM CITAÇÕES DE ANDRÉ BRETON E CESARINY


Tavira, 7 de Março de 1963

Verificada (por alguns) a Abjecção, pergunta-se: há ou não há diferença entre:
1º - os que aceitam, servem (servilmente servem), apoiam, defendem e prorrogam a Abjecção
2º - os que, embora nela nascidos e mergulhados, não agem nem reagem contra, indirectamente colaborando nela
3º - os que (suicidando-se, virtual ou realmente) lutam por uma gravidade em sentido contrário à da física: isto é, de baixo para cima.
Pergunta-se ainda: poderá falar-se de "excesso de pureza" em André Breton?
O que explica, justifica e valida todo o surrealismo não será exactamente esse ímpeto para cima, essa impulsão directamente proporcional à opressão?
Poderá sem esta noção axilar ou axial de "bem" (Amor=Liberdade=Verdade) existir experiência ou actividade que mereça o nome de surrealista?
A exigência de “pureza" (pureza entendida como libertação das
impurezas) está, a meu ver, certa. Que daí se depreenda , inevitavelmente, a excomunhão dos não-puros, é que já não. Porque o problema não se põe em termos antinómicos de "puros" e "não-puros"; põe-se em termos dialécticos de purifícação ou libertação, de movimento para estados cada vez mais livres e mais puros.
O que importa, no seio da Abjecção, é o "índice de obscenidade" de um acto ou de uma acção. Quanto mais obsceno (quanto mais violentamente agressivo contra a Ordem ou Abjecção Vigente) mais moral, isto é, "melhor". O índice de obscenidade há-de variar, de indivíduo para indivíduo e, no mesmo indivíduo, conforme as circunstâncias ambientes e as disposições do sujeito. Cada um só terá de saber não onde finda a Abjecção (o que é Impossível) mas onde começa a contra-Abjecção e até onde ela sobe.

Quando o surrealista Pedro Oom pergunta "O QUE PODE FAZER UM DESESPERADO QUANDO O AR É UM VOMITO E NÓS SERES ABJECTOS?"
pergunto eu: - Que amplitude terá aí a palavra "nós"?
- Refere-se esse "nós" aos três tipos de participação acima referidos? Ou a dois deles? Ou apenas a um? Qual ou quais?
Se, indistintamente, todo e qualquer que nasce num meio determinado é e será simplesmente o que o meio dele e nele determina, estaríamos perante um determinismo - o que nem o surrealismo nem o abjeccionismo, ou ambos conjuntamente, creio aceitarem.
André Bréton por várias vezes afirma a "transcendência” do espírito sobre a história, da vontade humana sobre a fatalidade ou facticidade dos acontecimentos, o valor liberdade ou livre-arbítrio como supremo.
Postulando o livre-arbítrio, é indispensável reconhecer a soberania da vontade humana e que a vontade de uns faça deles algo que os diferencia dos outros.
Logo, a pergunta formulada por Pedro Oom tem, a meu ver, esta resposta:
Verificando-se que:
- nem para todo o ar é um vómito, e os que o reconhecem é porque têm a percepção de um outro ar
- nem todos se considerara abjectos, e só têm disso a noção os que, não tendo ou não querendo ter algo de abjecto, percepcionam a noção do não abjecto
- o que um homem desesperado pode fazer, quando o ar (para ele) é um vómito e ele (para ele) um ser abjecto, é :
1º - Manter-se desesperado, isto é, manter a noção de vómito (que há) e do abjecto (que é)
2º - Passar do desespero ( da noção do desespero ou vivência da angústia) à revolta (à acção) agudizando os contrários
3º - Passar da revolta à revolução, pela síntese dos contrários ou acção obscena (acção poética, criadora ou absoluta)
Eis o motivo por que a palavra "abjeccionismo" me parece insuficiente para expressar toda a amplitude deste esquema trifásico, circunscrevendo a totalidade do mesmo a uma fase - a lª - e correspondendo-lhe, por isso, um conteúdo negativo ou niilista, de abdicação e desistência. Ora não me parece que a desistência frontal e definitiva esteja nos propósitos dos que podem reclamar-se de "abjeccionistas”. Seria preferível, a meu ver, falar-se de uma "fase abjeccionista" de um processo muito mais vasto, e não de um abjeccionismo.
Assim, à fase abjeccionista", fase inicial ou do acento agudo, seguir-se-ia a fase intermédia ou crítica (a do acento grave) e finalmente a fase esdrúxula, obscena, criadora ou revolucionária.

O termo “abjeccionismo", além de me parecer, no caso indicado , restritivo da intenção última dos próprios abjeccionistas, creio que induz, por outro lado e devido à terminação em ismo, o observador comum em erro. Ele suporá, como tantas vezes supôs e continua supondo do "surrealismo*, tratar-se de mais uma doutrina, de um sistema, de uma filosofia, de uma escola, de um humanismo, de uma estética, etc.
Em compensação, uma das vantagens digamos públicas ou publicitárias da designação de "abjeccionismo” sobre a de "surrealismo", é deslocar o acento tónico da epistemologia para e ética, como convém. A problemática do real e do não-real, do material e do espiritual, dos monismos e dos dualismos (que a palavra "surrealismo" logo evoca), parece-me, com efeito, uma excrescência não só das metafísicas
tradicionais como das anti-metafísicas modernas. Nem metafísico nem anti-metafísico, nem materialista nem anti-materialista, etc., etc. - eis o que o Poeta (ser simultaneamente físico e metafísico) pode afirmar. Bizantinas questões me parecem as epistemológicas, vistas deste ponto de vista: a realidade Poeta.
"Eu sou dos que não acreditam nela” – diz Pedro Oom, referindo-se à "estética surrealista”. Eu diria que também não. Quando tudo se referir ao Poeta e não às "produções poéticas", a Estética ruirá. Perante o Poeta - a realidade a partir da qual o Real (todo o real) se cria - as especulações abstractas era torno de "poemas", "quadros , etc. deixam de ter sentido e consumar-se-á, creio eu, e afirmação de Breton, renegada por ele mesmo: "Toda a arte é estupidez", devendo acrescentar-se: toda a arte, e principalmente toda a Estética (ou teoria da arte) é estupidez (uma vez que colabora numa das mentiras capitais da ordem reaccionária (ou Abjecção), a mentira de dissociar o homem - que é unidade, totalidade e individualidade - em uma ou em várias das suas actividades (neste caso a actividade dita artística).

Antes de conhecer as opiniões de Pedro Oom, pensava eu (de acordo com as escassas referências de que dispunha) que "abjeccionismo” só diferia de "surrealismo" na maneira de parecer e aparecer aos olhos das gentes, continuando no fundo e no entanto a ser a mesma coisa.
Supunha eu que a única diferença era entre o meio que refractava um e o meio que refractava outro, quero dizer, entre um contexto político-social mais ou menos demo-liberal e um contexto totalitário, entre uma sociedade, apesar de todos os diques e tampões, relativamente aberta e uma sociedade hermética e literalmente fechada.
Supunha eu que "abjeccionismo" seria assim o nome e forma peculiares assumidos pelo surrealismo em vaso fechado.
Perante as afirmações de Pedro Oom, vejo que atribui ele ao "abjeccionismo” um conteúdo (ligeiramente embora) diferente do do surrealismo. Não difere só na forma de parecer e aparecer, mas, no fundo, na própria forma de ser.
Tratar-se-ia de uma heterodoxia, entre as muitas a que, na opinião de Cesariny (3-4-1959, in «Diário de Lisboa») a ortodoxia surrealista teria dado origem.
Deste ponto de vista, porém, restringe-se ainda mais a acepção atribuível ao "abjeccionismo". Se a direcção "abjeccionista" é uma entre os milhares de direcções em que a ortodoxia surrealista pode disparar, dir-se-ia que o "abjeccionismo" é Pedro Oom e Pedro Oom é o "abjeccionismo". Pessoal e intransmissível, a designação teria assim uma amplitude estrita, definida, limitada.
Mas um problema subsiste acreditando, com Cesariny, que o surrealismo, enquanto ortodoxia, fez nascer heterodoxias - algumas identificáveis não já com grupos de indivíduos mas com individualidades, elas só e elas próprias. Acreditando nisto necessário é inventar uma designação global que abranja não só o surrealismo e seus derivados, mas também o surrealismo e seus afluentes, não só o dadaísmo de que, por sua vez, o surrealismo derivou, mas todos os movimentos confluentes ou inter-fluentes, movimentos ou autores que, através da história, representam a anti-História, que, no meio da Abjecção mas contra a Abjecção, mantiveram a palavra de revolta ou de liberdade. Dadaísmo-surrealismo-abjeccionismo: Eis três rios que podem seguir leitos diversos, mas que partem todos da mesma nascente e apontam todos à mesma foz. Outros rios-afluentes haverá, antes, entretanto e depois desses, convergindo na grande Corrente ou Rio Subterrâneo. E para este há um nome: O OBSCENO.

Pedro Oom opõe Angústia e Abjecção e, a meu ver, confunde planos: o psicológico e o histórico.
A Abjecção existe, principalmente, nas instituições e organizações, na sociedade tal qual está e tal qual a foram fazendo.
A angústia, por outro lado, só pode existir na mente individual. A alternativa, pois, parece-me ser não entre conduta abjecta e conduta angustiada, mas entre conduta abjecta (participação individual na Abjecção colectiva) e conduta obscena (oposição estritamente individual à Abjecção colectiva). O índice de obscenidade de um acto, acção ou conduta é que define o seu valor ético.
A angústia, por outro lado, é uma resultante psicológica inevitável em todo o indivíduo que, primeiro se revolta, depois se desespera e por fim se angustia.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

ANTONIN ARTAUD:TRISTE RETROSPECTIVA AC

buzz-ARTAUD

sexta-feira, 27 de Julho de 2012

ANTONIN ARTAUD:
UMA EXPERIÊNCIA INICIÁTICA
QUE SE IGNORA COMO TAL

Arrumado na estante dos filósofos ( e filosofias) existenciais, Antonin Artaud marcou o Trajecto AC por ser uma encruzilhada de caminhos onde convergem e de onde divergem os que, de um modo geral, designei por «Errâncias da Razão».
E neste sentido, o surrealismo está potencialmente presente.
Encarado mesmo objectivamente, a principal característica de Antonin Artaud será a de não se enquadrar em nenhum ismo mas, pela vivência de duras provas e provações (experiência que se diria iniciática) vai abranger uma rede de linhas e de interligações que só ele, pela experiência vivida, estava em condições de (d) escrever.
Existencial e surreal fundem-se em Antonin Artaud.

*

http://www.respire-asbl.be/Extrait-de-Pour-en-finir-avec-le
http://www.dailymotion.com/video/x9idj5_antonin-artaud-pour-en-finir-avec-l_webcam

TEMAS DA CASSETE VÍDEO:

Poema para além do Tempo a Antonin Artaud
Pour en finir avec le jugement de Dieu
Les Epiphanies , de Henri Pichete

*

1-1-tragico-1225 caracteres [6-3-1992]

FRIEDRICH NIETZSCHE & ANTONIN ARTAUD: O INESPERADO LINK

Porto, 1959

# Leituras A.C. em 1959: «Origem da Tragédia» e «O Teatro e o Seu Duplo»
# Intuições AC *****

Pelo trágico passam apenas linhas rectas, que são a mais curta distância entre dois pontos.
O trágico (poesia em acção) é a metamorfose do humano para o transumano, do físico para o metafísico, do natural para o sobrenatural, ponte entre o consciente e o inconsciente, o sacro e o profano, a vida e a morte.
O trágico é a voz de quando já não há palavras ou há apenas palavras.
O trágico, poesia de aproximação, entre actor e espectador, entre os espectadores, entre os idiomas, entre as antinomias, entre as distâncias da terra, entre os tempos da história, o trágico reintegra o mundo a desintegrar-se.
O trágico, primeira força mítica de um tempo sem mitos ou de mitos crus e álgidos, degenerados, prostituídos, une o coração do homem ao coração da divindade, o coração das pátrias ao coração do universo.
Em todos os pontos da terra, nas linhas de fractura e combate, linhas tortas por onde o poeta escreve direito, nas cavernas-refúgio da nova religião [???], grupos de teatro preparam, no quotidiano, a reabilitação do eterno; preparam, queimando-se, a massa ardente de uma mitogonia nova [????] fundam, reconstituindo-a nas pedras e tábuas de um palco, a primitiva «fons vitae» do homem.

*

TRISTE RETROSPECTIVA : ANTONIN ARTAUD

6.Março.1992


Trouxe ontem da feira dos alfarrabistas (Largo de S. Carlos) mais um exemplar da edição de «O Teatro e o Seu Duplo», com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, edição Minotauro, infelizmente sem data.
Significa que guardo poucos títulos de um autor de que cheguei a ter as obras completas, creio que da Gallimard. Tristezas das retrospectivas.

São apenas três os títulos que a Biblioteca do Gato ainda guarda:
Antonin Artaud – Van Gogh o Suicida da Sociedade – Hiena Editora – Trd- de Aníbal fernandes
Antonin Artaud – Em Plena Noite ou o Bluff Surrealista
Antonin Artaud – O Teatro e o Seu Duplo – Trad. de Fiama Hasse Pais Brandão – Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues – Ed. Minotauro
Para compensar a tristeza dos poucos livros que ainda guardo, indico os files que, no meu computador, referem o nome de Artaud, incluindo um longo poema que escrevi :
artaud-1>
cf-4>
acácio-2>
03-03-21>
vozes-1-fi>
obsceno – 1>
obsceno – 2>
obsceno – 3>
obsceno –4>
tragico->
vangogh>

ANTONIN ARTAUD E A MORTE

artaud e a morte

ANTONIN ARTAUD FRENTE AO «MAL DE EXISTIR»

O TEATRO E A MORTE OU A CATARSE TRÁGICA (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 23.Janeiro.1964


1 — A aventura poética preludia a aventura trágica. A palavra antecede ou prefacia o silêncio, a existência o ser, a vida a morte. E a literatura o teatro.
Entre uma e outra aventura, a quietude ou abstenção mística, ausência de palavra e de acto, tempo de suspensão entre a palavra e o silêncio, entre o poético e o trágico, o literário e o teatral, silêncio entre o silêncio da linguagem e a linguagem do silêncio.
Limiar da encenação trágica, a ascese mística elide palavra — a palavra que era para o coro dionisíaco uma das máscaras — e acto. O corpo do místico antecede imediatamente o corpo do actor. A mímica do êxtase prefigura a mímica teatral. Na meditação mística ou existencial inicia-se a «doença» que é o pensar sobre a morte ou sobre o «mal de existir», doença que eclodirá na morte em acto da tragédia.
Na exasperada individuação do místico atinge a vida uma das
fronteiras com a morte, fronteira idêntica à que se toca na tragédia.
Actor é o que põe em acto a morte, o que, vivendo a morte, a esconjura ou exorcisma, por catarse, do corpo do espectador.

2 — Ao falar de quietismo ou abstenção mística, pressuponho incluída a meditação existencial de quantos, dentro ou fora da ortodoxia cristã, heréticos ou não, se interrogaram sobre a «mal de existir», sobre a «doença de existir».
Todos os que, de Buda a Shopenhauer, de Sócrates a Pascal, de Ésquilo a Nietzsche, de Dostoievski a Chestov, de Santo Agostinho a Kierkegaard, de Kafka a Fernando Pessoa, de Raul Brandão a Camus, repuseram o eterno enigma, reformularam a eterna pergunta, sem nunca ouvirem a resposta, nem por uma ideia, nem por uma crença, nem por um argumento, nem por uma evidência.
Não houve promessas de outros mundos, não houve paganismos e neo-paganismos, não houve religiões de igreja e religiões de Estado, messianismos políticos e políticos messias, humanismos e humanistas, salvações e salvadores do mundo, não houve evidências, não houve sistemas, promessas de felicidade e cura, o curto ou longo prazo, para este e para o outro mundo, não houve talismãs, técnicas, poderes, ciências, não houve optimistas e optimismo, não houve nada, nada que abafasse a voz trágica, nada que impedisse o homem de temer a morte e desafiá-la, de lhe fugir e para ela fugir, de a tentar e de nela se tentar, nada que explicasse a esfinge, nada que matasse a fome de absoluto, nada que resolvesse o mistério da existência. Nada acalmou nem calou a voz trágica, voz do silêncio, voz das vozes que o homem perdeu e nele se perderam, voz de quando já nada se sabe, pode e quer dizer.

3 — Na tragédia, nada se afirma e nada se nega. Tudo vem do enigma e a ele volta. A tragédia é o campo infinito da interrogação. O campo da liberdade.
Mas fora do teatro, do teatro quimicamente puro que é a tragédia, o homem não deixa de prefaciar a morte, de pensar a morte, de interrogar a morte. Não deixa por isso de falar, de escrever, de, em suma, «fazer literatura».
Esta a única justificação que ainda hoje pode ter a literatura: a de servir de prefácio à encenação trágica, à montagem teatral, à acção do actor. O autor serve o actor.
Fora isto, que motivos, além dos inconfessáveis, pode haver para defender ainda a literatura? Fora isto, que pode ser a literatura além de «cochonnerie» ?

4 - Para Artaud, o teatro nunca poderia ser o que a degradação burguesa fez dele; uma dependência da literatura, da linguagem, da imunda palavra; o teatro, na sua origem, é a tragédia, assim como a literatura, na sua origem, é a poesia.

5 - Quando o teatro procura a sua essência, ou origem ou substância, ou autenticidade, procura-a nas manifestações ditas religiosas de civilizações perdidas e ignoradas da Civilização ocidental e diz-se que reassume o carácter religioso ou de religião, o carácter de comunicação esotérica ou comunicação sem palavras oposta à comunicação exotérica ou literária.
Este (o teatro da morte e do sagrado e do esotérico) é o teatro das trevas, das vísceras e artérias fluindo, do esgar, da mímica, do ritmo e do ritual, da orgia, da dança, da festa, o teatro de Diónisos, o teatro do actor e só do actor.

6 — No conspecto trágico, a morte não é um apêndice, um terminal da vida. No contexto trágico, a morte é outra realidade (outra vida?) que a vida desconhece.
Medianeiro entre uma e outra realidade, é o actor e, por extensão, o teatro. O actor representa a morte. Induz a morte da potência ao acto e do acto ao facto.
O autor trágico pensa a morte. O actor trágico vive a morte. Pensar a morte é ser doente, doente do «mal de existir».
O tempo é para o suicida, o doente incurável, o condenado à morte, o soldado em campanha, para todo o que pensa a morte, enfim, a única realidade.
O tempo é para o autor trágico, para o filósofo existencial (que geralmente escreve diários, talvez no desejo de fazer parar o tempo...), para o místico, para todos os que pensam a morte, enfim, a única realidade.
O tempo é para o actor, que vive a morte, a única realidade
Vivendo a morte, o actor (trágico) vive a liberdade que é a morte.
A liberdade, para ser liberdade, infinitamente se reclama a si própria, até à liberdade das liberdades — a morte.
A liberdade é o único absoluto. E só o teatro, na pureza da sua origem - a tragédia – a representa. Teatro e morte identificam-se. Ser absolutamente é a morte de teatro.
Sinónimos entre si - tragédia, teatro e morte são - também sinónimos de alegria, de dionisíaca alegria, e os autores trágicos não
são «pessimistas» como diz a crítica, mas apenas isso: trágicos.


7 — A guerra sacralizou-se, na guerra está, segundo Roger Caillois, o sucedâneo das festas, dos ritos orgiásticos, do coro dionisíaco. E no único, exclusivo, desmedido palco do mundo esta ria hoje, realizando-se pelo avesso, a tragédia quimicamente pura, a essência do teatro.
Erguer pequenos palcos, neste palco gigante, parecerá uma
redundância. Mas não é. É virar a tragédia para o direito. É passar a ferro e a miniatura o mundo de hoje. Ê o eco do eco do eco do coro dionisíaco.
«Tempo de excesso, de violências, de ultraje (L’Homme et le Sacré, de Roger Caillois, pág. 230) de alguns homens sobre todos os homens, eis que outra minoria ergue sobre o palco de tábuas a réplica desse excesso, dessa violência, desse ultraje.
Só com a diferença; enquanto no pequeno palco o trágico é de significação individual, no palco da história o trágico é de proporções colectivas e os assassinos não prestam contas a ninguém. Falsos Diónisos, possessos apenas de raiva (Tisífone), de carnificina (Megere), de inveja (Alecto), nada há nessas «erínias que lembre e honre a fúria dionisíaca. Por isso é necessário continuar representando, em palco aberto, o último acto da tragédia, ritual de sacrifício e crueldade em que o homem será a vitima oferendada a si próprio. A encenação está feita, o palco montado, os actores em acção,

AFONSO CAUTELA

ANTONIN ARTAUD SEPARA-SE DOS SURREALISTAS

1-3-artaud-1- notas de leitura - surrealismo & surrealistas - inéditos ac de 1961

ARTAUD : A DOENÇA DE EXISTIR

«O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo” Antonin Artaud no manifesto “Le Bluff Surréaliste”.


«Onde o surrealismo não foi uma escola de optimismo para o cor-de-rosa, mas um esforço ora heróico, ora lírico, ora cínico, de ver claro.»


1961 - Ignorar a situação primária do indivíduo contemporâneo - situação de extrema e desamparada alienação, de vazio total - ou dizer que a doença de existir se cura com panaceias verbais, palavras de exaltação moralizante, eis a tentação a que Breton e outros surrealistas nem sempre souberam furtar-se a tempo, seduzidos por mitologias e optimismos fáceis, pela moralização abstracta, pela substituição de um puritanismo por outro puritanismo.
Sobre a morte e o sentido ou falta de sentido do que se chama vida, Breton nunca proferiu juízos claros, preferindo sempre falar de amor para salvar as situações com pendor para o trágico e aguarelar de cor-de-rosa as possíveis suspeitas de raiz existencial. Sobre a morte houve um único surrealista (expurgado primeiro, reabilitado depois, postmortem...) que disse palavras definitivas. Artaud, o único a “viver a morte” e depois George Bataille, que os críticos de ficheiro não sabem onde hão-de classificar (surrealista ou existencialista?) fizeram por aí incursões que estão longe de terminar e que, de vez em quando, perante os optimismos daqui e dali, os conformistas disto ou daquilo, convém ir lembrando.
Artaud, o Remorso, o maior Remorso, a mais grave palavra de alerta sobre o “cadáver adiado que procria”. De facto, a recaída no existencial, na angústia ou perplexidade existencial, será a alternativa constante para o projecto surrealista, a menos que fosse possível “existir surrealisticamente” a todos os instantes, isto é, em estado de sonho permanente.
Quando à náusea pela existência se junta a indiferença pela morte, quando ao tédio quotidiano se junta o fastio pelas mitologias políticas, quando não se pode ser mais nada além do “cadáver adiado” que nem sequer procria, está-se no instante em que é possível “compreender” Artaud. A sua escolha situa-se na zona de maior perplexidade e só a compreendem (mesmo quando não aceitam) os que conheçam a extensão de uma náusea que os existencialistas filosofantes transformaram em teoria mas que alguns (Artaud, Kafka, Fernando Pessoa, Beckett) mantiveram insolúvel, indissolúvel.
Este tipo de rebelde, se alguma coisa propõe, dentro dos padrões políticos vigentes, é apenas a subversão total de uma ordem a que não pode aderir e com a qual efectua um corte radical, uma vez que não pode, individualmente, vencê-la nem transformá-la. Confissão de uma derrota inelutável? Utópica subida de Sísifo? Perplexidade? Beco sem saída existencial? Recusa de toda e qualquer solução, mística ou política?
Perante estas perguntas, continua válida a crítica que acusa Artaud e outras solidões exemplares de anarquizante. Afirmou-se que revolta sem revolução é conformismo e não há resposta para esta acusação.
Já o epíteto “decadentista” se mostra menos adequado para desqualificar semelhante atitude; porque a poesia pode ser também (além de outras funções que queiram atribuir-lhe) essa tentativa (utópica) de estar fora do mundo embora mergulhado nele. Fora do mundo mas consciente dos problemas e crimes do mundo.
Quando certa gente “decreta” a abolição da angústia é como se obrigassem a curar-se um incurável de último grau. A angústia ou perplexidade existencial é uma condição tão insupera1 individualmente, já e agora, como a condição de classe. Idealista, pois, se apresenta qualquer propósito de escamotear essa condição, ignorá-la ou minimizá-la. O “doente da existência” tem pouco ou nenhum espaço onde caiba e onde o deixem sobreviver. Mas não pode ignorar-se um «leproso» nem arrumá-lo no saco “decadentista”. Porque decadentistas somos nós todos, ou ainda menos.
O “leproso” recusa-se a colaborar mas não deixa de viver por isso o seu lugar e a sua hora. Não ignora as contradições mas vive-as, talvez mais intensamente do que os teóricos que vão afirmando soluções gerais sabendo muito bem que não têm já solução particular.
O “leproso” é pelos menos lúcido e as diferenças ideológicas, bem vistas, são afinal apenas diferenças ou graus de lucidez. A maioria não se sente afectada, porque isso é questão de inteligência, sensibilidade, imaginação. Ser ou não ser doente é questão de lucidez e apenas de lucidez, porque a doença unifica, clarifica, polariza energias; define uma condição de estrutura, afecta a criatura na sua totalidade, na sua origem, no seu núcleo; altera a óptica epistemológica, o aparelho de ver, perceber e pensar o mundo, bem assim o mecanismo de acção e reacção sobre o mesmo mundo; é uma experiência-limite, irredutível, por isso significa saber o peso e gravidade do necessário e aquilatar o valor e gravidade do livre (necessidade e liberdade interdeterminam-se).
Abusivo é se o facto se generaliza ou transplanta da vivência individual para a circunstância histórica, se o facto subjectivo se objectiva, e que se fala de “doença da civilização” quando essa doença é apenas vivida por alguns. A “doença de existir” não autoriza a proclamar a “decadência da civilização”, embora o abjecto do homem-objecto, que é por enquanto a realização mais perfeita dessa civilização, pareça autorizar uma visão definitiva do homem e o beco sem saída da história.

SURREALISMO E DOENÇA

Aquilo que Artaud criticava nos surrealistas - a devoradora ânsia de viver - continua a ser, parece-me, um dos pontos fracos do surrealismo e onde o esforço ora heróico, ora cínico de ver claro (de desmistificar), foi momentaneamente substituído pela cega aceitação de mitologias e optimismos fáceis.
«O que me separa dos surrealistas é que eles amam a vida tanto quanto eu a desprezo” - escreve Artaud no manifesto “Le Bluff Surréaliste”.
Eis definida a enorme diferença, a grande distância. Nunca poderiam entender-se porque nunca o animal saudável pode compreender ou aceitar o animal doente. No entanto, na doença reside um modo de conhecer ou debater a realidade, na doença pode estar um dos elos de ligação entre o homem e a realidade, entre o homem e a poesia. No doente pode estar implícito o poeta e a poesia como experiência-limite, tal como a quiseram as doutrinas surrealizantes. Na doença, o facto concreto, indestrutível, inelutável, pessoal e intransmissível desafia as abstracções e as leis gerais. Perante a doença, concreta, sórdida, abjecta (ante-projecto da morte) os ideais abdicam, os sistemas soam a oco, as grandes palavras assumem apenas a cor do ridículo.
A doença, acima do tudo, repõe o problema da literatura e da arte em termos que os bem pensantes recusam, que os saudáveis censuram, que os optimistas (de todas as cores) ridicularizam. A doença repõe o centro da poesia na experiência o no poeta, sendo poesia o que as palavras testemunhem dessa experiência.
Os que pretendem situar o centro da poesia, não no poeta e seu peso ou pesadelo existencial mas na linguagem pela linguagem, na arte pela arte, têm, entre outras, uma maneira fácil de retirar de cena um tão incómodo conceito de poesia; basta falar de psicologismo, suficientemente desacreditado para servir de aviso alarmante, ou de decadentismo.
Para esta última acusação - a de decadentismo - a resposta ficou dada pelo surrealismo e pela perplexidade existencial. Para a doença metafísica ou existencial, a náusea, a angústia de estar, a resposta é idêntica à que se deu para a doença do corpo e do cérebro, das mãos e dos órgãos.
Resta portanto responder aos que, sob o pretexto de biografismo psicológico, rejeitam a experiência como nó central da criação poética. Até para que se não repita mais vezes o disparate de confundir experiência com experimentalismo e experimentação.■

ANTONIN ARTAUD NA ENCRUZILHADA

ARTAUD sempre-1 -scan-sexta-feira, 27 de Julho de 2012

«FENDA» NA MURALHA: "O TEATRO E O SEU DUPLO" SEGUNDO ANTONIN ARTAUD (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 1989 para o jornal «A Capital», coluna «Livros na Mão», poderá ter ficado (felizmente) inédito.

1
MOVIMENTO SURREALISTA NA SUBVERSÃO
"Belo como uma heresia" - escreveu Lautréamont, que, além de poeta maior foi não menor autor de frases-manifesto, de convulsivos aforismos que abriram fendas na muralha.
«Belo como um decreto de expropriação" - glosa depois Aimé Cesaire, da Martinica, em luta selvagem e surrealista contra o colonialismo francês da sua ilha.
Unidade de medida para aquilatar a importância do sonho e do movimento surrealista na Subversão da ordem estabelecida, a Heresia dá o mote da "revolução permanente” trotskista, que ainda hoje está por folhear, como mostram as derrocadas dos estalinismos.


2
O PRETEXTO DO TEXTO
Sem se deixar distrair pela supérfluo, a editora "Fenda" vai dando armas à revolução cultural com algumas obras de capital importância na radicalização em curso do discurso. Pouco importa se, por vezes, recorre a meras reedições de traduções já publicadas mas há muito esgotadas; ou se promove traduções de obras que nunca antes se tinham visto em língua portuguesa, como é o caso de Raymond Roussel e Kurt Schwitters. O importante, nas edições “Fenda”, é a coerência do projecto e o critério selectivo, dando sempre prioridade ao fundamental em detrimento do acessório»
"O Teatro e o seu Duplo", de Antonin Artaud, é uma dessas obras de fôlego que já tivera edição portuguesa na falecida Minotauro. A tradução, de Fiama Hasse Pais Brandão, reaparece agora, na “Fenda”, em "versão integralmente revista pelo original" como refere a tradutora em "Pequenas Considerações Prévias"»

3
SUBVERTENDO A ORDEM EUROPOCÊNTRICA
Curiosamente , ou talvez não, o prefácio da 1ª edição, hoje esgotada, da autoria de Urbano Tavares Rodrigues, não foi agora reproduzido.
Seja como for e em versão autorizada por uma escritora bastante experiente em retroversões, temos agora para nosso gáudio de militantes, o texto que deveria ser decorado em todas as escolas. Quer dizer: se assim fosse, não existiam. Quer dizer: é um dos textos mais subversivos da ordem europocêntrica, judaica quanto baste e cristã que chegue, em que , apesar da Comissão Nacional dos Descobrimentos, existimos.
Outros "orientalistas" vieram estabelecer a confusão no seio do europeísmo que nos contamina desde o berço. Mas talvez Oshawa, Michio Kushi, mesmo Georges Soulié de Morant e até Krishnamurti ( alguns dos mais recentes autores da subversão cultural) não tivessem sido possíveis sem o caminho aberto por Artaud.
Nunca ninguém foi, de facto, tão longe e teve tão cedo a intuição da "coisa" como ele, que escreveu esta bomba-relógio chamada "O Teatro e o Seu Duplo" em 1933, ano-chave da história europeia como o foi, ainda ontem, o ano de 1989, embora noutro plano.

4
ALAVANCA A FUNDO
Eu diria que o teatro é o pretexto do texto para Artaud meter a alavanca no sistema cultural vigente e dar-lhe a volta.
Como era de esperar, cultura e teatro ficaram, desde então, quase na mesma. Mesmo com este furacão de Rodez quase nada mudou na face diurna das formas teatrais consumidas.
Mas o mistério dos grandes "hereges" como Artaud, é que nunca se sabe a que nível profundo do inconsciente colectivo eles estão agindo.
E, quando menos se espera, a crosta da história rebenta, pensando os observadores que foi tudo obra da política. Não foi: o vulcão de homens-chave como Artaud nunca se sabe quando vem à superfície.

5
«LA LITTÉRATURE MÈNE A TOUT»
Por isso, se o teatro continua burguês, graças a Deus, psicológico como uma série de televisão, imundo quanto o necessário à sociedade de consumo; se a literatura continua, como no tempo de André Breton, a "levar a tudo" e se a cultura ocidental continua sendo um tremedal tal como Artaud o denunciava, em 1933, não significa que a força da heresia esteja morta. Antes pelo contrário. Significa que está mais viva do que nunca. Ainda que, como alertava Artaud, "os que vivem, estejam vivendo dos mortos»
Quem (re) ler "O Teatro e o Seu Duplo" sabe que está perante uma poderosa força da Natureza, pronta a atacar quando a violência dos novos "yuppies" for longe demais. Ele está de vigia. É o observatório astronómico de Palomar… Observatório que temos agora, outra vez, à mão de semear, graças à “Fenda”, que assim faz maior a fenda na muralha.
Por causa disso já ganhou o titulo "editora da Heresia".

6
ARMAS À REVOLUÇÃO CULTURAL
Com efeito, em 1989 e graças aos bons ofícios da “Fenda”, outras bombas-relógio vieram , em forma de livro, serenar o nosso espírito, enriquecer o nosso arsenal de luta poética na resistência política.
- Reaproveitando a tradução que Pedro Tamen fizera dos "Cantos de Maldoror" para a falecida editora Moraes, em 1969, a presente edição da “Fenda” ficou substancialmente melhorada sem o prefácio de Jorge de Sena, mas acrescentada, entretanto, de preciosas ilustrações a negro de Salvador Dali, Vallotton e Pastor, retratos imaginários do lendário Isidore Ducasse.
Sabe-se a importância tentacular deste polvo marinho que são os "Cantos". Não há crítica a fazer, há que registar e guardar bem guardado o exemplar de capa azul escura, que a “Fenda” nos enviou, juntamente com outras novidades que ainda estamos a digerir, com todo o apetite.

-"Augusta Pia", de Kurt Schwitters, que julgo ser a primeira obra em português verdadeiramente representativa do "dadaísmo”, que aqui só se conhecia de outiva ou por ficha de dicionário.

- «A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer" , de Stig Dagerman , texto de um suicida incurável que, entre tantas outras coisas, me parece falar da ambiguidade, do erotismo latente, da melancolia
genésica que há num estado maníaco-depressivo, rótulo psiquiátrico do estado larvar chamado lucidez criadora.

- Mais difícil de roer é Raymond Roussel, "Novas Impressões de África", edição bilingue de um delírio vocabular que, publicado em 1932, ainda estamos todos a decifrar em 1990.
Manual João Gomes, prefaciador, dá uma ajuda, com a criteriosa "Introdução no Labirinto de Raymond Roussel” e uma não menos valiosa «Bibliografia de Raymond Roussel". A devorar devagar é a selecção de textos de Raymond Roussel, traduzidos por Manuel João Gomes e em que o poeta francês confessa (?) como escreveu alguns livros.

8
A SUBVERSÃO SURREALISTA
Compreender os mecanismos insidiosos da imaginação, as leis que a regulam, os caminhos e descaminhos do discurso automático, o uso e abuso de coisas como "cadáver esquisito", "non-sense", "humor negro", "anacronismo", "neologismo", etc. é, em saldo final, o que permanece da subversão surrealista.
Enquanto tivermos editoras com a coragem da “Fenda” para prosseguir a única aventura humana que merece o adjectivo de fascinante - a Heresia - dêmos graças a Satanás.
Nem tudo está perdido nas aguínhas mornas do marketing.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

ANTONIN ARTAUD EM RODEZ

1-6 quarta-feira, 8 de Janeiro de 2003-13568 bytes marº-24

O PAVILHÃO DOS INTERNADOS

DIÁRIO DE ANTONIN ARTAUD NO HOSPÍCIO DE RODEZ (*)

«Ceux qui vivent, vivent des morts»

(*) Este texto de Afonso Cautela foi parcialmente publicado ( Fevereiro de 1964 ) in «Cadernos Alfa - Poesia 1» – Editor: Álvaro Luz e Silva – Propriedade: Amicitia, Grupo Cultural de Portalegre.
I
Não é um medo em linha recta
um medo que por enquanto me deixa inseguro
é a porta estreita
a porta cada vez mais estreita do futuro
II
Está alguém à espera sem que eu saiba
se é para fins pacíficos ou de agressão
É um medo-atmosfera
um medo que se respira
e não deixa respirar
É um mau cheiro de que não posso fugir
e foge atrás de mim
III
Estou doente ou é do tempo?
Sei que podem erguer um mundo saudável
à vossa imagem e semelhança
para me encarcerar
Sei que não tenho lugar
mas talvez me consigam uma cama de hospital
E que pena não haver também um bolo de veneno
para os poetas
e outro bolo de veneno para os críticos
No fundo os poetas são gente indefesa
deixam-se encarcerar sem um latido
mas se aprenderem a morrer
talvez a poesia se resigne um dia
a nascer
IV
Aos meus diários de hospital
nunca chamei poemas
Diálogos
diálogos contigo
diálogos com o medo e a luz
diálogos com a sede
diálogos à boca fechado
É fácil encarcerar alguém na palavra «autismo»
V
Na cama contígua eles continuam autopsiando o Artaud
com um termómetro Fahreneit tiram a febre ao Carlo e ao Raul
já diagnosticaram o suicídio de Fialho
insistem em injectar morfina no Fernando Pessoa
(que pena a merda do Jarry não chegar para tanta gente)
Dizem que o Bousquet sofre de amnésias recentes
mas nem admira depois do que passou na frente
e continuam a deter - apenas por medida preventiva - o Sade na bastilha da Precaução (com ampolas diárias de surto diarreico)
Não há muitos dias sangraram o Exupéry
e aprovaram-no para piloto da aviação francesa
que é como quem diz da força aérea
Adiam indefinidamente o internamento de Maiakovski
por motivos de política hospitalar
mas toda a gente sabe que o Gulag já fechou para obras e é tarde
fazendo abluções edificantes no Lawrence
deitando pensos de algodão no Henry Miller
e claro fazendo as necessárias próteses dentárias no Cesariny tudo parece continuar em boa ordem no meu pavilhão de internados
Continuam buscando a doença imaginária
continuam inventando teorias que expliquem
esta súbita intervenção de humores e de plasma
no sangue de Lautréamont
nas células cerebrais de Dostoiewski
ou descobrindo na pele de Ésquilo e Sófocles tumores malignos naturalmente devidos ao grande buraco do Ozono
Continuam farejando a loucura de Blake que prudentemente agarram com pinças à mesa das experiências
enquanto vão aspirando sem querer o mau cheiro a Nada
que deita o Kafka e o Samuel Beckett
Os suores frios de Proust impacientam o distinto corpo clínico
e bem assim os desvios de Baudelaire
as ladroagens profissionais de Jean Genet sempre em estado de choque eléctrico com os cabrões do Fisco e da polícia
A intradérmica solidão de Nietzsche ainda os intriga mais
quando se recolhem na grande câmara escura da radioscopia para lhe fotografarem os testículos
Encaram o Gide com um entendido sorriso profissional
e tapam a cara ao Óscar Wilde com o grande lençol de um grandessíssimo pudor
À Florbela - no ventre de uma Azinheira louca - vão oferecer-lhe flores e desejar-lhe as melhoras
Do Plutarco dizem que sofria de bisbilhotice crónica e de mal dos ossos incurável na época tanto como hoje
Vindo mais tarde a demonstrar-se o carácter endémico da Nevrose galopante
estendida por engano a todos os cronistas profissionais que escalaram o Evereste mesmo nas minhas barbas
Esqueceram-se do Walt na cozinha, felizmente para o Whitman que até nem tinha nada com isso e que tinha ido à retrete quando o enfermeiro veio para o levar na camisa de forças com raios de luar
Greco e Miguel Ângelo passaram à secção de óptica pois ninguém normal vê o Mundo como eles viram - cheio de miasmas poluentes ainda por cima
Van Gogh foi declarado irremediavelmente incurável e Rimbaud - soube-se mais tarde pelo noticiário das Nove - não poderia continuar na clínica comum por ofensas ao pudor do poder
Crevel - um senhor bem vestido - foi submetido a urgente intervenção cirúrgica por causa da mania do suicídio com que ficou mesmo depois de se suicidar
E Virgílio - que sempre consideraram um caso manso de loucura - andou a monte uma data de anos até que o fisgaram na fímbria de uma asa negra de Corvo
enquanto o Verlaine era declarado urbi et orbi, aquém e além mar, hoje, amanhã e sempre, o autor do Único Crime Perfeito
VI
Oh meus irmãos de hospital
alienados
párias
suicidas
últimos descendentes das estrelas diurnas
corruptores de bispos
autores da Contra Reforma
incendiários da Renascença
Incas poderosos
Generosos discípulos de Hermes
Oh! revoltados e heróis
lúcidos encarcerados da Vida
andróginos apaixonados
destilando a Lua num travesseiro Sujo
Oh! Bíblicos profetas da Origem
Brama e Beethoven
Buda e Brecht
Oh! Condenados à Esperança
Chaplin e Camus
Confúcio e Cântico dos Cânticos (autor anónimo)
Cristo e Curie
Oh! Danados de um Fausto imortal
Darwin
Einstein
S. Francisco de Assis colhendo fioretti
Gagliostro e S. Paulo
Joana d'Arc e D.Juan
VII
Não sei se convidei todos os meus mortos
para lembrar este Dia da ressurreição
Não sei se me esqueci de algum
no forro do casaco
talvez ele durma
talvez se tenha atrasado o comboio
porque mora mais longe
VIII
A enfermeira veio com os jornais da manhã
e vi que ainda pertenço à galeria dos vivos
porque alguém falava no meu nome
ou pelo menos do nome que me deram no civil
por onde andei antes desta guerra
Legalmente e com todas as autorizações - do Papa - estou agora imobilizado
neste cama lisa de hospital
destinado a doentes perigosos
ou pelo menos incuráveis nos próximos séculos
pela medicina eternamente de merda
Sou contagioso e eles sabem isso porque me inocularam com um vírus contagioso escolhido por catálogo
todos concordam que me devo curar depressa pois um doente assim, mesmo leve como uma pena, fica pesado ao Orçamento do Estado que se escreve sempre com maiúscula
mas pelo seguro vão-se afastando da cama onde me têm retido para não dizerem preso
«Até Breve, Antonin, coragem e coração ao alto»: dizem-me vozes que suponho virem do colchão onde só grassam percevejos graças a Deus
Por isso o meu coração subiu tanto estes dias
por isso sinto no peito um balão vermelho a inchar
Não sei se os amigos vão voltar
para me propor novos programas de acção
Ontem era um corpo e hoje sou mais do que isso: sou um pesadelo com séculos de hereditariedade
Por isso nada me deterá nem os cinco sentidos que se encontram de sentinela à fortaleza
onde os incautos marinheiros perguntam se podem entrar
ou se haverá para lá disso mais do que isso
Nada me deterá nem os cinco sentidos
à entrada do desconhecido
Quantos sentidos tem agora este corpo?

Sou doente e para a sociedade civil é até uma coisa compreensível, mesmo razoável desde que não se abuse
As estações anunciam-se irregulares
e apesar das poeiras micro-activas em profusão nos vidros da janela
ninguém ousa dizer o nome da doença
que é a doença de que ninguém ousa dizer o Nome
IX
Além de humanista sofri de outras bexigas em pequeno
vacinaram-me cedo, eram quatro horas da manhã, e hoje dizem-me que há
um rio secreto correndo ao fundo da história
um rio de que só se adivinha à superfície o Rumor metálico e musical
um rio de que se pressente apenas o movimento ora convulso e doce ora sereno de angústia
um rio suspeito
um rio sagrado
um rio que raros iniciados têm a coragem de localizar
Um rio com mais força do que mil exércitos
X
Escrever é ir ao encontro desse rio
explorar druídicas cavernas e pesquisar
errar de estalagtites para estalagmites
de minifúndios para latifúndios
de afélio para periélio
do mágico para o trágico (Cassiano Ricardo)
Escrever é riscar e arriscar
em todos os sentidos sem sentido
e ganhar outros tantos sentidos além dos cinco
XI
Na encruzilhada não vejo Mallarmé
não descubro Apollinaire
mas Montessori mergulha as mãos no leite virgem da Aurora
mas Papini está lendo e cegando (l'uomo finito é finito)
mas Nero beija na boca o jovem favorito
enquanto Nietszche deifica a paixão e põe fim ao Nada
Não vejo a Arte
mas Orfeu encosta-se ao meu braço esquerdo - do lado do coração - sangrando do seu braço direito
Orígenes está escrevendo 2000 obras para a Igreja excomungar e Raimundo Lúlio cheio de ciúmes porque só escreveu 350
Mal descortino Pascal atrás daquelo biombo
mas S. Paulo surge maior do que o Clarão de Damasco
Nunca ouvi falar de um tal Aquilino Ribeiro
mas enxugo o suor na testa de Pasteur a quem a medicina capitalista ergueu o maior e mais sentido monumento de homenagem
Limpo com um lenço limpo as lágrimas de Pestalozzi por todos os relapsos que não quiseram educar a sua alma neste mundo sem deus
Sei que o Rousseau é uma menina sensível
e - dizem outros - um maroto de génio que chegou e sobrou para a época pequenina da revolução
Eu, por mim, vou ser expulso com Poe da Academia Militar de West Point e beber durante a grande farra do Carnaval no Rio
Quando Rodin correr o estor do seu estúdio
ficarei em silêncio olhando o rumor das formas
Não critico o pobre Rabelais
bem lhe basta a Inquisição dia sim dia não a bater-lhe na aldraba da porta
Espero que o Romain Rolland - perfeito gentleman - hoje não falte
ele nunca falta e aparece quase sempre à mesma hora
Uns dias por outros o Tagore acompanha-o
e o prazer é todo meu
Torga aparece nas fráguas a tremer com frio nos arredores onde vem caçar espécies vivas de aluguer
E ouço Voltaire dar grandes passadas no quarto
ele mora aqui por cima no segundo andar
O Amadeo, esse, quando é que o verei voltar de Paris naquele Sud-Express de revista antiga
quando poderá ele fugir à tarefa pouco rentável
de ensinar ao mundo a nova linguagem da Luz?
Quando posso assisto à Missa dos Pobres
gosto de os ver aos pobres no seu fatinho domingueiro
o Padre Américo costuma ser pontual e fala-me da caleche onde estranhamente se faz conduzir por criados de Libré
ele só se atrasa quando um dos filhos adoece de repente
(e fica ele mais doente que o doente)
XII
Oh! Meus companheiros de caserna
meus camaradas de Fome
Lá fóra a neve é um baloiço onde as crianças oscilam às risadas
e onde talvez os que não são crianças
deitam balanço à vida
Oh! Meus camaradas de Inocência Clara
de translúcida Ignorância da matéria dada
o que sei eu e o que sabeis vós do Amor
o que sei eu e o que sabeis vós da Morte
o que sei eu e o que sabeis vós do Tempo?
Oh! Meus criminosos queridos
porque matamos nós as pequenas vidas sem importância
nós que somos na Eternidade vidas sem importância?
Porque não quisemos ser espartanos em Esparta?

Nossa camaraderie é uma coluna dórica frustrada
Nossa fraternidade é fratricida

Tavira, 24/3/1961

terça-feira, 24 de julho de 2012

NOSTRADAMUS & CHARLES FORT EM LINHA

mezei - gato leitor – revisão: 2001-12-27

DA PATAFÍSICA AO SURREALISMO

É talvez um lapso bastante reprovável que o livro «Le Matin des Magiciens» nunca cite Alfred Jarry nem tenha salientado a importância da Patafísica (por ele fundada como «ciência da excepção») para o realismo fantástico de que aquele livro é um manifesto.
Em contrapartida, dedicam os autores -- Louis Pauwels e Jacques Bergier -- bastante espaço e muito justamente, a Charles Fort, outro autor que procurava nos EUA o que Jarry procurava em França: a ciência da excepção ou ciência do particular. Deveria estudar-se este paralelismo entre o autor de «Gestes et Opinions du Docteur Faustroll» e o autor do «Livro dos Danados».
«O movimento assimétrico e espiral (...) anima os mais importantes símbolos de Jarry» -- escrevem Marcel Jean e Arpad Mezei na sua obra «Génèse de la Pensée Moderne». Seja ou não assim, deve registar-se esta observação e relacionar-se com o parentesco descoberto por Ruy Launoir em «Clefs pour la Pataphysique»(Ed. Seghers): «Porque será que o único estudo do Doutor Sandomir especificamente dedicado à «Prospectiva» se intitula «Michel Nostradamus ou L'Avenir est-il un Poème?». Contrariamente ao que um positivismo apressadamente compreendido poderia levar a crer, o método divinatório de Nostradamus não aparece como uma compensação imaginária à impotência que resultaria do desconhecido das leis da natureza e da história» (...)

O método prático de Nostradamus, cuja eficácia tem sido regularmente reconhecida, ironiza indirectamente sobre a precaridade das previsões da ciência moderna, incapaz de reconhecer o imaginário e a aberração, nela e fora dela, para deles fazer uso conscientemente.
Registem-se duas curiosas coincidências: «Tautologias» é o título de um livro do poeta Raul de Carvalho e a noção de «tautologia» é uma das mais importantes para entender a Patafísica «doutrinada» por Alfred Jarry.
«O Amor em Visita», poema de Herberto Helder, é o título de uma obra de Alfred Jarry, que não está longe de inspirar alguns dos postulados a que a obra de Herberto pode referir-se: a obra e principalmente a sua estranha personalidade de sempre «marginal».

AFONSO CAUTELA

O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT

1-2- 69-11-04-ls> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan

A EXPERIÊNCIA ABJECCIONISTA E O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT

JUSTIFICAÇÃO (POLÍTICA) DO HUMOR NEGRO(*)

"Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).

4-11-1969 - Se já muitos observadores, a principio renitentes, aceitam os autores do absurdo ou do irrisório, incluindo-os no entanto sob a designação de vanguarda - onde os colocam por comodidade de exposição... -,mais difícil é reconhecerem em Samuel Beckett ou
Jean Genet, Pinter ou Artaud, Kafka ou Ionesco, sentido social ní-tido.
Em que medida podem os autores do absurdo - humor negro ou irrisório, como se preferir - ser autores de massas e até autores políticos?
Políticos, em sentido estrito, não o serão. Mas de massas creio que sim, porque o mundo de Samuel Beckett - tomado como pa-radigma dos autores "infernais" - é um mundo susceptível de ser compreendido e aceite por maiorias. Porque são as maiorias oprimidas que vivem as humilhações, o grotesco, o irrisório de Samuel Beckett e dos seus anti-heróis. São maiorias os que sentem (ou pressentem) a sua alienação, o seu abandono, a sua inferioridade psíquica e orgânica. Mais mesmo do que uma situação económica de opressão, as figuras de Samuel Beckett vivem o aviltamento e a degradação resultantes dessa opressão - por vezes hereditária. Envelhecem e apodrecem, julgando, no entanto (e aí surge o factor de ironia que torna humorística a situação trágica, que torna irrisório e risível o absurdo) alimentar altos ideais ao satisfazer ou pretender satisfazer as comezinhas necessidades primárias.
O mundo de Beckett evidencia, até ao paroxismo, o relativismo de tudo. O espectador assiste às mesquinhas ambições das figuras e delas se ri ou compadece. Mas logo nelas pensa de outra maneira, quando lhe é sugerido que as suas próprias ambições se tornam também mesquinhas e risíveis se forem referidas a outro termo mais exigente da escala. E assim por diante.
Inserido no jogo das relações humanas o princípio da relatividade - pressuposto pela morte de Deus - tudo nos parecerá ridículo e irrisório. Nenhum dos nossos esforços terá significado e nenhum gesto mais consistência do que os movimentos larvares, moribundos, frustrados das larvas humanas que são as personagens que vemos, no palco, desintegrar-se supondo que vivem, ou chamando vi-da a essa desintegração. "Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).
Em função disto, poderá acusar-se Samuel Beckett e os auto-res do absurdo ou humor negro de se preocuparam demasiado com o Absoluto? De serem, portanto, metafísicos e nada dialécticos?
O Absoluto a que estes autores, directa ou indirectamente, se referenciam, fará deles os arautos de uma metafísica ou de uma difícil e futura dialéctica?
A verdade é que sem a experiência - própria ou alheia - do Absurdo (a que se pode dar o nome de relativo) e sua vivência – ao nível existencial ou da recriação artística - não pode haver superação, nem problemática, nem dialéctica. Sem o ponto-limite a que os autores do "humor-negro" levam a existência humana, sem esse peso do trágico que ela comporta, não há projecto de acção criadora sincero. Sem a travessia do que pode considerar-se o extremo do niilismo, não há optimismo com justa noção da realidade. Para que o optimismo não caia no primarismo idealista, é necessário o ante-cedente de que os autores do absurdo foram os mais lúcidos cronistas.
Faziam falta e são imprescindíveis à marcha dialéctica da História, esses autores do nada, abjeccionistas ou teóricos da frustração e da revolta. A revolta é condição sine qua non - no plano psíquico - da revolução, a via pela qual esta amadurece e se torna adulta. Se humaniza.
Eis a justificação política (ou trans-politica?) para o que alguns observadores demasiado superficiais consideram a gratuita "decadência" do humor negro, do irrisório, do absurdo.

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(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter sido publicado no suplemento literário d’ «A Capital», quando era coordenado por Maria Teresa Horta e corresponde a uma fase em que as intuições fulcrais dos anos cruciais começavam a tomar forma, depois das experiências surrealista e existencial (que posso resumir na palavra abjeccionismo, antecedente directo da ideia ecológica.