sexta-feira, 27 de julho de 2012

ANTONIN ARTAUD NA ENCRUZILHADA

ARTAUD sempre-1 -scan-sexta-feira, 27 de Julho de 2012

«FENDA» NA MURALHA: "O TEATRO E O SEU DUPLO" SEGUNDO ANTONIN ARTAUD (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 1989 para o jornal «A Capital», coluna «Livros na Mão», poderá ter ficado (felizmente) inédito.

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MOVIMENTO SURREALISTA NA SUBVERSÃO
"Belo como uma heresia" - escreveu Lautréamont, que, além de poeta maior foi não menor autor de frases-manifesto, de convulsivos aforismos que abriram fendas na muralha.
«Belo como um decreto de expropriação" - glosa depois Aimé Cesaire, da Martinica, em luta selvagem e surrealista contra o colonialismo francês da sua ilha.
Unidade de medida para aquilatar a importância do sonho e do movimento surrealista na Subversão da ordem estabelecida, a Heresia dá o mote da "revolução permanente” trotskista, que ainda hoje está por folhear, como mostram as derrocadas dos estalinismos.


2
O PRETEXTO DO TEXTO
Sem se deixar distrair pela supérfluo, a editora "Fenda" vai dando armas à revolução cultural com algumas obras de capital importância na radicalização em curso do discurso. Pouco importa se, por vezes, recorre a meras reedições de traduções já publicadas mas há muito esgotadas; ou se promove traduções de obras que nunca antes se tinham visto em língua portuguesa, como é o caso de Raymond Roussel e Kurt Schwitters. O importante, nas edições “Fenda”, é a coerência do projecto e o critério selectivo, dando sempre prioridade ao fundamental em detrimento do acessório»
"O Teatro e o seu Duplo", de Antonin Artaud, é uma dessas obras de fôlego que já tivera edição portuguesa na falecida Minotauro. A tradução, de Fiama Hasse Pais Brandão, reaparece agora, na “Fenda”, em "versão integralmente revista pelo original" como refere a tradutora em "Pequenas Considerações Prévias"»

3
SUBVERTENDO A ORDEM EUROPOCÊNTRICA
Curiosamente , ou talvez não, o prefácio da 1ª edição, hoje esgotada, da autoria de Urbano Tavares Rodrigues, não foi agora reproduzido.
Seja como for e em versão autorizada por uma escritora bastante experiente em retroversões, temos agora para nosso gáudio de militantes, o texto que deveria ser decorado em todas as escolas. Quer dizer: se assim fosse, não existiam. Quer dizer: é um dos textos mais subversivos da ordem europocêntrica, judaica quanto baste e cristã que chegue, em que , apesar da Comissão Nacional dos Descobrimentos, existimos.
Outros "orientalistas" vieram estabelecer a confusão no seio do europeísmo que nos contamina desde o berço. Mas talvez Oshawa, Michio Kushi, mesmo Georges Soulié de Morant e até Krishnamurti ( alguns dos mais recentes autores da subversão cultural) não tivessem sido possíveis sem o caminho aberto por Artaud.
Nunca ninguém foi, de facto, tão longe e teve tão cedo a intuição da "coisa" como ele, que escreveu esta bomba-relógio chamada "O Teatro e o Seu Duplo" em 1933, ano-chave da história europeia como o foi, ainda ontem, o ano de 1989, embora noutro plano.

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ALAVANCA A FUNDO
Eu diria que o teatro é o pretexto do texto para Artaud meter a alavanca no sistema cultural vigente e dar-lhe a volta.
Como era de esperar, cultura e teatro ficaram, desde então, quase na mesma. Mesmo com este furacão de Rodez quase nada mudou na face diurna das formas teatrais consumidas.
Mas o mistério dos grandes "hereges" como Artaud, é que nunca se sabe a que nível profundo do inconsciente colectivo eles estão agindo.
E, quando menos se espera, a crosta da história rebenta, pensando os observadores que foi tudo obra da política. Não foi: o vulcão de homens-chave como Artaud nunca se sabe quando vem à superfície.

5
«LA LITTÉRATURE MÈNE A TOUT»
Por isso, se o teatro continua burguês, graças a Deus, psicológico como uma série de televisão, imundo quanto o necessário à sociedade de consumo; se a literatura continua, como no tempo de André Breton, a "levar a tudo" e se a cultura ocidental continua sendo um tremedal tal como Artaud o denunciava, em 1933, não significa que a força da heresia esteja morta. Antes pelo contrário. Significa que está mais viva do que nunca. Ainda que, como alertava Artaud, "os que vivem, estejam vivendo dos mortos»
Quem (re) ler "O Teatro e o Seu Duplo" sabe que está perante uma poderosa força da Natureza, pronta a atacar quando a violência dos novos "yuppies" for longe demais. Ele está de vigia. É o observatório astronómico de Palomar… Observatório que temos agora, outra vez, à mão de semear, graças à “Fenda”, que assim faz maior a fenda na muralha.
Por causa disso já ganhou o titulo "editora da Heresia".

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ARMAS À REVOLUÇÃO CULTURAL
Com efeito, em 1989 e graças aos bons ofícios da “Fenda”, outras bombas-relógio vieram , em forma de livro, serenar o nosso espírito, enriquecer o nosso arsenal de luta poética na resistência política.
- Reaproveitando a tradução que Pedro Tamen fizera dos "Cantos de Maldoror" para a falecida editora Moraes, em 1969, a presente edição da “Fenda” ficou substancialmente melhorada sem o prefácio de Jorge de Sena, mas acrescentada, entretanto, de preciosas ilustrações a negro de Salvador Dali, Vallotton e Pastor, retratos imaginários do lendário Isidore Ducasse.
Sabe-se a importância tentacular deste polvo marinho que são os "Cantos". Não há crítica a fazer, há que registar e guardar bem guardado o exemplar de capa azul escura, que a “Fenda” nos enviou, juntamente com outras novidades que ainda estamos a digerir, com todo o apetite.

-"Augusta Pia", de Kurt Schwitters, que julgo ser a primeira obra em português verdadeiramente representativa do "dadaísmo”, que aqui só se conhecia de outiva ou por ficha de dicionário.

- «A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer" , de Stig Dagerman , texto de um suicida incurável que, entre tantas outras coisas, me parece falar da ambiguidade, do erotismo latente, da melancolia
genésica que há num estado maníaco-depressivo, rótulo psiquiátrico do estado larvar chamado lucidez criadora.

- Mais difícil de roer é Raymond Roussel, "Novas Impressões de África", edição bilingue de um delírio vocabular que, publicado em 1932, ainda estamos todos a decifrar em 1990.
Manual João Gomes, prefaciador, dá uma ajuda, com a criteriosa "Introdução no Labirinto de Raymond Roussel” e uma não menos valiosa «Bibliografia de Raymond Roussel". A devorar devagar é a selecção de textos de Raymond Roussel, traduzidos por Manuel João Gomes e em que o poeta francês confessa (?) como escreveu alguns livros.

8
A SUBVERSÃO SURREALISTA
Compreender os mecanismos insidiosos da imaginação, as leis que a regulam, os caminhos e descaminhos do discurso automático, o uso e abuso de coisas como "cadáver esquisito", "non-sense", "humor negro", "anacronismo", "neologismo", etc. é, em saldo final, o que permanece da subversão surrealista.
Enquanto tivermos editoras com a coragem da “Fenda” para prosseguir a única aventura humana que merece o adjectivo de fascinante - a Heresia - dêmos graças a Satanás.
Nem tudo está perdido nas aguínhas mornas do marketing.