SURREALISTAS E MILIONÁRIOS DA CRENÇA
CRIME NA CATEDRAL (*)
CRIME NA CATEDRAL (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», coluna «Leituras ao Acaso», em 11.4.1972
O tradutor da peça «Murder in the Cathedral» (edições Delfos, Lisboa) propos-se trazer à cena, num posfácio, três reis magos: Artaud, Jarry e Jean Genet.
A intenção - vê-se! - é escrever um posfácio; depois, patentear erudição e mostrar aos surrealistas (naturalmente!) que «ele também sabe coisas»; finalmente, aproveitar os mortos que já não podem piar ou um vivo, Genet, que está lá longe e tem mais que fazer.
E é assim que, a propósito de catolicidade, de não versilibrismo, de neo-classicismo, do «Poetry and Drama» e outras douradas misérias do senhor T. S. Eliot, se arrancam, sem mais nem menos, à paz dos túmulos dois poetas - vivos! - cujas misérias e Miséria nunca tiveram nada a ver com os versos de ninguém e muito menos com os versos dos «milionários da Crença»; e muito menos com os dramas em verso clássico de T. S. Eliot.
Aparentemente inédita, a manobra de anexação é velha e revelha. De vez em quando, o crítico faz mão baixa dos tesouros profanos e em nome da fé, da esperança, da caridade, não deixa o pio crítico e pio senhor de aproveitar a caridade e a ocasião para surripiar dali - da Poesia, pais de onde havia de ser? — algo em benefício da Fé.
A esse respeito, os «Vingt Ans de Surréalisme (1939-1959)», livro de Jean Louis Bédouin, publicado em 1961, informa largamente, relatando o que têm sido as operações mais ou menos tácticas e aritméticas - subtrair para adicionar — a que se dedicam ou dedicaram, entre outros Pierre Klossowki, «a propósito do «deísmo» de Sade»; do senhor Dom Claude Jean-Nesmy que, segundo Bédouin, «se esforça por demonstrar o valor finalmente religioso da mais oficialmente ateia das escolas poéticas: o surrealismo»; Michel Carrouges, cujo livro André Breton e os dados fundamentais do surrealismo e em especial o capítulo «Surrealismo e Esoterismo» tem dado origem ao que Bédouin designa de «tentativas apologéticas abusivas»; tudo isto, além das já célebres espoliações sobre o legado de Jarry (que o pós-faciador referido repete) e o de Rimbaud, que nas mãos do senhor Claudel ficou reduzido a «místico em estado selvagem».
Confirmando, transcreva-se do livro citado, um parágrafo do manifesto colectivo ali reproduzido - «A La Niche des Glapisseurs de Dieu», subscrito por mais de cinquenta nomes :
«Mencionemos algumas destas tentativas, aliás conhecidas: em Julho de 1947, na revista «Témoignagne», um beneditino, Dom. Claude Jean-Nesmy, declara: «O programa de André Breton testemunha aspirações que são inteiramente paralelas às nossas. «Em Agosto, M. Claude Mauriac escreve na Nef, a propósito de «Fata Morgana»: «Um cristão não teria falado de outra maneira». Em Setembro, M. Jean de Cayeux proclama na «Foi et Vie» que tenciona subscrever, na medida em que elas poderiam estar de acordo com as intenções do movimento ecuménico, várias proposições enunciadas num artigo de um de entre nós. Depois houve nos Cahiers d’Hermès o penetrante estudo de M. Michel Carrouges: «Surrealismo e Ocultismo», que só tomou todo o seu sentido, entendemos seu sentido apologético, depois do recente aparecimento da obra do mesmo autor « La Mystique du Surhomme». Houve em «La Table Ronde» as elocubrações de M. Claude Mauriac que não se auto-reconhece talvez cristão mas todo se agita à ideia de intitular um ensaio futuro: Santo André Breton. Que bela farça!»
A. C.