O SURREALISMO: UMA ÉTICA EM ACÇÃO
CALAR EM ABJECÇÃO É A ÚNICA FORMA DE FALAR (*)
Tavira, 10.Março.1963
Quando uma ordem colectiva se sobrepõe totalitariamente à ética individual, deixa de existir ética, no verdadeiro sentido desta palavra, para haver política, isto é, uma ética imposta, uma ética-para-uso-de-muitos.
Uma ordem totalitária, monopolizando o direito individual de ter cada um a ética que lhe aprouver, impossibilita, em nome de uma pseudo-ética, de uma ética-para uso-de-muitos, todo e qualquer acto de carácter genuinamente ético. É a ausência total de liberdade. É a sociedade totalmente fechada. É a total abjecção (1).
Ético (mas suicida) continuará, no entanto, a ser o acto de revolta dentro da ordem totalitária, acto que tenta possibilitar a percentagem mínima de eticidade (obscenidade) que neutralize a carga máxima de abjecção (2).
É assim que o surrealismo, fundamentalmente uma ética em acção e fundamentalmente acção ética, aparece, sob ordens totalitárias, na forma de um desaparecimento, falando em silêncio. Numa sociedade fechada, o surrealismo existe latente, manifesta-se sob a forma de um vácuo ou ausência.
O surrealismo, perante aquilo que diagnostica e designa de Abjecção, aparentemente abdica, desiste, cala-se, e neste sentido parece colaborar Nela. Só na aparência, porém. Calar – reconhece o homem surrealista – é ainda a única forma de falar, e não colaborar é ainda a única forma de colaboração, a única forma de acção não identificável com reacção.
A meu ver, seria esta existência virtual do surrealismo que alguns surrealistas, em Portugal, teriam pressentido sob a designação de abjeccionismo, termo cuja ambiguidade lhe define o conteúdo também ambíguo: «o que é não aparece e o que aparece não é», segundo Cesariny.
Abjeccionismo seria a forma que teria de assumir, nas condições que se sabem, um movimento estruturalmente revolucionário (totalitaria ou totalitaristicamente revolucionário) como o surrealismo.
Assim é que, enquanto alguns neo-realistas foram fazendo romances proletários para a burguesia, o surrealista manteve-se, a maior parte do tempo, em silêncio, querendo com esse silêncio dizer muito mais do que a algazarra dos outros todos.
A aparente abstenção do surrealista é, no fundo, a única maneira de ter realmente agido em vez de reagido.
Proliferar editorial e industrialmente, quer com crónica da alta burguesia à Joaquim Paço de Arcos, quer com romances folclóricos à Aquilino, quer com ciclos ruralistas à Alves Redol, quer com histerias pseudo-místicas à Régio, quer com narrativas cripto-existencialistas à Virgílio Ferreira, foi sempre, para o surrealista, colaboracionismo e do pior (4).
O que levou muitos surrealistas, em climas totalitários ou semi-totalitários, a abster-se não digo de escrever mas de publicar (a suicidar-se política, literariamente ou realmente), foi, não há dúvida, uma violenta exigência ética, uma ardente necessidade de ar puro (não viciado).
Por isso, são eles talvez os únicos homens em que o homem ainda se pode reconhecer. Dir-se-ia que o surrealista foi o que conseguiu manter-se livre onde todos se submeteram à servidão, revoltado onde todos se conformaram, incorrupto onde todos se deixaram corromper: o que, apesar de abjecto, o reconheceu a tempo e se manteve irredutível às forças e formas suplementares da Abjecção. Há no surrealista uma ânsia de pureza que não deve nem pode confundir-se com nenhuma espécie de puritanismo. O surrealista sabe que está mergulhado na Abjecção e que pode fracassar no esforço que fez, faz ou fará para se libertar dela. No entanto, esse esforço - a revolta, a permanente revolta - é que importa saber se existe, ou se, mais cedo ou mais tarde, directa ou indirectamente, vem a ser substituído por qualquer conformismo.
Os surrealistas têm, de certa maneira, direito a sentir-se um grupo à parte (3) . Enquanto movimento contra todos os tipos de alienação , enquanto Ética em acção e Acção ética, enquanto Revolução total, o surrealismo é único no nosso tempo.
Mais do que nenhum outro movimento , portanto, tem o surrealismo sido vítima dos climas totalitários, promotores e protectores de todas as formas de alienação.
Outras revoluções pode ter havido na filosofia, nas ciências, na psicologia, nas artes, na literatura, na economia, na política, na pedagogia.
A Revolução, porém, aos surrealistas pertence.
A Revolução, no mais geral e profundo sentido, a Revolução que abranja o homem, simultaneamente na sua unidade, na sua totalidade e na sua identidade, só o surrealismo a tentou. E só ele continua a tentá-la.
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(1) Verdade seja que, se tudo estivesse preparado, por parte da ordem política que me contém, para me conduzir individualmente à liberdade – padrão único de eticidade – talvez não tivesse mérito «moral» consegui-lo.
Quando tudo conspira para me alienar, quando uma ordem totalitária ou semi-totalitária torne suicida a minha exigência de liberdade, é que o meu esforço tem verdadeiro mérito «moral», pois começa a ser um esforço de afirmação individual contra a negatividade da ordem colectiva e colectivista.
Se aquilo que por imperativo ético, ou o que deve ser não coincide obviamente com o que é, cada um terá que se realizar nas circunstâncias que lhe é dado viver.
(2) Só pode haver um critério de eticidade e esse critério é a liberdade. Sou tanto mais humano quanto mais livre for. Humanizar-me é libertar-me. Quanto mais liberdade perco (quanto mais me alieno a outrém ou a outra coisa) mais humanamente me empobreço, depaupero, degrado.
(3) Todo o humanismo tende para a teorização, explícita ou implícita, de uma aristocracia (o padrão humano ideal): aristocracia espiritual ou cultural, política ou militar, de sangue ou de dinheiro, em qualquer caso aristocracia.
(4) Muitos humanismos se têm preconizado no papel. Mas os humanismos não chegam para humanizar o homem. Alguns actuam mesmo contra o homem.
Uma doutrina não é um comportamento, um sistema não é uma conduta, uma teoria não é um acto. As ideias que eu perfilhe, só por si, nada garantem do meu modo de ser. Porque as ideias podem existir num mundo á parte da minha existência. As ideias em nada garantem o meu tipo de comportamento.
«Uma doutrina não vale pelo que os homens fazem dela, mas pelo que ela faz dos homens.»