terça-feira, 24 de julho de 2012

O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT

1-2- 69-11-04-ls> segunda-feira, 9 de Dezembro de 2002-scan

A EXPERIÊNCIA ABJECCIONISTA E O MUNDO IRRISÓRIO DE SAMUEL BECKETT

JUSTIFICAÇÃO (POLÍTICA) DO HUMOR NEGRO(*)

"Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).

4-11-1969 - Se já muitos observadores, a principio renitentes, aceitam os autores do absurdo ou do irrisório, incluindo-os no entanto sob a designação de vanguarda - onde os colocam por comodidade de exposição... -,mais difícil é reconhecerem em Samuel Beckett ou
Jean Genet, Pinter ou Artaud, Kafka ou Ionesco, sentido social ní-tido.
Em que medida podem os autores do absurdo - humor negro ou irrisório, como se preferir - ser autores de massas e até autores políticos?
Políticos, em sentido estrito, não o serão. Mas de massas creio que sim, porque o mundo de Samuel Beckett - tomado como pa-radigma dos autores "infernais" - é um mundo susceptível de ser compreendido e aceite por maiorias. Porque são as maiorias oprimidas que vivem as humilhações, o grotesco, o irrisório de Samuel Beckett e dos seus anti-heróis. São maiorias os que sentem (ou pressentem) a sua alienação, o seu abandono, a sua inferioridade psíquica e orgânica. Mais mesmo do que uma situação económica de opressão, as figuras de Samuel Beckett vivem o aviltamento e a degradação resultantes dessa opressão - por vezes hereditária. Envelhecem e apodrecem, julgando, no entanto (e aí surge o factor de ironia que torna humorística a situação trágica, que torna irrisório e risível o absurdo) alimentar altos ideais ao satisfazer ou pretender satisfazer as comezinhas necessidades primárias.
O mundo de Beckett evidencia, até ao paroxismo, o relativismo de tudo. O espectador assiste às mesquinhas ambições das figuras e delas se ri ou compadece. Mas logo nelas pensa de outra maneira, quando lhe é sugerido que as suas próprias ambições se tornam também mesquinhas e risíveis se forem referidas a outro termo mais exigente da escala. E assim por diante.
Inserido no jogo das relações humanas o princípio da relatividade - pressuposto pela morte de Deus - tudo nos parecerá ridículo e irrisório. Nenhum dos nossos esforços terá significado e nenhum gesto mais consistência do que os movimentos larvares, moribundos, frustrados das larvas humanas que são as personagens que vemos, no palco, desintegrar-se supondo que vivem, ou chamando vi-da a essa desintegração. "Começa-se a morrer, desde que se nasce." (Heresia cátara).
Em função disto, poderá acusar-se Samuel Beckett e os auto-res do absurdo ou humor negro de se preocuparam demasiado com o Absoluto? De serem, portanto, metafísicos e nada dialécticos?
O Absoluto a que estes autores, directa ou indirectamente, se referenciam, fará deles os arautos de uma metafísica ou de uma difícil e futura dialéctica?
A verdade é que sem a experiência - própria ou alheia - do Absurdo (a que se pode dar o nome de relativo) e sua vivência – ao nível existencial ou da recriação artística - não pode haver superação, nem problemática, nem dialéctica. Sem o ponto-limite a que os autores do "humor-negro" levam a existência humana, sem esse peso do trágico que ela comporta, não há projecto de acção criadora sincero. Sem a travessia do que pode considerar-se o extremo do niilismo, não há optimismo com justa noção da realidade. Para que o optimismo não caia no primarismo idealista, é necessário o ante-cedente de que os autores do absurdo foram os mais lúcidos cronistas.
Faziam falta e são imprescindíveis à marcha dialéctica da História, esses autores do nada, abjeccionistas ou teóricos da frustração e da revolta. A revolta é condição sine qua non - no plano psíquico - da revolução, a via pela qual esta amadurece e se torna adulta. Se humaniza.
Eis a justificação política (ou trans-politica?) para o que alguns observadores demasiado superficiais consideram a gratuita "decadência" do humor negro, do irrisório, do absurdo.

----
(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter sido publicado no suplemento literário d’ «A Capital», quando era coordenado por Maria Teresa Horta e corresponde a uma fase em que as intuições fulcrais dos anos cruciais começavam a tomar forma, depois das experiências surrealista e existencial (que posso resumir na palavra abjeccionismo, antecedente directo da ideia ecológica.

Nenhum comentário: