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DO NIILISMO AO SURREALISMO: 2 CARTAS DE AC A ACÁCIO BARRADAS
Sábado, 22 de Março de 2003
Acácio:
O teu interesse por um texto (quase) perdido, levou-me a fazer pesquisas nesta minha torre do tombo de 3 assoalhadas: na longa fila de dossiês Fercor, encontrei um que talvez possa ser a versão revista e agora já teclada em computador dessas tais 105 páginas que foste descobrir.
Este meu inquérito às origens, deu como resultado uma empreitada que ninguém (a não ser tu) me levaria hoje a realizar: tentar reconstituir o texto concorrente à APE, a partir das três versões (pelo menos) que poderão ter constituído a matriz.
A Razão sem Razão, como título do conjunto submetido ao júri da APE, foi um dos que me assaltavam na altura, fase pretensa e pretensiosamente niilista, sob a (im)pressão de leitura de alguns livros devastadores:
As Revelações da Morte, de Chestov – de facto o livro que mais me baralhou as meninges – mas também, nessa altura, «A Voz Subterrânea» (Dostoiewsky) , «A Origem da Tragédia» (Nietzsche), «Luz Central» (Ernesto Sampaio), «L’Obscenité et la loi de refléxion» (Henry Miller) , «Razão e Absoluto» (José Bacelar), «Molloy» (Samuel Beckett) e «Précis de Décomposition» ( E.M. Cioran).
Passando em revista o que ainda poderia restar desses autores, nestes cantos e recantos, foi com tristeza que verifiquei apenas os seguintes títulos:
Albert Camus – O Homem Revoltado – Ed. Livros do Brasil, Lisboa, 1951
Antonin Artaud – Em Plena Noite ou o Bluff Surrealista – Ed. Frenesi, Lisboa 2000
E.M. Cioran – A tentação de Existir – Ed. Relógio d’Água, Lisboa, 1988
Fiodor Mikhailovitch Dostoievski – Notas do Subterrâneo – Trad. de Moacir Werneck de Castro – Ed. Bertrand Brasil, Rio, 1989
Frederico Nietzche – A Genealogia da Moral - Ed. Guimarães, Lisboa, s/d
Frederico Nietzche – A Origem da Tragédia – Trad. Álvaro Ribeiro – Ed. Guimarães, Lisboa, 1954
Frederico Nietzche – Assim Falava Zaratustra – Ed. Guimarães, Lisboa, s/d
Frederico Nietzche – Despojos de uma Tragédia (Correspondência Inédita) – Ed. Educação Nacional, Porto, 1944
Frederico Nietzche – Ecce Homo – Como se Chega ser o que se é – Trad. e prefácio de José Marinho – Ed. Guimarães, Lisboa, 1952
Georges Bataille – A Literatura e o Mal – Ed. Ulisseia, Lisboa, 1957
Georges Bataille – A Parte Maldita – Ed. Imago, Rio, 1975
Georges Bataille – O Erotismo – Ed. Moraes, Lisboa, 1968
Henry Miller – Obscenidade e Reflexão – Prefácio de Pedro Alvim – Ed. Vega, Lisboa, 1991
Henry Miller – Souvenir, Souvenirs – Ed. Gallimard , Paris, 1953 (L’Obscenité et la loi de refléxion)
José Bacelar – Razão e Absoluto – Ed. Seara Nova, Lisboa, 1947
Leão Chestov – As Revelações da Morte – Tradução , prefácio e notas de Jorge de Sena – Ed. Morais, Lisboa, 1960
Samuel Beckett – Dias Felizes – Ed. Estampa, 1973
Se não fosse (se não tivesse sido ) plágio, esse texto, esse conjunto de textos que descobriste dever-se-ia ter chamado «As Revelações da Morte» a quem esses textos integralmente se devem. Aliás, o título que está para ficar, «O Ser & o Nada», não fosse o & e seria plágio do sr. Sartre. Mas esse nunca li nem lerei, conheço-o mais de quando o Zeca Afonso, em Faro, nos obcecava (aos do seu grupo) com intermináveis citações d’O Ser e o Nada do interminável Sartre: não sei se o Zeca chegou a defender a tese que projectava sobre esse livro.
Se me atrevi a digitalizar textos «condenados», foi só porque, com a tua descoberta, só esse texto outrora chamado «A Razão sem Razão», justificaria tamanha como inútil tarefa!
Os leit-motiv de 1963 (data provável do texto que descobriste) andam à volta de alguns itens que bem podiam ter sido títulos de outros textos, extensão desse que descobriste e que tinha a pretensão de constituir uma «súmula teológica» de um ateu :
A experiência do Nada
A Voz Subterrânea
Agir? Não Agir
As Revelações da Morte
Cadernos de um aprendiz
Corroer o Herói
Discurso niilista de um franco atirador
Ensaios sobre o Obsceno
Imitação de Antonin Artaud no Hospício de Rodez
O Anónimo Toda a Gente
O Ser & o Nada (cópia descarada de um título do Sartre)
Páginas em Branco (196 0/63)
Prefácio ao homem subterrâneo
Suma Ateológica
As minhas pesquisas conduziram-me a um manuscrito tipo rascunho (que desconfio ser cópia a papel químico do que está na Torre do Tombo) com anotações à margem do crítico Gastão Cruz, que me ajudou muito a desistir das veleidades que então ainda tinha de vir a ser qualquer coisa parecida com um escritor. Foram essas veleidades que me levaram exactamente a concorrer ao prémio da APE.
Já nessa data me levava pouco a sério (1960) mas acho que, apesar de tudo, ainda me levava mais a sério do que hoje.
É esse manuscrito, como 4ª versão possível, que me falta converter em file de computador, dando assim por finda esta tarefa de exumar cadáveres. Graças ao teu alerta e à tua descoberta, fica assim resolvida a tal «fase niilista», já que só tinha até agora teclado no scan a fase contra-niilista, «surrealismo & surrealistas».
Teu amigo
Afonso ♥♥♥
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CARTA POR E-MAIL DE AFONSO CAUTELA A ACÁCIO BARRADAS
Quinta-feira, 13 de Março de 2003
Acácio: Inesperada, a tua mensagem por mail acaba por ser a melhor prenda que me podiam dar, alguns dias depois de 19 de Fevereiro, em que constatei ter feito 70 anos de idade, o que, sendo um número redondo, me faz entrar em acelerado naquilo que a ralenti já vinha a fazer há tempo: a minha contagem decrescente.
Neste quadro do «countdown», a tua missiva ainda se torna mais valiosa e mesmo preciosa: não só por teres desencantado um texto que eu tinha uma vaga ideia de ter escrito – o título, de facto, « A Razão sem Razão», aparece-me às vezes em listagens de inéditos que por aqui vou fazendo – ou talvez pensado escrever sem nunca concretizar o projecto. Em suma, na melhor das hipóteses ter-se-ia tratado de mais um fantasma incluído no vasto rol de um dossiê a que chamo o Afonso dos Projectos.
Vais tu e descobres nos arquivos reais esse fantasma, ainda por cima cumulas-me de elogios e amizade. Enfim, melhor do que o texto, de certeza, foi a tua atitude, a tua descoberta e a tua ternura e atenção em teres comunicado tudo isso, nos termos em que o fazes.
De facto, aos 70 anos, foi uma das melhores prendas que recebi nesta vida. Já agora e como termo de comparação, vou dizer-te que o outro grande tesouro que tive o gosto de receber foi a obra de Etienne Guillé, um senhor que um dia eu ainda gostaria de propor como leitura obrigatória aos meus amigos. Talvez o faça já num site que estou a realizar para pôr on line – O Gato das Letras – e onde vou fazer o balanço das minhas amizades e paixões, em livros e nem só.
Se pudermos continuar intercomunicando, irás saber notícias à medida que o projecto for avançando.
Para já e relativamente aos dois exemplares do texto que descobriste, estás autorizado a tratar dele como se fosse teu. Se me chegar depois uma cópia, talvez o inclua num trabalho de empreitada que me tem levado meses quando eu queria que só me tivesse ocupado dias: o scan de textos antigos, incluindo livros e que vou «editar» (complete works!!!!) num formato maravilhoso e simples que o computador permite: o chamado PDF.
Ver as toneladas de papel (lixo) aqui de casa em um único cd, ainda consegue dar-me vontade para levar de vencida este meu último projecto: no site «Gato das Letras», lá estarão os nomes tutelares que citas: Artaud e Natália Correia, além de tantos e tantos outros, que o pecado mortal nosso – jornalistas – é o da dispersão por mil e um caminhos, autores, livros, eventos, etc.
Por agora, fica o meu agradecimento e a inteira disponibilidade para intercomunicarmos sobre o que para ti forem prioridades: incluindo os teus próprios trabalhos de escritor/jornalista, e já que tanto te interessas pelo trabalho dos outros.
Até breve
Afonso Cautela♥
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