quarta-feira, 18 de julho de 2012
MÁRIO CESARINY SEMPRE-I
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1924-1964: SURREALISMO-ABJECCIONISMO(*)
16/Maio/1963
«Por muito diferentes que sejam (e são-no), uma atitude comum nos escritores destes três conjuntos: a cólera ou revolta contra um estado de coisas indesejável.»
Vieram à tona editorial, na última semana, três antologias que exprimem três tendências, correntes ou movimentos afins.
Uma, devida a Jorge Daun, na colecção «Best-Sellers», põe em português, versos e prosa de alguns «destacados representantes da «beat generation» , jovens da casa dos trinta que se reunem algures, em Nova Iorque, para tocar «jazz», drogar-se e angustiar-se.
Outra, apresenta em duvidosa tradução, os depoimentos dos «angry man», que parece não estarem muito satisfeitos com a história que por ali se vai escrevendo. Quase todos fazem profissão de fé existencialista, por oposição à forte e dominante corrente analítica da Grã Bretanha, pátria dos lógicos.
Finalmente e por ordem de entrada no mercado, 32 autores coleccionados carinhosamente por Mário Cesariny de Vasconcelos.
Por muito diferentes que sejam (e são-no), uma atitude comum nos escritores destes três conjuntos: a cólera ou revolta contra um estado de coisas indesejável. Provam eles que há motivos para o desespero em toda a parte. E que, de certo modo, o mal dos outros é ainda um consolo para o nosso. Provam também estes escritores e grupos de escritores, que uma família de espíritos, dispersa pelo mundo, ensaia uma saída do mundo, país, cidade e quarto onde os meteram. Os dilemas cada vez mais dilacerantes impostos a quem não pode escolher mas tem de escolher, criam esta reacção em cadeia que é, no plano do espírito, o equivalente simbólico da reacção em cadeia no domínio atómico.
Além deste ponto comum - o reconhecimento de e a revo1ta contra uma Doença, Queda, Crise ou Abjecção - outras constantes se surpreendem nos escritores e grupos de escritores aparecidos aquém e além-Atlântico. Outra constante que é, por exemplo, o fastio, a desconfiança destes poetas perante as realizações consideradas mágicas e máximas da técnica moderna: a energia nuclear, o cérebro electrónico, os foguetes interplanetários, e também perante as «maravilhas» da matemática ou do avanço das ciências experimentais.
Sabe-se que nada será possível fora da ciência, ou contra a ciência. Mas sabe-se também que a ciência nada mais poderá (terá direito a) ser do que serva do homem. Não se nega a ciência mas também não se lhe atribui papel mais importante que o de meio para que o homem se liberte, dominando-se e dominando a natureza. Se é isto que sempre esquecem os loucos da lógica e os bêbado da técnica, é essa a função bem prática dos poetas: criar 1iberdade.
Estas constantes, porém, não autorizam ninguém a confundir movimentos ou modos caracterizados de reagir perante a mesma Doença, Crise ou Abjecção. Podem aparentar-se pelo ponto de par-tida comum mas distinguem-se, pelas vias, negativas ou positivas, que a sua revolta segue. Sintomas da Decadência, como alguns pretendem, ou prenúncios de uma revolução sui-generis como outros sonham, não há dúvida é que estes movimentos caracterizam a nossa época e recortam-lhe o perfil neurótico. Afluentes de uma única e grande corrente oposta às correntes alienadoras e desintegradoras do homem, esta juventude (e as suas manifestações, aparentemente apenas literárias), é um acto com que tem de contar-se na inexorável cadeia dos factos que vão fazendo, «malgré» eles e nós, a História. Um acto que, pelo menos, importa conhecer e reconhecer ainda que seja para os insultar.
Beatnicks em Nova Iorque, angry man em Londres, surrealistas em Paris, abjeccionistas em Lisboa - o lugar não importa (embora às vezes importe), o que (também) importa é a universalidade de fenómeno. E saber que, na história mas contra a história, se veio fazendo a única literatura viva do nosso tempo. Todos os escritores e movimentos de escritores verdadeiramente vivazes (vivos), arrancam, marcam posição contra a história Isto quer dizer que fora da história não há literatura que resista., mas que também não resiste a literatura a favor da história . Uma e outra, oscilando entre «a propaganda» e a «frivolidade» , nas palavras de Camus, morreu com aquilo com que nasceu, ou nasceu morta (academicismos, académicos).
Sem isto, sem este sentido crítico ou sentido da crise, não haverá literatura. Sem isto, é que nunca se compreenderá nada, nem de poesia, nem de surrealismo, nem agora de abjeccionismo. ( Poeta, nesta acepção, será o crítico, o escritor que - faça versos, ensaios, novelas, romances ou dramas - tem o sentido crítico deste tempo e deste mundo. E o menos crítico de todos é talvez e quase sempre o que faz críticas...).
Em que possam diferir entre si estes escritores e movimentos de escritores, importa menos, por agora, do que aquilo que lhes é comum. Interessa assina-lar é que se distinguem dos (e opõem aos) movimentos puramente estéticos ou formais que agitam, de vez em quando, a bocejante pasmaceira das nossas montras de novidades; têm sempre, estes outros, o ar de escola reunida, de lição aprendida de cor, de moda que se adopta e adapta, de fórmula que se repete.
Micro-movimentos, de facto, pura-mente locais ou regionais, pouco alcance têm além do que os seus cultores lhes querem atribuir, através de insistentes críticas dos mesmos sobre os mesmos e de copiosos artigos doutrinais. Exemplos destes micromovimentos, encontramo-los principalmente na pintura, mas aí com toda a justificação, pois as pesquisas formais são, em pintura, tudo ou quase tudo. Em literatura, porém, a novidade formal vem por acréscimo, resulta inevitavelmente de um excesso de riqueza criadora. Por isso, aí, os movimentos formais são sempre de superfície e resultam académicos, já que a revolução técnica ou formal em literatura, tem de ser sempre consequência de uma revolução nas estruturas da personalidade do escritor (em relação a si próprio, em relação aos outros).
É esta diferença que contribui para discernir uma unidade (não uniformidade) de fundo nos macro-movimentos acima indicados, ao mesmo tempo que os distingue e separa, em conjunto, dos micro-movimentos de alcance meramente estilístico ou técnico ou estético, tristes documentos de um academismo que teima em sobreviver sob disfarces modernistas. Retomam todos esses micromovimentos, uma tendência que todos os movimentos verdadeiramente modernos têm combatido. A miséria da literatura confundida com a política, foi com efeito um dos alvos da luta surrealista e continuaria sendo o de todos os movimentos directa ou indirectamente a ela aparentados, partindo do mesmo ponto e alvejando o mesmo alvo.
Por isso é que sobre Surrealismo-Abjeccionismo - título da antologia que Mário Cesariny vinha há anos organizando e a tipografia desorganizando - nem vale a pena falar. Se o que seja surrealismo não o aprenderam eles, os cronistas, ao longo de 40 anos, muito menos poderão entender o que seja abjeccionismo noutros quarenta. Diga-se apenas que o abjeccionismo poderá não ser muitas coisas, mas uma coisa há que nunca será: um movimento para agitar as artes, uma nova estética, uma receita para cozinhar romances ou poemas, quer dizer, uma forma mais ou menos mascarada, de colaboracionismo na Abjecção.
Um pouco para dizer quem vive, um pouco para dizer quem morre, um pouco para não ensinar imbecis e um pouco para indisciplinar almas à Fernando Pessoa, - medidas, todas elas, de largo alcance terapêutico e farmacêutico, higiénico e crítico, polémico e propedêutico - eis um pouco (um FRAGMENTO) do que tem sido a personalidade agente de Mário Cesariny, sal da sua Poesia, segredo da sua indecomponibilidade e um pouco (um FRAGMENTO) também do que pode ser esta antologia, - esta recolha de textos e documentos gráficos.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em 16/Maio/1963
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