quarta-feira, 18 de julho de 2012

SURREALISMO & SURREALISTAS-4

breton-1- notas de leitura - surrealismo & surrealistas - publicados ac de 1963

ARTE E ANTI-ARTE : OU O ESPÍRITO DA MODERNIDADE(*)

12/12/1963

«A arte é uma estupidez» - na opinião de André Breton que o afirma e na de todos os que defendem um conceito e critério exigente de Modernidade.

É principalmente contra os géneros, contra a ordem estética ou teoria da arte e até mesmo contra a própria existência das artes enquanto artes que se tem levantado a revolução moderna, aquilo que normalmente se conhece por Modernismo ou Modernidade.
Mas talvez porque a inércia das palavras é a mais difícil de vencer, vemos que, ainda quando o espírito de modernidade, embora não completamente triunfante, conseguiu abrir caminho e criar raízes, persiste uma terminologia obsoleta, anacrónica, reaccionária, à base de lugares-comuns clássicos ou académicos entre os que têm por profissão falar dos produtos artísticos.
Se no domínio da criação muito se tem conseguido, e a subversão da ordem estética é quase total, outro tanto não aconteceu à terminologia dos que acompanham hebdomadariamente essas criações e essa revolução. Afinal, continua a falar-se de artes, de géneros, de beleza, de ideais de beleza, de poesia como género literário, de poemas e estruturas poemáticas, enfim, de todo um arsenal de boas maneiras para poeta usar, as 100 maneiras de cozinhar poesia ao alcance de todas as bolsas que são as estéticas e autores de estéticas, também estes acessíveis a todas as bolsas e inteligências.
E ficamos sem perceber. Afinal o que foi e é a Modernidade ou, como outros preferem, o Modernismo? Afinal o que se alterou no cérebro dos teóricos paralelamente à transformação operada nos poetas? A verdade é que tudo parece continuar como os clássicos e seus primos académicos lá os puseram, lá o quiseram.
Fala-se, com a maior sem-cerimónia, de pintura moderna, de poesia moderna, de teatro moderno - mas, vendo bem, que sentido podem ter essas palavras? Que sentido pode ter o adjectivo moderno aposto à palavra arte ou a qualquer das palavras consideradas artes pelas estéticas e autores de estéticas? Todas elas, porém, aparecem com uma frequência irritante na maioria ou totalidade dos publicistas encarregados de falar sobre aquilo que os por eles considerados artistas vão produzindo. Tanto os combatem como os que defendem o moderno são concordes e unânimes neste ponto, nem uns nem outros abdicando da mais antimoderna das atitudes que é continuar considerando as artes enquanto artes, isto é, enquanto ordens fixas reguladas por leis inflexíveis.
Ora o moderno só pode ser uma coisa: absoluta liberdade. O moderno não se rebela contra criações «artísticas» mas rebela-se contra o que nelas é «artístico» no mau sentido: obediência cega a uma ordem estética ou cartilha de bom comportamento para poetas. O moderno significa poesia, que por sua vez significa «liberdade livre». Para o moderno, para um conceito de moderno que não se estribe em meras extravagâncias técnicas ou formais mas que radique num profundo critério paradigmático, qualquer das artes enquanto arte é lixo. Só a arte que se excede, que excede as leis canónicas da sua estética para dar ao homem as formas de absoluto que a sua relatividade exige, só essa arte é ao mesmo tempo mais e menos do que arte; mais que arte no sentido que esta teve e teima em ter de pequenina obediência e servidão; menos que arte, na acepção que esta deverá ter, de futuro e de uma vez para sempre, de criação soberana e obscena da imaginação.
«A arte é uma estupidez» - na opinião de André Breton que o afirma e na de todos os que defendem um conceito e critério exigente de Modernidade. Mas arte, na primeira acepção que acima indiquei, ou arte como produto obrigado a mote, obrigado a géneros, obrigado a cânones.

Outro sentido não tem nem podia ter a ocorrência do anti-romance, do anti-teatro, da anti-pintura... Com o prefixo «anti» tem-se tentado obstar à dificuldade terminológica de designar, na literatura, no teatro, na pintura, não aquilo que é canónico e académico mas o que na literatura excede a literatura, no teatro excede o teatro, na pintura excede a pintura, no que em cada forma de criação artística excede a «arte» no mau sentido.
E exceder a arte, destruir os géneros, desobedecer às leis, subverter em suma a ordem clássica, sendo o que se pode considerar a revolução verdadeiramente moderna, é, simultaneamente, remontar à mais antiga tradição, à poesia quimicamente pura e ainda não contaminada pelo contacto das «belas» coisas clássicas.
E’ que há grande diferença (e diferença que importa indefinidamente repetir porque indefinidamente se esquece) entre o moderno que retoma a mais antiga tradição - esse moderno de sempre, esquecido e esmagado pela hegemonia dos períodos clássicos - e o falso moderno, o moderno de forma e fachada, o moderno dos berliques e berloques estilísticos e técnicos, que não faz mais do que repor os referidos períodos clássicos, sob a forma mais insidiosa: a do academismo pseudo-moderno, os neo-academistas designados eufemisticamente de neo- classicismos.
O moderno ou poético opõe-se drasticamente à tradição clássica ou academizante, mas não se opõe à tradição autêntica do verdadeiro espírito da poesia que as artes, as letras, as ciências e as filosofias da brilhante cadeia ou contra-corrente greco-latina ocidental acharam por bem enterrar, denegrir, ocultar. Outra aliás não é a descoberta que a Modernidade fez das pinturas das cavernas, da arte dos povos primitivos, dos loucos e das crianças, de tudo o que, anterior ou alheio à órbita ocidental, pôde escapar e mantém intacto o puro espírito poético.
Para o moderno, para o verdadeiro conceito de moderno que é o poético, a arte é coisa que não existe. Existe, é claro, nos museus, mas não existe viva, e só o vivo interessa ao moderno, porque moderno sempre foi o contrário de morto, moderno sempre teve que significar aquilo que, com um dia, um século ou um milénio de existência permanece vivo.
A arte, qualquer forma de arte, quando o moderno ou poético a invade, solicita e absorve, desaparece enquanto arte, enquanto estética, enquanto obediência mais ou menos disfarçada a um «ideal de beleza».

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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário do «Diário de Notícias», em 12/12/1963

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