domingo, 22 de julho de 2012

O ESPÍRITO SURREALISTA PARA LÁ DAS ESCOLAS-I


1-2- surrealismo & surrealistas - inéditos ac dos primeiros anos 60

SABEDORIA FASCINANTE VERSUS ESCOLÁSTICAS: SURREALISMO OU ESPÍRITO SURREALISTA? (*)

Enquanto movimento organizado, com “livros de texto” e referencial doutrinário, na há dúvida de que o surrealismo tem quarenta anos (1924-1964). O espírito surrealista, porém, poderá afirmar-se que tem 4.000, se o identificarmos (muito legitimamente, aliás) com a arte de todos os tempos sem distinção hierárquica estabelecida sobre períodos clássicos e românticos, sem discriminação entre arte primitiva e arte civilizada. A consentir nesta discriminação, só para inverter os termos e chamar primitiva, bárbara ou académica à arte dita civilizada, e chamar civilizada (porque de todas as civilizações conhecidas e desconhecidas) à arte dita primitiva...
Se mais nada tivesse a seu favor, ao surrea1ismo pertencia o mérito de ter feito essa e outras distinções, pondo no seu lugar de luxo (e de lixo) o clássica, no cadeirão de seda o académico e no mausoléu os mortos.
Um aspecto há em que o surrealismo significa um contributo sempre positivo, seja qual for o ponto de vista sob que o encaremos: refiro-me ao seu ímpeto contra todos os academismos, até mesmo e principalmente o academismo que pudesse resultar das próprias teses e realizações surrealistas. Porque estas - diz o surrealista - são as mais perniciosas formas de modernismo, formas neo-académicas e pseudo-modernistas, que se torna necessário denunciar e combater com urgência, com intransigência.
Por isso sustenta uma atitude permanentemente polémica, até contra si mesmo, na medida em que é facilmente transformável noutro academismo.
A sua recusa de estilos, géneros, dinastias literárias, eras e escolas foi no entanto exemplar e - reconheça-se - mais sadia e vio1enta do que qualquer outra. O segredo desta virulência está talvez em que o surrealismo procurou colocar o problema num plano diferente do plano estético, afirmando que a luta não se trava ao nível das escolas - escolas contra escolas - mas ao nível de vivências culturais. A luta - afirma o surrealismo um tanto quimericamente - é a da cultura ou sabedoria fascinante contra a cultura clássica e períodos subsequentes. Se apurarmos o ouvido - afirma - verificaremos que nunca pia em solo: atrás do pio, há sempre em surdina a sanfona clássica, o pífaro esteticista, o trombone neo-realista, etc. E contra as solicítações académícas há que manter a lucidez e a vigilância e não admitir que a revolta surrealista possa alguma vez assimilar-se com ou render-se à mentalidade do Establishment.
É com essas que o surrealista não quer nem pode confundir-se, porque “ser surrealista” é fundamentalmente libertar-se da “imunda” cultura para onde tudo o atira e dessa mesma cultura receber as represálias previstas em todos os códigos de todas as ordens de todos os bons costumes. Surrealista é o obsceno e obsceno o que exerce um esforço de libertação relativamente a todos os maquinismos opressores e repressores da liberdade individual. Recordemos: estado, igreja, exército, escola.
Da escola, porém, parte quase tudo - afirma o surrealista - , porque toda a obra de «humanização» é obra de mentalização e à escola, depositária dos humanismos e das humanidades, está entregue o destino, estrutura e condições da cultura estabelecida. De acordo com e na órbita da instituição madre - a escola - as outras giram à sua mercê e à mercê delas os indivíduos que as servem.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, dos anos 60, deverá ter ficado inédito

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