domingo, 22 de julho de 2012

RIMBAUD ABSOLUTAMENTE MODERNO

1-3-s&s-2 - surrealismo & surrealistas – inédito?

A LITERATURA ANTI-LITERÁRIA? OU A REVIRAVOLTA SURREALISTA? (*)

«Il faut être absolument moderne» - Rimbaud

Relativamente à literatura “literária”, as críticas do surrealismo acertam geralmente no alvo e puseram em evidência o núcleo do problema.
Se para a crise, doença ou fadiga de “aqui estar agora”, se para o mal-estar, o fastio, o vómito de existir só a ciência, a técnica, a política e a religião emitem parecer, aconselhando paciência, afirmando esperança (e que no futuro as futuras gerações ganharão o que nós perdemos, hão-de viver aquilo por que muitas gerações morreram), o surrealismo levanta-se para gritar “ burla” a essa encomendação para o futuro e para a espécie das nossas angústias presentes, individuais, concretas.
O surrealismo grita “burla” e chama a literatura para substituir no coração dos homens aquilo que a ciência, a religião, a política e a técnica coligadas prometeram mas não deram e ainda por cima roubaram: uma compensação para o tédio quotidiano, uma cura para a neurose crónica do homem alienado (quer esta neurose se chame capitalismo, socialismo, fascismo, sindicalismo, totalitarismo das direitas ou totalitarismos das esquerdas), um impedimento à morte sistemática e em massa, a norte e a sul, a leste e a oeste.
Eis o que alguns surrealistas parecem ter visto com mais lucidez do que ninguém: a literatura que não reverter imediata e directamente à sua verdadeira função - libertar o homem, na medida em que é possível ao homem libertar-se individualmente -, é porcaria, é lixo, é abjecção, paleio, paliativo, mentira; sem esquecer que a verdadeira libertação não é apenas espiritual nem apenas material, o surrealismo concede à literatura, exige à literatura uma função de urgência ou emergência. O surrealista pergunta: no dia em que o homem for feliz, precisará da literatura para alguma coisa?
Particularmente no que respeita ao romance (ao novo-romance, incluído), o surrealismo manteve sempre uma especial aversão, vendo nisso - no romanesco - um dos maiores atentados contra o real, um retrocesso assustador nas técnicas destinadas a promover e a fomentar a imaginação criadora, uma forma mais de, com histórias e historietas, “distrair e adiar”, distrair os homens dos problemas e adiar as soluções.

Para o surrealista, a imaginação é mais do que muitos queriam e menos do que muitos julgam. É a única linguagem da experiência única e não o anedotário dos escritores de “fecunda imaginação” que se desentranham a contar para toda a gente, em termos de toda a gente, o que acontece a toda a gente no meio de toda a gente, as intrigas com muita gente.

A denúncia da literatura “literária” ( da imunda literatura) feita por Breton e Artaud, é um dos aspectos em que o surrealismo continua vigente e vigente a sua crítica. A inflação “ficcionista”, - desde as clássicas obras-primas aos “best-sellers” de 500 páginas que se substituem conforme os prémios, os júris, as máquinas publicitárias e as empresas editoras interessadas, subentendem uma organização que desagradaria necessariamente à exigentíssima “deontologia profissional” dos surrealistas. O seu quixotismo não invalida a força dessa atitude. A “industrialização das artes e das letras” assume por vezes proporções e aspectos que só não afectam e ofendem os completamente insensíveis ao mecanismo da abjecção.
Se o “romanesco” - seja o naturalista e realista de anteontem, seja o neo-realista de ontem, seja o não-romance de hoje - é para o surrealista sempre literatura “literária”, a “imunda” literatura a entreter o tempo e a mascarar os problemas, o acto surrealista supremo, mesmo quando se revela através da literatura, dirige-se ao centro em fogo das questões e dos problemas. Num processo de iniciação surrealista, a literatura não existe como literatura - como um fim em si mesma - , como “literatura literária”. É um meio, um sinal, uma técnica, um reagente que permita a acção de entrada no imprevisto, a conquista do desconhecido, a metamorfose do corpo que escreve.
Se “il faut être absolument moderne”, se com isso queria o Rimbaud dizer que é preciso ser absolutamente contra o clássico e contra o académico e contra o romântico e contra o pseudo-moderno ou neo-académico, se ser moderno, absolutamente moderno, é praticar a Reviravolta, a Revolução, a Conversão, a Desobediência, o Salto Mortal e ser, corpo a corpo, anti-história-pátio-das-comédías-europeu, - quem anda por aí convencido de todas ou de algumas das virtudes da ubérrima cultura vigente, não é moderno: será entendido, enciclopédico, célebre, brilhante, bolsa de estudo, técnico de uma especialidade, escravo numa sociedade de escravos, obediente, social, venerador e obrigado. Será tudo isso, será mais do que isso, mas - proclama o surrealista - não é mais nada além disso.
“Ah! a grande faina de enterrar os vivos e desenterrar os mortos.!”
Revelou Breton algumas afinidades “subterrâneas” entre autores de muitas épocas e diversos lugares, permitindo a reconstituição de alguns terrenos pouco estudados e mal conhecidos. Deve-se-lhe ter combatido os “preconceitos do racionalismo” e foi esse o seu maior mérito. Nem Breton nem nenhum surrealista proclamou alguma vez a loucura generalizada como método para conhecer a realidade e dominá-la. Combateu, sim, a loucura e a estupidez da inteligência que não reconhece os seus limites, a superstição da ciência, a mitologia do racional, a metafísica das doutrinas pretensamente anti-metafísicas. No Grande Rio, no Rio Subterrâneo muitos foram os parentescos encontrados, correntes e subcorrentes que fazem do surrealismo um ponto de encontro e de partida, sempre móvel, sempre instável na sua função propedêutica de abrir caminhos e portas em vez de os fechar.
Por isso o surrealismo investiu principalmente nos domínios daquilo que, por qualquer preconceito, por qualquer moral, por qualquer sistema, fora considerado “proibido”, secreto, utópico, inconveniente ou imoral. Foi essa a grande aventura, o grande debate. Breton apenas desafiou posições estabelecidas, lugares-comuns, superstições, fanatismos, viessem eles em nome do racionalismo ou do irracionalismo. Levantou o “mapa da região” e permitiu que novos exploradores se aventurassem nele.
Se poesia é a”liberdade livre” a que se referia Rimbaud e o acto de liberdade livre o acto obsceno, - do acto poético se dirá que nada tem a ver com as antinomias e categorias estabelecidas por uma ordem intelectual que ele principia, enquanto livre liberdade, por repudiar.
Seja qual for a linguagem que usa - literatura, pintura, música, teatro, cinema — o poeta só é poeta, quer dizer, criador, quando destruir algumas ou todas as leis da ordem estética. Destruídas elas, fundidos temos os géneros, fundidas teremos as artes, fundidas teremos as antinomias.

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(*) Este texto de Afonso Cautela e provavelmente de 1956 + ou -, deverá ter ficado inédito

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