domingo, 22 de julho de 2012

A ÉTICA DO SURREALISMO

1-4 -56-1- surrealismo e surrealistas

O ACADEMISMO DO MODERNISMO: 
ENCONTRO E DESENCONTRO COM OS SURREALISTAS

1956

MAIS ALGUNS MILHOS HÍBRIDOS

Voltemos ao Grupo de Lisboa. Várias metamorfoses sofreu, de surrealizante a surrealista e a des-surrealizante, com surrealistas de nome que o não eram de facto e com surrealistas de facto que o não eram de nome.
Se «Contraponto-revista» representa, como dissemos, o hibridismo neo-mais surrealista, se a revista «Árvore» representa o surrealismo a des-surrealizar-se, com ponto de inversão em Éluard, e se o existencialismo nunca teve lugar nem colugar em nenhum periódico português, os «Córnios» representam aproximativamente o hibridismo do existencialismo com o surrealismo, por inspiração de Eduardo Lourenço, muito lido nos filósofos do concreto e que só é pena tenha sido mais um divulgador bem informado do existencialismo europeu, do que um existencialista que nos desse, em língua portuguesa, um existencialismo português, pela transposição (e não apenas pela tradução) do espírito existencial.
O desespero, o suicídio, a falta de metafísica, a clareza até certo ponto racional, a cumplicidade do surrealismo para com o marxismo contra o existencialismo, acoimado por aquele de “idealista”, o sentido do concreto que esse tal “idealismo” sempre manifestou em oposição ao abstracto do materialismo dialéctico, bebido em Hegel, o Metafísico e o Idealista, o sentido do absurdo que não agradava aos cínicos e epicuristas com raízes em Sade e que gostam mais de viver do que de bananas, o ascetismo inerente a muitos existencialistas, a começar em Nietzsche e, finalmente, e talvez sobretudo, o descrédito em que o existencialismo fez entrar as molas-chave do não idealista surrealismo (liberdade, transformação do mundo e amor, cujo descrédito Sartre e Camus levaram à última das últimas consequências) - tudo isto impedia a fusão (embora não impedisse, por esses críticos além, a confusão...) entre as sucursais portuguesas das escolas de Sartre e Breton.
O surrealismo, inclusivamente, tem fumos de filosofia ética, de posição vital, de humanismo, o que o existencialismo só por graça e gosto do jogar com os chavões humanistas pode querer.
”Desespero humanista”- escreveu o heterodoxo Eduardo Lourenço. O seu amigo França é que não deve gostar de ouvir falar em desesperos, ele que se confessa bretonista a este ponto: « É o homem mais lúcido dos nossos anos de vida: André Breton.».
Com Sade, Henry Miller, Lawrence e umas festas nupciais a André Gide, viu-se a «antologia dos autores modernos» em muito sério transe de operar a viragem que falta na dobradiça deste meio século português. Mas chegou ali (ali, ao tal sítio) e engasgou-se. A hereditariedade reconhecida nesses sacerdotes pela liberdade dos máximos, foi a virtude que, por nossa parte, conhecemos e reconhecemos nos robicundos cinco números de uma bela e europeia revista. De todas as exegeses biográficas pouco mais se extraiu do que negrume, devido talvez ao intenso brilho do sol (negro), mas ficamos ao menos a saber quais eram os santos tutelares do movimento. Sobre Nietzsche, o silêncio; deve ser considerado da periferia... Sobre o existencialismo, o já notado encosto desconfiado.
Ora o imoralismo, selo velho de velhas batalhas a cavalo, desactualizado nos tempos das batalhas frugalmente mantidas, mecanizadas e atomizadas, era à data já um lugar-comum. Mas de lugares-comuns se faz o nosso assento e se estratificam solos de onde hão-de nascer as ideias novas.
O imoralismo serviu, ainda quando não servisse Emanuel Mounier ou Rolland na França, Tagore ainda vivo, na Índia, a ensinar aos homens a arte do ser criança, Lagerloff na Suécia, reconstituindo sagas como um Fedro moderno, Kazantzaki na Grécia e Istrati na Roménia; o imoralismo serviu, que mais não fosse para estrato de segurança sobre o qual florescessem novas formas de moralidade humana. Nunca se poderiam dar os nossos conterrâneos dos «Córnios» por vistos e achados, tanto em relação aqueles nomes como ao do prório anti-humanista Nietzsche. E não podiam porque nem sequer o irracionalismo os fez ver que o fogo ateado na Europa, tarde e a más horas, a estava finalmente ligando ao velhíssimo continente dos budas e a fazer dela a justíssima península de uma Ásia que o teimava há centenas de séculos em o ser pela geografia mas ainda o não era pela cultura.
E não deram ouvidos a Nietzsche, porque o primeiro espeleólogo da Modernidade fora selado pelos detentores de mandos demasiado hediondos para que houvesse coragem de partir o lacre e ver afinal onde residia a marosca: se no suposto doutrinador e explicador da hediondez, se nos futuros aproveitadores do génio ao serviço de políticas de trazer por casa.

Sobre tudo isto, o que ensaiou a nossa “antologia de autores modernos»? Uma hermética conjugação de estudos hermenêuticos, como se o pão da arte fosse tão bom de roer como o osso histórico, um rosário de traduções, de reivindicações, de ingenuidades de pensamento aprendidas no ”pensador” Fernando Pessoa (e assim se caluniou o maior actor português dos tempos modernos e o mais distraído dos pensadores mecanógrafos...). Os professores de filosofia, os didactas da estética e do sentimento, os propugnadores de uma crítica científica e, por extensão, de uma poesia também científica, os estilistas, os académicos do modernismo, ai iam tendo o seu quartel general, se não fosse a avisada argúcia do coordenador. Todavia, em matéria de renovação estética, tudo foi póstumo. E «Pentacórnio» espatifa-se às suas próprias mãos. Inadaptação ou incapacidade?

Entretanto, chocava-se a «Graal». E que pinto calçudo saiu! Uns leves pios de poesia concreta quiseram estabelecer o pânico mas o caldo já trazia a virulência atenuada porque a renovação...não era nova, vinha do Brasil, vinha de toda a parte menos de onde se podia pensar que viesse, excepto se se pensasse na Bienal de S. Paulo e no movimento turístico que a completa. Mercado propício, tanto à poesia de David Mourão Ferreira, como à prosa do senhor José-Augusto França, no Brasil (S. Paulo) deram afinal os Córnios e a Graal, sua antipodal inimiga, um abraço . Não há dúvida que os grandes perigos são o lugar das grandes reconciliações. Poesia concreta quer dizer que já eles próprios estavam aflitos com a poesia abstracta. Quem diz poesia abstracta, diz pintura abstracta. Quem diz pintura abstracta, diz José-Augusto França, seu “introdutor” cá nas modas. Pintura abstracta: terra fora do planeta, planeta fora da galáxia, galáxia fora do universo, universo fora de... de fora.., de fora: aí mesmo (estão vendo, não é verdade?): Graal e Córnios dão as mãos. Fernando Guedes e França, mais tarde, a propósito de catálogos o outros assuntos de monta, polemicam. Mas nada impede de vermos aqui o cordão umbilicalmente fraternal a ligar os dois irmãos siameses do academismo português nos últimos anos; o abstractismo plástico e o em verso.
Dividida conforme os géneros, comprometida conforme as frentes e as fontes, foi de bafio e desolação extrema a primeira impressão de leitura da revista “bi-mestral”. Só em Fernanda Botelho, através de uma longa novela, vimos algum resquício inovador, parente daquele cristianismo de Bernanos e Coccioli ao mesmo tempo temente e irreverente a Deus e à Igreja (repare-se que Coccioli foi traduzido e prefaciado em Portugal por José Blanc de Portugal, porta de passagem, porta estreita de passagem entre as duas publicações de que vimos falando). Matilde Rosa Araújo quis aceitar a responsabilidade de juntar esta Graal com a sua inconciliável irmã Árvore. Repare-se : foi uma mulher que estendeu a mão à palmatória... Parece, com efeito que, quando inteligência está a ser o único caminho da confusão, o coração puro será o único caminho da vida e da claridade: a claridade que sustenta o “estado de natureza” que é a literatura testemunhal ou a poesia desambiciosa de Matilde Rosa Araújo.
Julgo que ao coração das mulheres (se elas não estivessem também a transformar-se em “femmes savantes») estaria hoje destinado, em cultura, um papel mais curioso e exigente que à inteligência dos homens que reduziram, sob todos os aspectos, este mundo a um açougue, a uma cloaca, a um bordel, ou a um campo de concentração. Se o poeta se aproxima do coração do mundo, a mulher está infinitamente mais próxima do que os filósofos, catedráticos, eruditos, filólogos, metafísicos, cujo órgão cardíaco obliterou.
O retorno à vida, à fonte, à poesia, pelas mãos de Rosalia (Jacinto Prado Coelho sustentou a nau Graal com esse mastro real), pelas mãos dos discípulos da liberdade e que detestam punhos, sejam fechados sejam de renda, mesmo e acima de tudo os de renda, pelas mãos de Florbela, e também aí nos não faltará o testemunho probatório de uma vida tanto mais moral quanto mais intensa, mais visceral, mais impreconceituosa, mais pura, mais imoral”. Julgo que o mapa não é difícil, agora, uma vez na nascente, nos cantares de amigo ou no Canto Jondo, de recompor. Com abstenção, claro, dos doutores conhecidos e achados em muita ciência e transcendência, à busca da demonstração matemática de Deus e do uma cátedra onde o ensinem aos homens.

CRÍTICA DE ARTE E CIÊNCIA DA ARTE

Ao estudar, um dia (7) Raul de Carvalho em cotejo com José Terra, quis evidenciar a distância que vai da poesia absoluta à poesia relativa, da imaginação inteligente à inteligência imaginosa ( e imaginária), dos poetas autênticos aos falsos vates. Além de José Terra, porém, podia coligir outros nomes, escolhidos entre os mais típicos no aspecto que importa agora estudar: o da inspiração involuntária ou imaginação, e o da poesia intelectualizada até ao fastígio. No Vitorino Nemésio do O Pão e a Culpa, no Jorge de Sena dos sonetos, em Alberto de Lacerda, Tomás Kim e José Blanc de Portugal, a confusão é da mesma natureza que leva alguns desses mesmos “poetas” a intentarem a crítica que chamamos “metafísica” da obra de arte, querendo explicar o inexplicável, racionalizar o irracional, tocar o intocável, inteligir o ininteligível enquanto críticos; e enquanto poetas, meter a inteligência onde ela não é chamada, no acto da criação.
Antes e depois, nada temos a condenar a cultura do poeta; não somos defensores do poeta por geração espontânea e quanto mais terranês e inculto melhor. Que o poeta seja, sim senhor, culto e inteligente, o que não sendo condição necessária muito menos o é suficiente. Mas que a cultura não mate a inspiração, que a erudição não mate a poesia, que a cabeça não esmague o coração na altura em que este só canta se for livre. A poesia desses “poetas”, mais voluntária que inspirada, mais requintada que pura, afigura-se-me um logro de excessiva inteligência, enquanto a parte ensaística, à luz da qual terá, necessariamente, a sua poesia que ser estudada, os abona como intelectos tenazes, de apreensão rígida e contundente e, principalmente, muito trabalhada.
Repito: se nunca confundi erudição com cultura (e é a erudição, em todo o caso, que sobreleva nas prosas ”críticas” daqueles escritores), também não pretenderei que ao acto poético se lhe retire o que o singulariza: um acto de suprema sabedoria. Mas sabedoria nunca foi nem será sapiência, saber, erudição. E pior ainda do que o voluntarismo no acto poético, é a opinião intelectualizada que, declarada ou implicitamente, a maioria, senão todos daqueles autores, mantém sobre a obra de arte.
Parece-me claro que existe um equívoco subjacente em todas as congeminações críticas destes inteligentes. E se é possível que uma nova religião poética esteja a nascer e um novo alcorão se encontre disseminado na doutrina, como leigos teremos, por enquanto, que ignorar e, enquanto ignorantes, o dever de fazer perguntas e pospor dúvidas. A matemática paira sobre a poesia. Claro que esta, pobre pomba de guerra, se o milhafre desce, não ficará bem e haverá sangue. Isso queríamos evitar e por isso nos damos ao trabalho de mostrar certa indignação pela poesia desinspirada.
Entre os colaboradores dos Cornios é em Eduardo Lourenço que se patenteia mais vivamente a contradição da crítica contra a crítica. Dele trataremos em parágrafo especial. Mas a pretensão de erigir a crítica da arte em ciência da arte acentua-se noutros colaboradores da revista, tal como Jorge de Sena e José Blanc de Portugal, atingindo neste último alarmantes proporções, como se pode verificar através de um artigo inserto em Acto (Nº 2), onde se analisam os sonetos de Jorge de Sena. Neste a contradição adoça-se por uma poderosa cultura humanística, por um espírito mais original e independente que qualquer daqueles e por uma mais viva e ordenada inteligência crítica. Jorge de Sena já pode ser considerado um pedagogo da arte e não um teorizador (como José Blanc), um divulgador (José Augusto-França) ou um metafisico (Eduardo Lourenço). Em qualquer deles, porém, o pendor professoral mata o educador, cuja função é incompatível com as doutorisses que muito transparecem nas suas prosas, nas suas traduções, nas suas sapiências. A poesia de Jorge de Sena e José Blanc, bem como o seu teatro e mais o de José A.-F., são matéria para alguma discussão, como aliás toda a poesia inteligente, demasiado inteligente, que tem desaguado na nossa terra,  vinda desta vez de Inglaterra. Se os Blanc de Portugal à custa da Simbolic Logic de Dogson desenvolve um forçado humorismo (bem mais conseguido na Ulisseia Adúltera, peça em 1 quadro de Jorge de Sena), desdobrado em demonstrações silogísticas para fazer rir, fala já muito a sério quando se dispõe iniciar-nos n' «as bases para toda a Interpretação, em especial da interpretação da Poesia.”. O artigo em questão ( no já citado Acto nº 2) é informativo sob o aspecto do cerebralismo com presunções matemáticas.
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Este texto de Afonso Cautela, do ano 1956, deverá ter ficado inédito e felizmente