domingo, 22 de julho de 2012

SURREALISMO OU ESPÍRITO SURREALISTA?-II









1-2- surrealismo & surrealistas - inéditos ac dos primeiros anos 60












DO ÉTICO AO POÉTICO E VICE-VERSA: SURREALISMO OU ESPÍRITO SURREALISTA?-II (*)

Paradoxo inexplicável e talvez insolúvel é aquele onde radica toda a grande poesia e arte: obsceno, que para a acção instituída, para a norma legal, para o dogma imposto, é sinónimo de imoral, significa para o observador imparcial, independente e objectivo - que o surrealista às vezes conseguiu ser - o único acto moral, que assim se confunde com o acto criador. Obsceno ou moral é o que confirma e grita (como a criança gritou ) a nudez do rei; pornográfico ou imoral o que lhe inventa mantos. Por isso a criança está perto do génio, na sua capacidade de realizar o acto obsceno quimicamente puro. Mais longe do que a criança, estão os adultos pseudo-cultos e formados regra geral por uma literatura “bem educada” que os “edifica” mas de cuja profunda imoralidade nem ele nem a crítica dão conta ou notícia.
Foi essa imoralidade da literatura à venda que o surrealismo viu com invulgar lucidez e afirmou com violenta energia: tivessem ou não alguns dos seus adeptos caído em incoerências e contradições, ficou dito de uma vez por todas que, se « é necessário ser-se absolutamente moderno” - como queria Rimbaud - então é necessário (utópica ou prometaica aspiração?) praticar a Reviravolta, o Salto Mortal, a conversão, que raros praticaram.
Quem ande convencido de qualquer lógica, didáctica, sistemática - ramos, todos eles, da ubérrima cultura racionalista (pensamento dirigido, diria Tristan Tzara) - , não é moderno. Será culto, diplomado, erudito, enciclopédico, será brilhante, será técnico de uma especialidade na Tecnocracia, escravo numa sociedade de escravos, obediente e social, venerador e obrigado. Será tudo isso, será mais do que isso, mas não é moderno. Porque moderno é o que pratica o Desobediência e paga na pele as consequências. Moderno é o que se liberta da imunda cultura para onde tudo o atira e dessa cultura sofre as represálias previstas no respectivo código de bons costumes intelectuais. Moderno é ser escandaloso por obsceno, e por isso liquidado. É ser louco, fora da lei, fora da história. É ser o homem subterrâneo, obsceno ou poeta.

O ÉTICO E O POÉTICO

O desfazamento entre a regra e o acto, a teoria e a prática, o ideal e o real, constitui acusação para todas as morais e nem só à cristã.
Por isso a crítica dos surrealistas franceses ao cristianismo (a de Breton ao próprio Cristo) não me parece acertar no alvo. Estão em causa, nessa crítica, todas as éticas e nem só a cristã. Breton esqueceu que também ele deu origem a um «humanismo surrealista», a uma regra de vida, a um corpo de doutrina moral e que, no fundo, todos os humanistas se parecem, caracterizando-se fundamentalmente e regra geral pela sua...desumanidade no trato comum.
Desde o moderado “tu deves” ao radical “imperativo categórico”, nunca as regras prescritas em qualquer catecismo deram moralidade ou desenrascaram alguém nos momentos difíceis da escolha ou momentos-limite. Todas as morais (e o surrealismo também) são narizes de cera, sopas depois do almoço.
O facto não escapou a Sartre quando verifica que no “acto ou instante da escolha” não há Kant, nem Spinoza (nem Breton e Sartre) que nos salve, que nos guie ou aconselhe. Do “deve ser” ao “ser” vão anos-luz de distância e não há recurso a nenhuma suprema instância que nos aconselhe a decidir por aqui ou por ali no momento decisivo. “Na existência para onde fui atirado” é sempre o inesperado ou aleatório que decide dos meus actos, nunca uma doutrina. Doutrinas e doutrinadores, aliás, fizeram-se para ficar na prateleira, ensinar nas escolas, entreter polémicas nas revistas da especialidade.
Sartre acabou por propor um humanismo, mas teve previamente a suficiente lucidez para verificar e afirmar que as morais se fizeram para o homem ideal e nunca para o real.
O surrealismo, embora enredado também nessa contradição de base (na medida em que engendrou e propôs doutrina) ajudou a desmistificá-la e a reconhecer que a ética verdadeira nasce e morre com o indivíduo. A moral tem a sua fase óptima enquanto o não é. Propagada para uso das gentes, institucionalizada e em regra, com corpo de prosélitos e aparelho de apostolado, com código e catecismo, aquilo que foi a experiência única e irreversível de um indivíduo passa para a fase de hipocrisia ou desculpa colectiva de uma colectiva covardia.
Ético, portanto, será apenas o acto de revolta contra qualquer autoridade, dogma ou doutrina instituída e homem moral o que se revolta - nunca o que adere. O que diz “não” e nunca o que diz “sim”. O homem revoltado - cuja genealogia o surrealismo traçou e Camus apagou - exerce um esforço de libertação contra todos os maquinismos opressores da liberdade individual e o problema está exactamente em saber se essa revolta pode coexistir com uma existência relativamente prolongada, se a atitude ética se incompatibiliza com toda e qualquer atitude política.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, dos anos 60, deverá ter ficado inédito

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