terça-feira, 24 de julho de 2012

HORIZONTES DA PROSPECTIVA EM 1970

1-2 - domingo, 27 de Abril de 2003 –70-05-09-S&S>

CRÍTICA DA SCIENCE FICTION: DAR VOZ AOS FUTUROS POSSÍVEIS(*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), coluna «Futuro», 24-10-1970 ]


9-5-1970

A procurar a mais correcta imagem de um mundo futuro, sabre o qual se possa apoiar uma acção prospectiva inteligente, parecia evidente que fosse a ficção científica uma das principais fontes onde ir procurar essa imagem.
No entanto, na literatura de ficção científica muito pouco se pode aprender, pois a maioria dos autores, em vez de imaginarem livremente um futuro possível, ou vários futuros possíveis, limitam-se a prolongar e a levar às últimas consequências o limitado, caseiro e burguês presente que conhecem.
E quanto mais limitado é esse presente - no tempo e no espaço - mais desinteressante se apresenta o futuro imaginado. Quanto mais truncada e chauvinista é a visão da actualidade, menos imaginação revelam as ficções de amanhã.
Quer se trate de novela, quer se trate de ensaios, um escritor que não ousa imaginar o mundo em mutação, pouco ou nada contribui para esclarecer e alargar o horizonte da Prospectiva, dentro e fora da literatura.
É também bastante errado e releva de uma observação superficial, a crença de que a literatura do futuro será a ficção científica. Que, portanto, a mais avançada vanguarda literária de hoje, e o género prospectivo, moderno ou revolucionário por excelência seria esse.
Não há dúvida de que os escritores do futuro terão de entrar em linha de conta com a revolução tecnológica - mas, tal como hoje, serão os aspectos sociais e psicológicos (em suma, humanos) os que lhe irão interessar, a existência dos indivíduos e suas relações, o seu grau de liberdade e de alienação, enfim, a Ética do progresso (e não a técnica), a alma do Fundo.
Frisar a paisagem técnica e científica como faz quase toda a ficção científica, é ainda uma espécie de novo riquismo cultural que a mentalidade desses escritores não soube, na maioria, evitar.
No fundo, o problema continuará a ser o da imaginação e, ligado com este, o da experiência ou experiências humanas que a imaginação traduz. No fundo, o que caracteriza a maior parte da ficção científica é a mesma falta de imaginação que caracteriza a má literatura - qualquer género que ela cultive.
O mais importante, neste como em outros capítulos da literatura dita fantástica (aquela onde a imaginação dos seus criadores, mais livre mas onde, por isso, è posta à prova com mais exigência e insistência) é que um novo posto de observação, uma nova óptica, um novo ângulo de análise, de observar e recriar a realidade se apresente.
Na raiz da literatura prospectiva está a descoberta das vozes que até aqui tinham permanecido sem voz e que a imaginação do escritor (do poeta) reproduz como se sua fosse. Ou, se for ele a viver essas experiências, não precisa de as imaginar, basta relatá-las, basta entrar na corrente confessional do autobiográfico.
Não é por acaso que muitos livros de confissões têm muito mais interesse como obras de imaginação, do que muitas das delirantes visões fantasistas (fantásticas?) de mundos marciano-cósmicos.
Por isso, também, se conclui que a literatura pode e deve ser feita por todos (e assim será no futuro, quando a imaginação estiver finalmente assimilada a experiência humana).
Por isso a Ray Bradbury há quem continue a preferir os diários de Franz Kafka, inegavelmente mais abertos ao futuro e mais revolucionários. Porque imagina formas de humano até então ignoradas. Por isso se apresenta a literatura, também, como uma espécie de arqueologia, como uma peculiar arqueologia: desenterrar o que nunca fora visto, começa a ser objecto de fascinante busca.
A fascinante literatura do futuro está aí: nas mil e uma formas que o "homem, esse infinito" pode assumir, ou já assumiu, embora no limbo do silêncio e do esquecimento. A literatura do futuro se encarregará de "dar à luz" o que no limbo e nas trevas permanecera.
Quando se fala de prospectiva na literatura ou de literatura prospectiva, o que se pretende é falar de imaginação. Aí está a palavra, ainda e sempre: imaginação.
Porque o "homem, esse infinito" não é tão limitado, nem tão pequeno como a literatura de costumes o fez, porque a ficção científica também não deixa de enveredar pelos meamos preconceitos.
Ao eleger os grandes escritores prospectivos, o que iremos citar é os grandes escritores da imaginação, alguns deles catalogados na filosofia, outros na religião, outros na literatura em sentido estrito.
Numa antologia da imaginação ( de escritores da imaginação) incluiria em primeiro lugar aqueles que me parecem ser os grandes visionários da humanidade, ou seja, de humanidades possíveis, de futuríveis, aqueles que me dão experiências humanas para mim inéditas.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), coluna «Futuro», 24-10-1970

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