METAMORFOSES DO REAL IMAGINÁRIO: TRATADO LÓGICO DO ILÓGICO
Com «As Estruturas Antropológicas do Imaginário», cuja primeira edição aparece em Paris, no ano de 1960, Gilbert Durand escreve não só o manifesto da criação poética para todos os tempos e lugares, como estabelece a rampa de lançamento para toda a futura análise do fenómeno criativo, seja qual for o campo semântico em que aconteça, o tempo da história e o lugar da terra onde se pratique.
O que se julgava impossível, a ciência da excepção e do único, a lógica do ilógico, o racional do irracional, realiza-o Durand neste tratado do imaginário, contributo definitivo e exaustivo a tudo o que se tenha dito ou venha a dizer sobre o fenómeno da imagem e da imaginação, o mais universal de todos os fenómenos culturais. Impossível ir mais longe, na pesquisa e recolha de dados, no número gigantesco de exemplos concretos com que se ilustram as ideias gerais, os símbolos, os arquétipos, as alegorias, enfim, tudo aquilo que a ciência acaba por designar como «estruturas» que aparentemente regem o fenómeno humano, tais como as leis físicas regem o mundo dito, por antinomia, material.
CORRESPONDÊNCIAS MÁGICAS
A riqueza torrencial de formas e correspondências mágicas que, de um lado ao outro da Terra, de um ponto ao outro do tempo, nos é dado pelo discurso «oceânico» de Gilbert Durand, coloca-nos, entre outras (entre muitas, muitas outras) esta questão: perante uma tão avassaladora quermesse de «imagens» e «símbolos», que a humanidade criou, recriou, acumulou, repetiu, reproduziu, em lugares geográfica e historicamente os mais afastados, o mundo actual é um deserto, uma chatíssima e árida vastidão de inutilidades chamadas «gadgets», uma imensidade de vazio e de ninharias, ainda por cima esteticamente um horror, ecologicamente um Terror. Horror e Terror a que, depois, o marketing chama obras-primas do pós-modernismo, ou qualquer coisa do género «novas tecnologias».
À luz deste livro feérico e fascinante - que abre, como não podia deixar de ser, com uma epígrafe de André Breton - é o mundo actual, com a sua tecnologia, com os seus sub-mitos, com o seu ridículo e pretensioso ateísmo, que se torna uma vulgaridade ordinária inclassificável.
Face à exuberância «equatorial» e barroca do fértil e fecundo património do imaginário, voltamos a ter respeito por esta espécie que alguns quiseram e supunham poder reduzir ao esqueleto irrisório do homo cientificus, do homo economicus, do homo ludicus, ou do homo parvonius.
O espírio humano não é só maravilhoso, como o demonstra e mostra Durand, nestas 326 páginas da edição portuguesa. O espírito humano é, por antonomásia, o Maravilhoso.
Ao lado de todos estes mitos ditos «primitivos», a arte actual, os artistas modernos, a literatura europeia, os cultos da cultura civilizada, os mitos do espectáculo e da política, os rituais dos «mass media» não passam de uma pessegada interminável.
Ao lado da fulgurante exuberância que são as páginas descritivas de Durand, trazendo ao dia de hoje o que já era moderno há dois, três ou quatro mil anos, tudo o que diz respeito à fase «moderna» aparece pálido, pobre, mesquinho, chato, rasteiro.
UNIVERSO DA DIVERSIDADE
Logo a seguir, o que impressiona no livro de Durand, é a consciência de unidade que de toda essa variedade e multiplicidade de formas, emana.
O espírito humano é uno e, por mais que a razão divida, que o racionalismo e o positivismo dividam, que as ciências se dividam e subdividam, é a unidade essencial e primordial da imaginação criadora que acaba por vencer, surgindo em todo o seu esplendor no panorama infinito de formas infinitas, capturadas pelo pesquisa mágica deste professor de Antropologia e fundador do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário.
Se o próprio Durand recorre a várias ciências para as unificar no que chamou «estruturas», se para este seu estudo convergem Etnografia, Etnologia, História, Antropologia, Filologia, Psicanálise, etc., a visão resultante do fenómeno «imaginário» é sempre global e unificante, o que decorre, aliás, da sua própria e específica natureza.
Um terceiro ponto e aspecto relevante emerge deste verdadeiro «tratado do espírito humano e do real» que é o livro de Gilbert Durand. Qualquer análise de um produto literário ou artístico não poderá fazer-se, a partir de agora, sem base nestes pressupostos aqui inventariados em astronómica quantidade: não se trata de mais uma teoria estética, mas dos próprios fundamentos (revelados) em que assenta o funcionamento do «real imaginário».
Fora disto, destas raízes ancestrais, destes mitos ligados à profundidade do tempo e à imensidão do espaço, não há hipótese de arte, poesia, literatura. Se as ciências humanas saem pulverizadas deste tratado «lógico do imaginário» como disciplinas parcelares, perante a força imponente e persuasiva da unidade assim revelada, também as artes e letras saem impotentes deste confronto com antecedentes e antepassados, com tradições, lendas, mitos, deuses, entidades, epifanias, arquétipos.
É a qualidade tanto como a qualidade de dados acumulados por Durand e a sua coerente articulação que constroem esta «lógica do ilógico», esta «racionalização do imaginário», tornando convincente a posição daqueles que sempre defenderam ser a poesia que está na origem de tudo, e de que todas as criações do espírito partem da mesma raiz ou matriz poética.
Nenhum comentário:
Postar um comentário