segunda-feira, 23 de julho de 2012

REALISMO & SURREALISMO

1-3-s&s-5> surrealismo e surrealistas - inéditos ac dos primeiros anos sessenta

O ACTO POÉTICO: NEM CLÁSSICO NEM ROMÂNTICO

A GRANDE AVENTURA ( ALGURES LONGE ) DA RAZÃO

2002-04-03 - Após digitalizar este texto, fiquei surpreendido com o nível atingido, em comparação com o que ontem disse, noutro file desta série , da minha produção sobre surrealismo nestes tristes anos que vão, pelo menos, de 1960 a 1963.
Curiosamente, este texto levanta os itens que ainda hoje (imagine-se !) eu subscreveria sem me envergonhar, nomeadamente: a crítica radical à ordem industrial e à ordem científica, os preconceitos racionalistas sobre a razão e a proposta de uma «grande aventura» por oposição à «grande empresa» que é a tal sociedade industrial.
Sem querer ver nisto - nesta feliz dicotomia - grandes antecipações das posteriores manias ecologistas do sr. Afonso Cautela, mas a verdade é que essas manias ecologistas derivaram do meu ódio à civilização, à indústria, à ciência como ditadura da razão, à falta de sabedoria da ciência, aos academismos e neo-academismos dos literatos, à dicotomia do real e do especulativo, a todas as dicotomias de que a cultura dominante está cheia.
Provavelmente o surrealismo é que não tinha nem tem nada a ver com estas minhas monomanias e aversões: mas a verdade também é que me convinha atribuir a um movimento prestigiado aquilo que eu convictamente detestava. E toda esta série sobre surrealismo & surrealistas deverá ser lida a essa luz: artificialmente e/ou com alguma razão, atribuí aos surrealistas o que era apenas de minha conta e risco. Fica aqui a minha confissão e espero que me desculpem por mais este abuso. A verdade é que eu nunca soube muito bem o que era o surrealismo e as obras que li com mais afinco foram ensaios sobre o dito e não o propriamente dito. - A.C.



1963 - Os surrealistas não foram prudentes. A mais elementar hipocrisia aconselha moderação na crítica que alguém pense fazer ao primado da ciência no mundo moderno e à necessidade de crer nela para crer em alguma coisa; a ciência constitui matéria de fé e foi uma perigosa imprudência a dos surrealistas, ao porem à prova mais essa fé, mais esse sistema de convicções.
Ao distinguir ciência e sabedoria, o surrealista afirma: os homens são hoje mais poderosos (porque têm a técnica), mais sabidos (porque têm a ciência), mais estultos (porque têm a filosofia) mas não são mais sábios porque não têm a sabedoria. Quando a lógica, a ciência, a filosofia e a técnica nasceram (mais ou menos do mesmo parto) havia já milhares de anos que a humanidade sabia coisas. Hoje, os homens não são mais sábios e a sua ignorância agrava-se à medida que se acumulam os preconceitos gerados pela ciência, pela lógica, pela filosofia e pela técnica.
Artaud, por exemplo, salientou a “porcaria” (“cochonnerie”) da cultura ocidental, acentuando a missão corruptora de escolas e escolásticas, pórticos e foruns (peripatéticos ou socráticos, alexandrinos ou medievais, enciclopedistas ou iluministas), enfim, os órgãos de comentário e transcrição, o sistema de ensino, os intermediários, os sacerdotes. As fontes, para Artaud, encontram-se assim sujeitas à inquinação dos eruditos e arqueólogos, essa interminável escala zoológica que se alimenta da verídica seiva, exoterizando o que era esotérico, tornando em metafísica para uso domiciliário aquilo que não era metafísica - a relação do homem com o universo.
Se esta crítica aos preconceitos do racionalismo acontece por parte de um movimento que se apresenta campeão da lucidez e da liberdade intelectual, não há que ver nisso um contra-senso e muito menos incompatibilidade entre tal atitude e o facto de os surrealistas tanto prezarem o irracional e sua função libertadora.
Suspenso de uma ambiguidade básica - ambiguidade que não me atrevo a classificar de dialéctica - a integração do irracional foi sempre feita por Breton em termos de argumentação racional e, desde os manifestos do surrealismo, os direitos do irracional são proclamados em textos que nada têm de irracionais. Ainda hoje não vemos que haja nisso um paradoxo ou incompatibilidade e de que se possa censurar aos surrealistas esse elogio do irracional, cujos direitos de cidade, explícita ou implicitamente todos os movimentos estéticos reconhecem.
Nem sempre tem sido explícita a posição polémica de alguns surrealistas a respeito dos limites, valor e significado da ordem apoiada sobre o primado da técnica, a sociedade que supõe uma “progressiva” e sistemática ultraburocratização, ou seja, uma rarefacção cada vez maior do indivíduo e dos seus direitos.
A crítica da alienação burocrática ficou feita por Kafka e não houve até hoje, mesmo entre os surrealistas, quem a superasse, ou sequer quem propusesse a solução técnica para os inúmeros problemas que a super-burocracia põe à acção dos políticos e à “inacção” dos poetas. Faltou ao surrealismo uma crítica desassombrada, explícita, directa ao mecanismo da super-organização totalitária e a sua revolta, nesse aspecto, é bastante doméstica, não indo além de protestos pueris ou simplesmente inócuos, quando não à apologia da tecnocracia. Se estava nos propósitos surrealistas pôr em causa o regime industrial vigente, recuou quase sempre perante a ofensiva organizada (coligada) da escola e das escolásticas.
Mas não admira que os surrealistas recuassem perante o mais forte e o mais bem armado. O facto de não ter vencido politicamente, nem as suas teses convencido grandes massas de opinião, não significa entretanto que tais teses sejam infundadas ou tenham perdido a virulência. Antes pelo contrário. Por isso valia a pena tratar em capítulo à parte as teses em parte surrealistas sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de coexistência pacífica entre a “grande aventura” e a sociedade industrial ou grande empresa.

A CIÊNCIA DA EXCEPÇÃO E OS QUE NUNCA DIZEM SIM

São os hereges ou malditos que fazem o progresso: eis uma redescoberta do surrealismo.
Para os surrealistas, a virtude reside na revolta e, sob qualquer ordem ou ortodoxia, é a heterodoxia ou heresia que tem valor; em todos os campos, mas também e principalmente na psicologia, ponto de encontro de todos os problemas levantados pela heresia surrealista.
Se alguma ciência nova eles propuseram, foi com certeza uma nova psicologia, ainda que a palavra “ciência” não se lhe ajuste com propriedade porque os surrealistas jamais preconizaram uma teoria. Propuseram um método, prefaciaram uma actividade do espírito, pretenderam talvez uma heurística ( se os historiadores e didactas consentissem no rejuvenescimento de uma palavra tão rica)uma propedêutica, uma psico-epistemologia (desde que o prefixo psico se não ligasse à ciência experimental da psique mas à sua “ciência da excepção”), ou patafísica (repetindo Alfred Jarry e convidando os filólogos a não se chatearem com a palavra).
Sobre a patafísica, um surrealista acrescentaria: Fez-se a ciência da lei, porque não há-de haver a ciência da excepção? Se há ciências para todas as classes de fenómenos, porque não há-de haver uma ciência desta particularíssima ordem de fenómenos que são os poéticos?
Se é possível uma patafísica - diz o surrealista - então para ela concorrem todos os “fora da lei”, os fora do texto, os fora da ordem: na poesia, na filosofia, na religião, e também na ciência, os que nunca estão de acordo, os que não dizem sim.

A REALIDADE QUE SE PROCURA

Tem-se considerado o surrealismo, além de coisas profundamente cómicas, esta coisa profundamente macabra: um neo-romantismo.
Alega-se então, segundo a velha querela «romântico versus clássico» , «sentimento versus razão” , que surrealismo, sendo neo-romantismo, é exaltação do sentimento em detrimento da sempre madre e comadre razão.
Claro que os termos do problema são postos assim e assim viciados, desde logo, conforme interessa a clássicos e a românticos, pois terceira coisa diferente dessas eles não sabem ser. Mas é claro, também, para quem pensa em termos não exclusivamente antinómicos (dialécticos?) que surrealismo, se nada tem de clássico, muito menos quer ter de romântico.
O dualismo sentimento-razão não tem sentido para o surrealista. O que ele diz, isso sim, é que o coração pode ter as suas razões (como o Pascal soletrava e queria) mas que a razão terá de ser uma “razão ardente”, paralisados ambos, ao que parece e consta, entre o assalto da estupidez inteligente e o assalto da inteligência estúpida, produtos ambos de uma sociedade de consumo, que apenas sabe ingerir sem digerir.
Sentir foi para o romântico sentir pelo vegetativo, pelo orgânico, pelo epidérmico, e, para o clássico, sentir sempre foi não submeter o que se dizia do coração às regras que se diziam racionais: ora se a luz criadora não vem do histerismo e do umbilicalismo, das melenas byronianas, de tristões e isoldas, de werthers, de joaninhas de olhos muito verdes, também não é da harmonia, do equilíbrio, da mesura, da regra - como ensina a sanfona clássica - que ele jorra. Só da desarmonia - afirma o surrealista e vá lá saber-se, disto tudo, quem tem menos razão - só da máxima desarmonia entre os extremos, da máxima tensão entre os contrários, jorra a luz da noite criadora. Sinal de silêncio e de alarme - diz o surrealista - eis o que foi, é e terá sempre que ser o acto poético, sem o qual acto não existe poesia. Nem romântico nem clássico, pois, mas surrealista.
Contra o que os seus detractores possam ter afiançado, o surrealismo não pretendeu nunca esgotar a realidade e ser um método totalitário para a desvendar. Propôs apenas algumas vias de acesso à realidade e algumas maneiras de a desatrofiar ou revalorizar, não se incompatibilizando, por isso, com outras anterior ou posteriormente propostas e descobertas.

Nenhum comentário: