segunda-feira, 23 de julho de 2012

«A FARSA SURREALISTA» SEGUNDO AGOSTINHO VELOSO

1-2- notas de leitura - publicados ac em 1956 - surrealismo & surrealistas

MORAL DE EPICURO COM CITAÇÕES DE S. PAULO(*)

(*) Este texto não assinado de Afonso Cautela foi publicado no suplemento literário «Ângulo das Artes e das Letras» , do quinzenário «A Planície» (Moura), em 1/5/1956

Insiste-se em considerar o suicídio como um acidente de uma época acidentada e não como uma das suas coordenadas, senão a sua mais saliente coordenada. O suicídio representa, para algumas correntes modernas da poesia e da arte, não um acto de submissão mas de insubmissão; é uma afirmativa e não uma negativa; é um processo activo e não passivo. E’, ou pelo menos assim o consideram.
Reconhece-se, além do suicídio real, ( que se tornou em face das mil e uma torturas inventadas pela sociedade moderna para esticar os tendões ao paciente, demasiado fácil) , um suicídio virtual, modalidade muito mais complexa e que se distribui em variedades, umas inéditas outras correntes. Uma afirmação de vida total, irradiante, absoluta, tem fatalmente que se aproximar duma atitude suicida, pois tudo na sociedade (até os que legislam com ares de intelectuais) se conjuga para liquidar o que nessa sociedade levanta o véu de Maia das hipocrisias e falsidades.
Depois de Nietzsche já não devia ignorar-se que a obra reside mais no homem do que nos livros que ele escreve ou nas telas que pinta, de que toda a poesia é escrita com sangue. E o sangue, quando se esgota, equivale ao desaparecimento da vítima do número dos vivos.
E’ então que acorrem estes zeladores da moralidade pública que escrevem libelos como A Farça Surrealista, (1) a servir de chamariz aos leitores que gostem do ter os pés quentes com botija, como as fitas insecticidas servem de chamariz às moscas com mel pegajoso.
De que servem? Não é com palavras que se combatem atitudes. Profetizar a falência do surrealismo é asneira. O surrealismo, mesmo que nenhuma obra tivesse deixado, nem nomes, nem telas, nem poesias (que deixou, mesmo em Portugal) deixou um itinerário, um rastro, uma semente. Assim como Nietzsche, a sua obra foi mais a de destruir deu-ses do que a de impor algum (ao contrário também do que os nocivos intérpretes copiam uns dos outros e se esparrelam todos na mesmíssima asneira de considerar o Uber-Mensch como a incarnação humana dum Deus, ou, como eles dizem, o endeusamento do homem).
Os ditos escreventes de coisas contra o surrealismo ou outros ismos, esfalfam-se então a incriminá-los de cabotinos, mistificadores, absurdos, doentes, ilógicos, porque, coitadinhos, ignoram ainda que a arte não tem nada com Aristóteles, embora alguns digam que sim. No que eles acertam é em ver nessa arte, fundamentalmente, uma filosofia, que é. E se falam dela é porque colidem os sistemas que queriam harmónicos mas que as ovelhas ronhosas dos surrealismos e outras vêm desmanchar.
Daí a zanga com que se viram e vá de mais um tratado de apologética à conta da arte. A arte paga as favas. Valha-nos saber de que, como eles dizem, talvez não haja nomes nem obras a registar no surrealismo, mas estas perlendas, estilo manta de retalhos, com citações deste e daquele( os devotos do verbete, porque se não metem eles com a história e outras musas para que têm indubitavelmente muito mais jeito e não deixam em paz a poesia, que não precisa deles para nada?) é que não fica rastro, com certeza. Só um poeta é digno de falar de outro poeta. Os outros fariam melhor serviço se coleccionassem borboletas.
Outra blasfémia é a entronização do marquês de Sade para chefe do pelotão surrealista. Isso é que eles descompõem o conde por -causa das lubricidades (escolhem sempre uma nomenclatura inconfundível), dos desacatos, etc. Dum ponto de vista moralizante, está visto que qualquer pessoa, sem precisar de que ilustres intelectuais lho venham dizer, classificará de «imorais» os netos de Sade. Mas para um critério estético, que por sua vez determinará ou criará o ético, antes de mais nada cumpre-nos aceitar os actos de Sade como actos gratuitos, carregados duma funda aversão e desprezo pelos comedimentos de uso comum, não um gozo lúbrico, como dizem os olheirentos e castos senhores, mas um acto que, pela sua irresponsabilidade imanente se carrega do transcendência, que pela sua gratuidade é pura poesia, que pela sua insubmissão é afirmação do individual egolátrico. Qualquer um em nome dum absoluto do catecismo, pode dizer que aquilo assim não está certo. Pois não. Mas enquanto do lado dos que alçam um absoluto e em relação a ele aferem os Sade, os Crevel, os Nietszche, enquanto do lado destes tudo se passa no doce remanso da secretária (pois eles não escrevem com sangue mas com tinta de água), do lado dos outros há, com efeito, um inquietante proceder mas dele unicamente próprio se incrimina, e só ele recebe o prejuízo.
Inclusivamente pertence-lhe a liberdade inalienável, que ainda não houve nenhum carcereiro capaz de roubar: o corte horizontal da carótida, por exemplo. Ou esse, ou as várias torturas lentas a que a vítima pode ser submetida, pelos que, zeladores do bem do próximo, não vão na fita de perderem assim tão preciosa carne de açougue e injectam-lhe soros vitais, para que a vida se lhes prolongue. Sim, porque o suicídio é, além de um processo antiquado, uma maneira demasiado fácil de nos vermos livres dos optimistas que zelam para que sejamos optimistas, acreditemos com eles noutro mundo e, por essa mesma razão, gozemos este o mais epicenamente possível...
A moral de Epicuro, com citações de S. Paulo, afinal.

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(1) A Farça Surrealista , de Agostinho Veloso, separata da revista «Brotéria», Lisboa, 1956

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