sexta-feira, 20 de julho de 2012

AMBIGUIDADES DA SCIENCE FICTION

moderno-1- scan sábado, 22 de Junho de 2002 – religar a «realismo fantástico» ou «surrealismo e surrealistas» - notícias do futuro

SER OU NÃO SER MODERNO: OS TEMAS DE ANTECIPAÇÃO (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em 13/11/1971, no semanário «Jornal da Costa do Sol», na página de divulgação cultural «Seara», coordenada por António Augusto Menano e Júlio Conrado


Science-fiction é por enquanto a única mot-de-passe de cariz internacional com direito a circular no mundo sorumbático da cultura oficial e suas respeitáveis instituições. E, por enquanto, uma das poucas siglas que não desencadeiam já a risada geral dos néscios e a que recorrem os adeptos da imaginação para fazer valer os seus direitos num mundo que, a pretextos vários, racionalistas e irracionalistas, materialistas ou idealistas, benfiquistas ou sportinguistaa, se sente cada vez mais incomodado com a realidade e o que de surrealidade ela contém; e que, portanto, a pretextos vários, vai continuando a embrutecer a espécie; a empobrecer o homem, esse infinito, das suas infinitas possibilidades, dos seus recursos e valores.
Nunca a imaginação teve simpatia dos imobilistas e académicos (Galileo é o exemplo clássico que todos os académicos, imobilistas e filisteus gostam logo de citar) e Giordanos Brunos há ainda muitos, haverá sempre, embora a fogueira assuma hoje outros aspectos. Mas a science-fiction, porque se mostrou apta a receber até a mediocridade e por isso a engrenar no circuito de consumo a que toda a indústria aspira (incluindo a livreira), tem por enquanto direitos de cidade que vale a pena aproveitar.
Com ela, e apesar das enormidades que em nome dela se praticam, vai entrando nos hábitos do mais relapso ao «realismo fantástico» uma gama de temas e problemas que, de outra maneira, nunca chegariam à rua e ao grande público. Porque vencer as barreiras do academismo (latu sensu) é a tragédia de todo o inovador, do que impulsiona o mundo, do que se antecipa e por isso progride, mas tragédia mais violenta ao nível das elites do que ao nível das massas.
Modernidade não é outra coisa do que a recusa do sistema. Moderno é o poeta que cria outra vias culturais, que põe à prova uma civilização à prova. Moderno é o que mergulha na contra-corrente. Ainda que para alguns (neoacadémicos de hoje) moderno seja o autor de piruetas verbais ou experimentalismos no vácuo.
Tudo isto explica o rancor surdo e os risos cúmplices que a palavra science-fiction ainda pode suscitar. É que, mesmo entre pessoas bem informadas, ainda vigora uma opinião pejorativa sobre os que se debruçam sobre os temas chamados de antecipação, sobre os temas--fronteira ou problemas de ponta, sobre a cultura paralela, dita também fascinante. Enfim, o surrealismo andou anos a ensinar isso tudo e até alguns surrealistas nunca aprenderam. Aos da prospectiva, supõem-nos lunáticos e pobres de espírito fascinados pelo infantilismo de sonhos, mitos, utopias que a idade adulta ou da razão naturalmente deverá rejeitar com ar auto-suficiente e de evidente enfado. Supõem-nos, em melhor hipótese, escapistas: falar ou pensar no futuro e em tudo o que nele se cataliza ( toda uma nova cultura por nascer) seria então para os sensatos - geralmente pessoas muito bem informadas - fugir à realidade presente, às exigências, bem duras e cruas, do que oprime e derrota e avilta.
Ora não será talvez despropositado apresentar uma defesa dos temas que ocupam a science-fiction e seus adeptos, tentando mostrar aos mal informados que o pior mal é tanto o desinteresse das grandes questões contemporâneas, mas exactamente a sua voraz, urgente ambição de tudo estudar e de tudo compreender. Não são lunáticos os que falam do futuro, mas os mais exigentes críticos das abjecções, conflitos e contradições do presente.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em 13/11/1971, no semanário «Jornal da Costa do Sol», na página de divulgação cultural «Seara», coordenada por António Augusto Menano e Júlio Conrado

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