
pedagogia da imaginação-ac-cf>sexta-feira, 20 de Julho de 2012
O SURREALISMO DE LOUIS PAUWELS: PEDAGOGIA DA IMAGINAÇÃO (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 29. 11.1972, no suplemento«Literatura e Arte», coordenado por Maria Teresa Horta
Quando os postulados e propósitos iniciais do surrealismo começaram a sofrer um natural processo deteriorativo por parte de epígonos e exploradores do sucesso, não nos devemos admirar que se procurassem novas vias para o exercício da imaginação — ainda que essas vias se chamassem realismo fantástico ou prospectiva.
Aceitando o desafio da tecnologia, houve alguns autores empenhados em demonstrar, a partir dela, duas coisas:
que a inteligência especulativa e calculatriz nunca substituiria a imaginação;
que, antes pelo contrário, a tecnologia dos computadores não só abria uma esperança à actividade mental, deixando-a livre das tarefas subservientes do cálculo e da informação para a projectar em full-time na criação poética;
como, ela própria, permitia novas mil combinações capazes de servir (ao lado do non-sense, do cadáver esquisito, do automatismo, etc) o pensamento analógico ou poético e um aparelho de controlo capaz de tornar a crítica à obra muito mais precisa, muito mais rigorosa, afastando, portanto, do templo os vendilhões.
Quer dizer, a tecnologia dos computadores abria uma dupla esperança, ao contrário do que os pessimistas profetizavam, supondo que chegara a época do "robô", do homem-máquina, do sujeito totalmente alienado à mecânica, sem margem para imaginar outra coisa que não fosse o círculo vicioso e tautológico das suas alienações.
A tecnologia dos computadores dava à imaginação, finalmente, o estatuto de actividade soberana e autónoma, especificamente humana, a única insubstituível (por enquanto) por qualquer máquina. Aquilo que se pressentia há séculos era agora materialmente comprovado.

Quaisquer que sejam as objecções de ordem prática, de ordem política que se coloquem a movimentos como o realismo fantástico e a prospectiva (nem todas as objecções são tão pertinentes e justas como a ignorância dos lados às vezes leva a supor), de um único ponto de vista essas duas correntes (assim como o surrealismo e sua pertinaz intervenção) nos podiam, nos deviam interessar: numa sociedade que pretende submergir tudo e todos na vácua mediocridade do senso comum, ou de uma estreita racionalidade de onde o melhor do homem é expulso e escorraçado, ou de um dogmatismo esclerosante, — essas duas correntes são propostas, desafios, hipóteses da imaginação à imaginação, que em nada perturbam outras hipóteses, que em nada impedem uma acção prática, que em nada colidem com propósitos de mudar o mundo, de transformar a vida. Antes pelo contrário. Nunca a imaginação contrariou essa mudança, antes é ela que, sempre, a visiona, antecipa, pressente e torna urgente.
Desta perspectiva, nenhum autor ou corrente me parecem desprezáveis, desde que e até ao momento em que se verifique a sua total impossibilidade de estimular o pensamento imaginativo e a heresia poética. Teilhard pode ser tão fascinante e necessário como Marx, porque a leitura de qualquer deles, à parte as aplicações concretas e o aproveitamento oportunista do seu pensamento, é fonte do nosso próprio movimento mental, tenha ele ou não oportunidade de se projectar e aplicar na transformação concreta do mundo e da história. A pedagogia da imaginação, em suma, não me parece prejudicial em nenhuma circunstância.
Nenhum pensamento livre é pernicioso, se o encararmos como estímulo e sequência de uma mesma aventura humana chamada Imaginação — qualidade vectorial que, por enquanto, distingue a espécie humana não só das outras espécies animais como das máquinas por ele — homem — construídas. Enquanto não houver animal ou máquina capaz de imaginar, tal tese parece prestável como rumo de trabalho e útil a quem tenha o ofício de existir, quer dizer, imaginar.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 29. 11.1972, no suplemento«Literatura e Arte», coordenado por Maria Teresa Horta
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