domingo, 2 de janeiro de 2011

O DESPERTAR DOS MÁGICOS




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«LE MATIN DES MAGICIENS»: MANIFESTO DO REALISMO FANTÁSTICO


Subintitulado «Uma introdução ao realismo fantástico», o livro de Louis Pauwels e Jacques Bergier Le Matin dez Magiciens foi considerado já o manifesto de uma nova ciência - a ciência do futuro -, não só porque explora e pesquisa em todos os sentidos o conhecimento dessa terceira dimensão do tempo (o futuro) mas também porque será, sem favor, a primeira ciência a cultivar, entre todas, no tempo que há-de vir; ou antes, no tempo que acaba de começar.
«Le Futur Antérieur» se intitula a primeira parte desse manifesto, e nela se dá a conhecer a «forma como o século XIX fechou as portas à realidade fantástica do homem, do mundo, do universo; a maneira como o século XX as reabre, e como as nossas filosofias e a nossa sociologia, que deviam ser contemporâneas do futuro, não o são, continuando acorrentadas a esse caduco século XIX».
O título do livro tem induzido em erro e na maior desconfiança os que se aproximam já desconfiados. «Magos» evoca, entre os que se julgam libertos de preconceitos irracionalistas, a charlatanice de certos habilidosos que, mal tolerados pelas leis vigentes, exercem uma forma de ganhar a vida como qualquer outra, nos subúrbios pobres das cidades ricas. Congressos internacionais, filtrados pela fina ironia das agências de informação, ajudam a consolidar esta ideia pejorativa que até certo ponto se justifica mas que seria desejável estender a outros e todos os tipos de charlatanice em vigor.
Por exemplo: irremediàvelmente preconceituoso e charlatão é quem, mesmo aconselhado por pessoas de crédito, se ficar, no livro de Pauwels e Bergier, pelo título e pelo que ele evoca à primeira impressão. Com surpresa e alguma raiva terá que verificar, quem se dispuser a aprofundar o caso, que nada existe ali de crendice proverbial, de invocação iniciática ou de apologética às ciências ocultas. O «amanhecer dos mágicos» refere-se (é evidente) ao amanhecer dos que sabem, dos que, embora no presente, já vivem o futuro e no futuro (única forma, talvez, de viver o presente).
«Magos» são os que praticam a magia da imaginação criadora, os que tentam a metamorfose do homem novo, os que realizam em si próprios, antecipando-se, a evolução necessária de tudo quanto vive e é movimento, acção, progresso.
Talvez indispostos, os que verificam tratar-se de um livro tão violentamente voltado para o futuro, ficam também decepcionados por não haver ali pasto passadista que ruminar e contra o qual atirar as suas furiosas críticas.
O que irrita, de facto, no movimento do realismo fantástico é esta conjugação harmónica de futuro e tradição, esta síntese de contrários que se mostra sempre e em tudo, por muito que o leitor se julgasse actualizado e «à la page» para lá de nós próprios e das nossas limitações. Um pouco de inveja, um pouco de despeito compõem o quadro da reacção mais usual perante um movimento de ideias que, de repente, nos ultrapassa e faz de nós (ainda os mais avançados), impenitentes conservadores, estagnados dentro dos nossos confortáveis preconceitos.
O livro ensina-nos que a pior reacção está não só na mentalidade política que se perfilha, mas também em toda a parte onde o espírito inovador, dialéctico e revolucionário encontre obstáculos para se desenvolver:
«Bruscamente, as portas cuidadosamente fechadas pelo século XIX sobre as infinitas possibilidades do homem, da matéria, da energia, do espaço e do tempo vão cair em estilhaços. As ciências e as técnicas darão um salto formidável, e a própria natureza do conhecimento vai ser novamente discutida. Mais do que um progresso: uma transmutação. Neste novo estado do mundo, a própria consciência deve mudar de estado. Actualmente, em todos os domínios, todas as formas da imaginação estão em movimento. Excepto nos domínios onde se desenrola a nossa vida «histórica», obstruída, dolorosa, com a precariedade das coisas condenadas. Um fosso imenso separa o homem da aventura da humanidade, as nossas sociedades da nossa civilização. Vivemos à base de ideias, de morais, de sociologias, de filosofias e de uma psicologia que pertencem ao século XIX. Somos os nossos próprios bisavós. Contemplamos a subida dos foguetões em direcção ao cosmos. Sentimos a Terra vibrar por mil radiações novas, chupando o cachimbo de Thomas Graindorge. A nossa literatura, os nossos debates filosóficos, os nossos conflitos ideológicos, a nossa atitude perante a realidade, tudo isso dormita atrás das portas que acabam de ir pelos ares »
Toda a literatura burguesa de comportamentos, situações e descritivos, baseada em esquemas da psicologia clássica que se ocupa da superfície diurna da realidade, e ainda por cima, a realidade mesquinha, limitada, asfixiante da classe dominante; ou mesmo o realismo que pretende retratar a luta da classe dominada; ou mesmo o novo romance e suas técnicas de atomizar a linguagem; nenhuma dessas tendências literárias se apresenta aos autores de «O Despertar dos Mágicos» capaz de enfrentar o desafio do futuro. Para eles é necessário, desde já, uma literatura diferente ou paralela dos grandes empreendimentos da ciência moderna, em especial a física teórica, que é, por si só e na opinião dos autores, o «verdadeiro romanesco»:
«O moderno mundo da física desmente terminantemente as filosofias do desespero e do absurdo. Ciência sem consciência não passa de ruína de alma, mas consciência sem ciência é ruína idêntica As filosofias que atravessam a Europa no século XX são fantasmas do século XIX vestidos à forma actual Um conhecimento real, objectivo, do facto técnico e científico, que tarde ou cedo arrasta o facto social ensina-nos que há uma direcção nítida na história humana, um acréscimo do poder do homem, uma subida do espírito geral, uma enorme forja das massas que as transforma em consciência activa, o acesso a uma civilização na qual a vida será tão superior à nossa como a nossa em relação à dos animais»
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(*) Este texto foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), na coluna do autor «O Futuro em Questão» , em 22/Agosto/1970
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«O HOMEM, ESSE INFINITO»(*)

O tema do «homem superior» é um dos mais generalizados, não só entre as utopias clássicas, como na moderna ciência-ficção, como, ainda e principalmente, na mitologia «sub» dos seriais em quadradinhos. Esta forte incidência merecia um estudo sociológico sério, pois não deve ser por acaso que um mito acompanha assim, através dos séculos e subordinado a tão diversas circunstâncias históricas, a obcecante imaginação dos povos. Tratar-se-á de mais uma manifestação do «inconsciente colectivo» que Jung já não teve tempo de estudar? Ou apenas uma ideia fixa, um arquétipo rudimentar que, em cada época, reúne e sintetiza as ambições e os sonhos do homem real, desfasado e longe como sempre se encontra de si próprio e dos mitos por si próprio inventados?
Um livro recentemente incluído nas edições da Galeria Panorama vem repor o tema do «homem superior», não esquecendo o prefaciador de citar o nome de Frederico Nietzsche e o seu «uber-mench», autor e concepção esses, como se sabe, bastante deturpados no que à interpretação do mito respeita. A onda avassaladora de racismo que (sem o filósofo ter nenhuma culpa disso) iria invadir a Europa teve, nas concepções do autor de «Assim Falava Zaratustra» uma pretensa justificação teórica. Mas esta confusão não resiste a uma crítica mais profunda e verificou-se depois que basear a supremacia da raça germânica nas metáforas poéticas do «super-homem» nietzscheano era algo de inverosímil e contraditório. A tese, no entanto, e pelo que se vê, não deixa, ainda hoje, de ter adeptos.
«O Novo Adão» - título da obra acima referida, assinada por Stanley G. Weinbaum, retoma uma concepção de «homem superior» que, mau grado a tese do prefaciador, se aproxima muito mais de H.G. Wells do que de Nietzsche.
Foi, com efeito, o autor da «História do Futuro» quem visionou uma nova espécie, um ser mais evoluído, a partir de padrão existente que ele considerou superior: o cientista e (quase) o técnico ou investigador de laboratório. «O Novo Adão» macaqueia a infância, juventude e velhice de um génio cujas aptidões consistem essencialmente em deslindar técnicas e aplicações tecnológicas da ciência (o tipo, digamos, de inventor).
O defeito de concepções rudimentares como esta é que não atendem à totalidade do engenho humano. Fazem do «génio» um técnico, um especialista, um perito de artes e ofícios. Ora o contemporâneo do futuro ou «ser mais Hir» (esta expressão pertence a Romeu de Melo, nosso primeiro escritor de ciência-ficção), o mutante, o homem culturalmente mais evoluído e complexo terá de superar essa antinomia entre especialidade e generalidade, técnica e cultura. Os casos de génio que a História regista são muito mais casos de síntese do que de poder analítico. Mesmo quando homens de ciência (Einstein, Freud), o que os tornou universalmente interessantes e fecundos foram as consequências teóricas, filosóficas, gerais das suas descobertas «técnicas» (parciais).
Pelo menos até agora e no que à produção intelectual diz respeito, um caso de génio caracteriza-se pela invenção de uma teoria nova ou de uma nova concepção do homem, nas suas relações consigo, a sociedade, o universo. O filósofo ou o poeta estão, portanto, mais próximos do padrão ideal do que o investigador e o especialista que não transcendem o seu ramo particular do conhecimento.
O mito do «supermacaco», porém, pode ser entendido em outro campo: não o de indivíduo excepcional no meio de multidões ignaras e contentes da sua qualidade «maciça», mas no campo da espécie ou raça, quer dizer, «o homem, esse infinito» parafraseia a possibilidade de fazer nascer uma nova raça dentro da que existe, tal como o «homo sapiens» teria sucedido ao macaco antropóide, como da larva nasce a borboleta. Fala-se aí de mutação e de mutantes, outro mito, outra obsessão que acompanha os sonhos acordados da espécie.
Deve sublinhar-se que, de todas as concepções padronizadas, a que «Le Matin des Magiciens» («O Despertar dos Mágicos», na tradução portuguesa) apresenta, se afigura a mais coerente e verosímil: trata-se aí, sem utopia e sem mania das grandezas, de pressupor a espécie humana como um reservatório inesgotável de possibilidades adormecidas, de recursos por explorar, de potenciais energias por educar e canalizar. A máquina humana é educável, recuperável, susceptível de todas as adaptações ao meio e de inventar, até, segundas ou terceiras naturezas quando o meio lhe é hostil ou pouco favorável.
Visto assim, o mito do «homem superior» deixa de consistir numa monomania racista de hipertrofiar e deturpar a realidade, para ser (como também queria Nietzsche) a realidade mesmo explorada em todos os sentidos e recursos. Deixa de ser uma inarmonia inaudível de exigências brutas em choque perpétuo (todo o espectáculo de violência e subdesenvolvimento que se observa no planeta) para ser a realização harmónica, plausível e moral da criatura humana.
Que as histórias em quadradinhos deturpem o quadro e ponham sempre o «super-homem» ao serviço da violência física, não admira: trata-se de uma indústria (a dos «sub») ao serviço de um mercado consumidor que se pretende «mentalizar», mercado que não selecciona, não critica, não hierarquiza, não pensa.

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(*) Este texto foi publicado no semanário «O Século Ilustrado», na coluna do autor intitulada «O Futuro em Questão», 12/12/1970

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