sexta-feira, 5 de novembro de 2010

LEÃO CHESTOV: AS REVELAÇÕES DA MORTE




1-4-chestov-md-1-3> quinta-feira, 6 de Novembro de 2003
chestov-1> ver file da série ser> a que esta texto se refere – inédito ac de 1961

QUANDO LI CHESTOV
Tavira, 7 de Outubro de 1961 - Disse-te para ler Chestov e vou explicar porquê. Quando o li - As Revelações da Morte - renasci. O que escrevi então, Março a Dezembro de 1960, foi o percurso dessa metamorfose, dessa conversão, dessa desintegração-integração íntima. Chamei-lhe Prefácio ao Ser, ou prefácio ao silêncio, ou confissões do subterrâneo, ou etc. Depois de escrito, vi que falara a surdos. Nascera, praticamenta,do nada (e é que nascera mesmo do nada). Procurar quem falasse a mesma língua, seria uma solução. Mas quem poderia falar a mesma língua - a do silêncio?
Assim decorreu o tempo, um ano, até 5 de Outubro de 1961. Teremos de considerar esse dia uma data histórica, não?.
Não procuro prosélitos para nenhuma causa. Liberrimamente proponho apenas que sejamos religiosamente livres e que se descubra cada qual na sua metamorfose, na sua conversão. Que morra, para renascer!
Não vos incito a esta conversão ou metamorfose por arbítrio ou capricho.
E por isso vos devo dar conta das motivações profundas a que obedeci:

a) A crítica produzida pelo pensamento moderno às raízes e princípios do próprio pensamento o movimento da razão contra a razão, desde os psicanalistas (ortodoxos e dissidentes) aos indeterministas e às correntes verificadas no que se tem chamado Modernidade e Arte Moderna, - tudo contribui para desacreditar a padrão cultural vigente e procurar, no subsolo, não só arrancar as raízes dessa como implantar as de uma cultura nova, viva, fascinante;
b) O constrangimento feito à minha liberdade por todas as instituições que se guiam pela razão (ou dizem guiar-se) e têm (ou dizem ter) ideais humanistas: Estado, Escola, Igreja, Exército, etc., fez-me preferir o reino do desumanismo e da des-razão, da inocência e da insciência, de que só raros vestígios a cultura oficial consente e que tem de ser. adivinhado por intuição, pressentimento, instinto. Todo o animal acoçado, porém, afia o instinto...
c) O enfado que foi a escola e a inutilidade da cultura ali praticada, fez-me procurar uma cultura mais próxima do homem, mais próxima da vida, mais próxima da prática.
d) Na escola ou fora da escola, sempre a lei em frente do nariz, sempre a infernal máquina hierárquica, sempre a camisa de forças burocrática. Concluí então que: ou a lei ou eu. A escola e demais instituições nada mais faziam que fomentar, instituir e infiltrar a lei, a partir da lei das leis, do dogma dos dogmas - a lei da Razão. O indivíduo lutando contra a Instituição (martelo pilão da história) é que cria a lei, a sua lei e para isso é necessário descer aos infernos, mergulhar em si, usar o "nosce te ipsum" socrático mas arriscando tudo no mergulho.
e) Ainda que o mundo legal me agradasse, não poderia durar nele.
Reconhecendo-me um dia estruturalmente absurdo, não poderia realizar-se num mundo lógico ou pretensa e idealisticamente lógico. A redução a mim próprio era a redução ao absurdo e ao absoluto, era a entrada no subterrâneo, único lugar do absurdo dos homens absurdos. O manicómio para os loucos, a prisão para os delinquentes, o hospital para os doentes, o cemitério para os mortos. Chacun à sa place.
f) Ainda dei ouvidos aos defensores da Razão, alegando que todas essas instituições não servem a genuína lei racional e que num mundo futuro, então sim, tudo seria o paraíso planificado racionalmente.
Ora onde estava ou poderia vir a estar a razão, nunca soube. Soube que, antevendo uma sociedade idealmente racionalizada, nem por isso fiquei mais entusiasmado. E com razão ou pseudo-razão, preferi o reino do absurdo. Desci à cave.
g) Mais certo que no Paraíso socialista e racionalista, acreditei no Apocalipse. Se a morte total é certa, quem vai construir? Construir para quê e para quem? Só criar, se é que vale a pena alguma coisa. E para criar é preciso, justamente, destruir. Pois criar é criar uma cultura e terá que destruir-se a falsa cultura para nascer a verdadeira.
Mais um motivo duplo para descer ao subterrâneo e aí seguir, ao ritmo das bombas termo-nucleares do Apocalipse, o infindável rio secreto.
h) Esta antinomia morte-vida, além de todas as outras antinomias, também me conduzia à conversão, pois se o solo é o mundo das antinomias, só no subsolo essas antinomias obtêm solução em sínteses (a síntese criadora). O dilaceramento angustioso do homem ocidental só termina pela conversão ao ser (que a cultura vigente designa de nada), pela metamorfose poética.
i) Independentemente de outras razões, o mundo oculto é , por natureza, o mundo maravilhoso, fascinante; até na natureza é assim, quer o das profundezas submarinas, quer o das profundezas inconscientes e subconscientes, quer de toda a experiência social clandestina: sociedades secretas, prostituição, roubo, etc. Isto seria só por si uma razão suficiente para dar ao diabo as claridades cartesianas do mundo lá de cima.
j) Mas além da fascinação própria ao mundo oculto, proibido, secreto, subterrâneo, iria concluir que, além de constitucionalmente absurdo, era também eroticamente uma aberração ou anormalidade. Da misantropia à misoginia vai um passo e o resto, em relação à moral vigente, só poderá viver em regime de clandestinidade, se a vítima não se resolver pela abstenção ou "ascese sexual" (palavrão que oculta muita coisa).
Mais uma vez o mundo das trevas me chamava, desta feita por um poderosa força que é só por si liberdade: o amor.
l)Sentindo-me, por instinto, oposto à maior parte das artes e das letras que se iam vendendo, via que tudo nesse campo estava errado mas que ninguém se queria aperceber do erro. Também aí eu teria de reverter à Grande Corrente, ao Rio Subterrâneo. Opondo-me a líricas, críticas e estéticas, descobria que poesia é criação e que os grandes poetas eram simultaneamente os grandes Iniciados no amor, na liberdade e na morte, os detentores do segredo, os decifradores da esfinge, os que atingiram o coração da realidade, os que foram o que eram, os perseguidos por amor da verdade (sinceridade). Também eles tinham sido os homens das masmorras, os segregados do brilhante mundo das luzes. Soube que poetas, evidentemente, só podiam ser esses. Nada tinham a ver com o que se ia apresentando aqui com tal nome.
Mais uma vez, era a voz subterrânea que tinha razão (na sua sem-razão de sempre).
m) Sem diploma, ficaria na roda dos pelintras, nos esgotos da cidade, no caixote do lixo dos arranha-céus. Sempre com os humilhados e ofendidos no rés-do-chão, na cave, teria de ser mais uma vez e por mais um motivo, homem subterrâneo.
n) A problematização da liberdade no mundo moderno, feita por escritores como Alberto Camus, Sartre, Huxley, Sinclair Lewis, Henry Miller, Harold Laski, Santayanna, George Orwell, Virgil Gheorgiu, Maiakovski, Kedros, Duhamel, Bertrand Russel, Raul Proença, António Sérgio, Fidelino de Figueiredo, Herbert Read, Thoreau, Miguel Torga, Romain Rolland, etc etc levar-me-ia a concluir que a cultura baseada na razão e no produto da razão científica - a técnica - , se não tem fatalmente que conduzir à escravidão aviltante, aos paraísos nacionais socialistas ou internacionais socialistas e arredores concentracionários, em 99% dos casos isso acontecerá (tem acontecido, está acontecendo e tudo leva a crer que continuará a acontecer). Só há uma probabilidade entre 100 desta cultura não conduzir à desumanização esclavagista e à morte.
Prefiro a incultura ou des-cultura do homem subterrâneo, entretanto.
o) O subterrâneo é o símbolo justo para a necessidade e fome de absoluto e do sagrado, pois que o sagrado é o proibido, o oculto, o clandestino, o secreto, o subterrâneo.
p) Aprendi em Chestov a "luta contra as evidências". Era preciso ir contra a facilidade de aceitar como verdades as certezas de carácter racional. Por que raio será essa a verdade e até a única? Porque não será a verdade apenas ou também o rumor indeciso, vago, nebuloso das profundezas? Foi com Chestov que o símbolo do subterrâneo se me impôs. No entanto a conversão já se iniciara com a “experiência do nada" de Artaud e, anteriormente, mas menos intensamente, em Beckett e Fernando Pessoa.
q) Verifiquei que não era eterno e que, indo pela conversa dos homens "cultos", só sendo eterno poderia ser culto, isto é, poderia ser homem. Quer dizer que só seria homem se tivesse sido deus. Era necessário então descobrir a cultura que me desse a posse de mim próprio, a minha unidade perdida, o meu eixo de rotação intelectual e translação afectiva, o meu núcleo vital. E essa só a poderia encontrar descendo abaixo do nível médio, mediano e medíocre da "omnitude". E desci. Se o não fizesse, ficaria vivendo por procuração, isto é, morrendo.
r) "Que tédio a vida, meus senhores" - esta frase de Gogol pode encontrar-se repetida em centenas de homens inteligentes e sensíveis. Só o bruto não se enfastia. O homem é o único animal que conhece o tédio, porque também é o único animal que conhece a cultura, a cultura do solo, evidentemente. Porque a do subsolo não entedia. Fascina, apaixona, polariza, deslumbra, exalta.
Foi essa a grande resposta dada aos mestres do Tédio pela consciência obscena ou subterrânea: a resposta de que o tédio dos românticos, a misantropia dos solitários, a neurastenia do fin-de-siècle, a angústia do século vinte, o pessimismo dos "vencidos da vida", o cansaço dos suicidas, o masoquismo dos ascetas e místicos, o encontro do nada em Kafka, Pernando Pessoa, Beckett e Artaud, será vencido e superado pela única acção que não é acção neste mundo da merda social, ou neste mundo social da merda: a acção obscena, ou poética, ou absoluta. Acção subterrânea, se quiserdes. Acção revolucionária e subversiva. Acção de toupeiras trabalhando e sonhando. Não é o suicídio, o masoquismo, a abstenção, o onanismo afectivo, a solidão estéril, o recalcamento dos instintos e paixões, não é nada disso que nos poderá salvar deste morrer diário do " (Chestov). Isso foi a resposta de gerações que aceitaram a morte da vida (desta vida a que toda a lei nos constrange) e não quiseram descobrir na morte (aquilo que se considera morte relativamente ao social) a vida verdadeira.

Com a minha conversão, apenas vos proponho que vivais. E que glorifiquemos o dia maravilhoso em que iremos nascer.
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UM LEITOR DE CHESTOV DÁ-LHE RAZÃO NO REINO DAS LUZES
[Lisboa, 8/3/1992] - Neste reino a que chamam das sombras mas que é de Luz, deste lado onde não há meias tintas, nem claro-escuros, nem contrastes, nem sequer a multicolorida paisagem desse lado, posso confirmar que tu, meu caro Leão de apelido Chestov, tinhas razão.
Ao pé de ti, a Barca de Caronte é uma metáfora vulgar. Quer dizer, quando meteste a Razão no saco e atiraste tudo ao rio Estígio, tinhas razão, porque aqui, neste assento etéreo onde agora desci, onde agora subi, onde agora estou, onde agora não estou, andavas muito próximo da realidade, ou seja, do inefável, ou seja do que não existe. Vida é isto e morte é isso: desta intuição fulgurante fizeste tu, meu Caro Chestov, o Alfa e o Ómega, a tortura e a glória dos teus amargurados anos de escritor rebelde.
Quando, aos trinta e três anos, te li primeira vez, senti que era a volta e a reviravolta em todos os meus esquemas. E a verdade é que poucos textos vieram alterar esta minha primeira impressão das tuas certeiras certezas, hipóteses de trabalho com a força de um furacão que a Universidade nunca aceitou como teses, e se aceitasse mal delas, mal de ti.
Os casos de canibalismo universitário já no teu tempo eram frequentes e conseguiste passar sem ser notado, foi a tua sorte: se não estavas hoje empalhado, ao lado de todas as grandes figuras da Filosofia Europeia e arredores. Assim ficaste tu um híbrido pensador, crivado de interrogações como um ralador, nem metafísico nem dialéctico, afeito às intempéries do teu imenso país, saindo quase clandestino para o resto da Europa e ainda hoje em posição estranha no meio cultural vigente.
Tolerado mas como uma prostituta de ocasião. «As revelações da Morte» são, de facto, as primeiras notícias da Clandestinidade que o homem europeu, completamente perdido o Norte, com a Bússola partida, com os mapas rasgados, com as iniciações terminadas, com as ordens iniciáticas em escombros, com os textos sagrados metidos em computador e dados aos Ratos, recebeu do Além. E vieram essas tuas lembranças mágicas baralhar os esquemas de todas as religiões oficiais, que chamaram Vida ao curto período de morte que nos é doado como experiência passageira e efémera e chamaram Morte à Indefinida permanência, à Estabilidade política, à Democracia real, a que chamam alguns eternidade e que é apenas a ausência de tempo e de espaço, aí onde apenas existe Energia, onde os dilemas e as dicotomias desaparecem, onde o sofrimento tem tanto que dizer como a Alegria.
Meses de Prova Geral de Acesso são, de facto, esses anos, contados no calendário romano, em que andamos por aí por ver andar, sem mais gosto ou desgosto do que o Medo que nos incutiram à Vida chamando-lhe Morte, ou seja, a esta Vida onde eu estou agora de cama, mesa e roupa lavada e que me permite avaliar o que é esse canal escuro, estreito, sujo, cheio de ratos e de jornais semanários a que chamam Vida. Acertaste em cheio, meu Caro Chestov, e parece mesmo que leste -- sabe-se lá -- o Livro do Bardo Todol, ou o seu homólogo dos estrangeiros, o «Livro dos Mortos Egípcio», textos abertos que felizmente o Umberto Eco ainda não descobriu. Se isso acontecer, lá temos mais um grande Livro da Humanidade transformado em pasto de catedráticos, em best-seller muito vendável e provavelmente em motion picture da Warner. Não tenho nada contra os best-seller, meu Caro Chestov, nem contra as Major do espectáculo, nem contra as descobertas propiciadas pelo Petróleo, nem contra a invenção da Fotografia, nem contra Martin Scorsese, nem contra os que vivem de sustentar a Ilusão insustentável da Grande Espectáculo, nem contra os grandes sucessos de público e tu para mim funcionaste como um grande sucesso de bilheteira.
Obrigaste-me a escrever o texto mais meditado e portanto mais inédito da minha existência. Quase me fiz existencialista, por paixão, foi por um tris. Deste-me uma revisão de perspectivas e um sistema métrico completamente diferente do que se usava nas democracias ocidentais de sucesso, obrigaste-me a dizer o indizível, a escrever o inefável, a viver a morte, a morrer a vida. Não queiras saber o que me marulhou, como um oceano encapelado, na minha cabeça de adolescente essa tua ousadia chamada «As revelações da Morte»: não é mesmo que tu «revelaste» o lado da Vida, falando da Morte? Agora que já cá estou, dou todo o crédito bancário à tua hipótese maluca de trabalho e acho que deviam ter-te dado o Prémio Nobel, forma de castigarem uma actividade reflexiva altamente subversiva e herética. A Heresia, contigo, ganha foros de Paradigma.
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1-1 92-02-03-ls> leituras do afonso - quinta-feira, 10 de Abril de 2003- chestov3 - - > notas de leitura [ solta - suplemento «largo» - 868 caracteres] releituras do acaso - as correspondências imaginárias - visionários ou parentes do surrealismo

O «A» QUE É «A»

3/2/1992 - O princípio da identidade que ainda se estuda na secção dos compêndios de Filosofia chamada «Lógica», aparece discutido por Leão Chestov, entre outras obras n'«As Revelações da Morte» e a pretexto de um livro de Dostoievski, quase esquecida, «A Voz Subterrânea»
É interessante a revolta que em certos autores modernos se verifica contra esse soberano princípio -- base da lógica aristotélica e do raciocínio dualista tal como veio sendo praticado nas culturas de herança greco-latina -- contra a «ditadura» desse princípio - «o que é, é» -- revolta que se sabe antecipadamente frustrada, que de vez em quando recrudesce de intensidade e que a dialéctica, mediante uma ligeira modificação no princípio - A pode não ser A -- pretende superar.
Todavia, quem se pode gabar de poder fugir à tirania do A que é A? Quem? ■

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