s&s-1> surrealismo e surrealistas - notas de leitura
A GRANDE AVENTURA: NA VANGUARDA DO DEBATE
A POSIÇÃO HISTÓRICA DO SURREALISMO (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 28/7/1965, foi publicado na revista «Cronos» - «Cadernos de Arte e Literatura» - Nº4, em data inlocalizada
28/7/1965 - A história contemporânea propôs algumas encruzilhadas de que raros quiseram ter consciência; a resposta às perguntas, a solução (provável) dos problemas, a sequência das situações ficou normalmente no tinteiro, por covardia ou resignação. Mas os factos não deixam por isso de falar (e falar bem alto) até que os ouçam, até que se lhes responda.
O surrealismo, um dos poucos movimentos contemporâneos a ter consciência imperativa dessas contradições e desse apelo, tentou responder, tentou corresponder. Talvez falhasse, falhou com certeza, mas tentou: tentou a resposta e perspectivou a pergunta de um ângulo rigoroso, sem nenhumas concessões à ordem e forças que a sustentam. Simplesmente parece não haver, não ter havido espíritos que, trabalhando em seu nome e sob o seu rótulo, se mostrassem à altura das próprias ambições. Algumas obras surrealistas recaíram no artístico e os autores conformaram-se por vezes à ordem estética, política e ética estabelecida antes e depois mas que o movimento, em princípio e por definição, repudiaria. De qualquer modo, pertence-lhe o mérito de ter resistido mais tempo do que o habitual em tais emergências. E de ter dado o exemplo a futuras saídas para o impasse. Não faltou lucidez a muitos dos seus teóricos, mas fal-tou-lhes talvez clareza de pensamento, evidência na proposição pública dos temas e palavras de ordem fundamentais.
Fora do surrealismo, poucos foram também os ensaístas que ajudaram a esclarecer e a sistematizar. Confundiu-se tendenciosamente e por motivos de arregimentação ideológica, deturpou-se de propósito as intenções e realizações do movimento. Estalaram as polémicas e as energias consumiram-se quase todas num exibir de roupas pessoais. Entretanto, o surrealismo excedia as suas próprias intrigas de bairro, as suas próprias teorias e realizações, as suas próprias forças e fraquezas. Iria constituir, por velocidade adquirida, o ponto de encontro inevitável de muitas coisas esquecidas pela história oficial e outras coisas que o homem subterrâneo, oposto à história visível, iria revelar e relembrar. A primeira pesquisa do «sub-solo» pertence-lhe e pertence-lhe por isso o inegável, o irrevogável direito de prioridade. De tal maneira que venceu assim e por isso a notória obscuridade de pensamento dos seus teóricos, autores quase todos de uma prosa hermética ainda quando crítica.
Muitas figuras, obras e correntes «subterrâneas» houve que o surrealismo francês ignorou, limitando-se o grupo de Paris, no chauvinismo que imemorialmente caracteriza a cultura francesa, a pesquisar nesta o que havia e a minorizar ou ignorar o restante. Como se o mundo fosse a França! É este um dos aspectos a corrigir, pelo lado de fora; a corrigir pelos que olham, param e escutam o surrealismo, dispostos a superá-lo. Porque vale a pena aproveitar a experiência ganha e prossegui-la. Porque vale a pena retomar o que o surrealismo deixou em aberto e em suspenso, lembrar as vias que reabilitou, franquear as portas que entreabriu, redescobrir as fontes que ele descobrira.
O que se deverá, pois, entender hoje e aqui por surrealismo não será já o que se entendeu ontem e em França. Surrealismo não são apenas obras e autores do grupo francês ou dos grupos, fora de França, assim designados; é todo o levantamento bibliográfico e iconográfico promovido pelos surrealistas, re-iluminando tradições ocultas, religando circuitos aparentemente perdidos, pondo outra vez em causa e discussão temas dados por arrumados, assuntos tidos por tabus, verdades rotuladas de crendices, livros e autores declarados mortos (mas que se verificou estarem mais vivos do que muitos vivos!), critérios considerados anacrónicos.
Claro que conviria usar outra palavra, menos comprometido do que «surrealismo», mas não sei se tal palavra existe ou se será legítimo criá-la. Apenas por diligência simbólica, utilizaríamos a alegoria do «subterrâneo» para significar as correntes reunidas no e pelo surrealismo, que nele convergiram ou que dele irradiaram, já que a comum característica subterrânea as identifica a todas. Abrangendo o surrealismo, ponto central da encruzilhada, as várias metas e vias que nesse ponto central se cruzam, deve falar-se com mais propriedade de um «complexo surrealista», de modo a incluir nele não só o que explicita ou historicamente se designa de surrealista mas o que, antes e depois, vem animado do «espírito surrealista», proto-, cripto-, ou para-surrealista. Esta amplitude semântica deverá ter-se presente no uso da palavra «surrealismo».
Precisamente porque tentou solucionar problemas, ensaiar respostas, anular antinomias, realizar «impossíveis», podem apontar-se ao surrealismo contradições. Muitos surrealistas viveram e assumiram essas contradições no próprio corpo, às vezes de forma dramática. Na coragem ou lucidez com que o fizeram, reside o valor e exemplaridade da sua poesia. O surrealismo não temeu as contradições porque não quis fugir aos problemas. E se os outros agrupamentos apresentam maior coerência interna, menos fraquezas e pontos críticos, é simplesmente porque fugiram às perguntas, escaparam às situações, escamotearam os problemas. Escapismos vários e vários conformismos tecem assim a teia em que o surrealismo se viu enredado. Por eles vaiado, por eles foi entregue e apontado às massas como inimigo público número 1. Nem um só dos intelectuais bem criados (com todas as vantagens que dá o acordo com qualquer ordem estabelecida) deixou de proceder ao julgamento sumário e ao enterro precoce do surrealismo, cuja luta contra bem pensantes e conformistas, escapistas e académicos, obscurantistas e oportunistas (disto, daquilo, daquiloutro) se manteve com mais ou menos glória e assiduidade. Necessariamente polémico no meio da Abjecção aceite e fomentada, há que averiguar sempre, nas polémicas em que se envolveu, de que lado está o franco-atirador, o homem só-entregue-a-si-próprio e à mercê dos escorpiões, e de que lado estão os abnegados defensores das instituições que «corajosamente» defendem, nelas apoiados. Em tais polémicas há que averiguar sempre a desvantajosa posição dos surrealistas perante os autores de discursos. O surrealismo, neste aspecto, nada inovou, continua apenas a intérmina polémica do homem só contra o homem em grupo, do Indivíduo contra a Instituição, do franco-atirador contra o alistado. E não admira que tentasse reunir em grupo as unidades ou forças isoladas, as «solidões combatentes», embora haja de se lhe reconhecer aí uma das suas mortais contradições, a mais lealmente assumida e quixotescamente mantida: única tentativa que o nosso tempo conheceu de organizar o inorganizável, de aliar em uma só força os franco-atiradores de todo o mundo, de reunir em grupo os incuráveis individualistas chamados poetas, de submeter a uma lei de clã os rebeldes anarquistas de sempre, de tornar enfim o quadrado redondo...
Contradição estrutural - que Breton e os mais jovens responsáveis pelo movimento parece não terem resolvido - é de facto a que se verifica ao preconizar simultaneamente uma acção individual e um propósito de acção organizada ou colectiva. A acção individual ou poética não se compatibiliza com uma acção útil, prática, eficaz, organizada. A articulação entre os indivíduos para uma acção conjunta pressupõe aquilo que um individualismo anárquico não consente: coacções de ordem geral e disciplinar sobre os indivíduos, sobre as deliberações mais ou menos irracionais e indisciplinadas do indivíduo. Daí as purgas consecutivas verificadas no seio do grupo francês e a impossibilidade de haver grupos surrealistas por muito tempo. Daí também a utopia (o «drama» na expressão enfática de Victor Crastre) de o surrealismo querer participar numa acção política efectiva e daí a acusação (infundada) de ignorar a circunstância histórica, os problemas de base ou infra-estrutura, de ser um idealismo mascarado de predilecções ateias e dialécticas. Esta crítica, aliás, permanecerá vigente enquanto permanecer insuperável a antinomia histórica que lhe dá origem (indivíduo contra grupo) nas sociedades politicamente fechadas, estagnadas, ditas autoritárias e totalitárias.
No entanto, esta impossibilidade de facto é mais do que suficiente para provar que o surrealismo não esteve alheado da história nem propôs estética que preconizasse o indivíduo alheado dos problemas concretos, do movimento histórico, das circunstâncias. Antes ao contrário: nenhum outro movimento se preocupou mais com a ética e menos com a estética. Sem constituir teoricamente um humanismo moral, nenhum outro movimento se preocupou tanto com a posição (a dignidade) a manter pelo indivíduo frente à Instituição e, se necessário, contra a Instituição. Tão exigentes, aliás, foram os princípios da ética surrealista que poucos lhe ficaram fiéis, indo a maior parte substituí-la por uma política (ou «ética para uso de muitos»). Movimento «individualista», mesmo na acepção pejorativa que queira dar-se à palavra, é evidente que não podia resolver problemas materiais ao nível colectivo e, se nunca tal pretendeu, também é verdade que nunca ignorou esses problemas, nunca se alheou do tempo e mundo contemporâneo. Não ignora a História, embora, porque se trata de acção individual e individualista, não esteja preparado para agir e lutar colectivamente no sentido de a modificar. Agiu, sim, na esfera que lhe parecia própria e as dezenas de censuras a que os textos surrealistas continuam fazendo dores de cabeça dão prova da sua virulência, da sua utilidade, da sua eficácia. Se a palavra escrita é assim tão ociosa, tão platónica, tão historicamente ineficaz - porque se afanam tanto as ordens estabelecidas em cortar e perseguir, em calar e amordaçar a palavra «obscena» dos surrealistas? Os que o perseguem conferem-lhe um valor e significado que, de outro modo, talvez o surrealismo não tivesse...
Se a acção surrealista é uma específica pedagogia, uma educação sui-generis, se o seu campo de batalha se limita (ou amplia?) às ideias, e da literatura fez a temível arma que se sabe, evidentemente que o surrealismo teria de falhar enquanto movimento político (que aliás nunca quis ser). Ao doutrinar as gentes, da sua doutrina nada mais podia extrair-se que preceitos de conduta individual, relativamente embora a problemas de relacionação e convivência colectiva. Critica-se o surrealismo pelo seu «idealismo», pela sua revolta inconsequente, pela sua luta quimérica contra as várias formas de alienação organizada a que os regimes políticos - autoritários e liberais - submetem os homens. Mas qualquer epíteto com que se rotule, ninguém lhe contesta nobreza moral na intransigente atitude contra todos os conformismos e a prontidão com que, durante muitos anos, os mais activos surrealistas denunciaram toda e qualquer espécie de obscurantismo, de opressão, de «traição ao homem».
Resumindo e concluindo:
se a acção só é possível depois de organizado um grupo, se a organização de um grupo reclama sobreposição hierárquica e a hierarquia significa obediência, mutilação da liberdade individual, atrofia de capacidades críticas e criadoras, dir-se-ia que a acção surrealista estaria condenada por dois lados:
1º) porque não é possível conceber dentro do grupo a máxima liberdade ou indisciplina individual (sinónima de poesia);
2º) porque o acto de anarquia individual estaria condenado à sua própria solidão, não passando a acção surrealista de actos surrealistas isolados, dispersos, incapazes de coordenarem ou impulsionarem um movimento de alcance prático.
A contradição existe e o surrealismo não a ignora. Simplesmente tentou o impossível, enquanto outros se renderam perante ele. Por isso o surrealismo, mau grado esta e outras contradições de base, ganhou uma surpreendente e dinâmica irradiação, afirmou e continua afirmando uma notável vitalidade, o que leva a crer que não só as contradições são o seu campo privilegiado como essas são as contradições inerentes a uma época e a quantos assumam a sua época em toda a extensão e responsabilidade. Como tal, o surrealismo ainda não teve quem o batesse e superasse. As contradições assumem-se, não se evitam. Porque as viveu e assumiu, enquanto outros as escamoteavam e se lhe escapavam (quantos escapismos viu a nossa época!), o surrealismo continua a ser o movimento mais polémico e, em consequência disto, o movimento mais discutido de quantos, centrados na Europa em princípios do século, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, exerceram influência mais ou menos duradoura. Fraca influência, é certo, pois os debates de ordem intelectual deixam sempre a perder, em colorido e sangue derramado, às guerras armadas; mas, de qualquer maneira, debate que necessariamente interessa ao homem do nosso tempo e mundo, mergulhado nas contradições históricas e querendo aprender a vivê-las enquanto não puder ultrapassá-las.
Primeiro o futurismo (que desaguou na baixa política), depois o dadaísmo e o micróbio devastador que inoculou, depois o surrealismo - que há quarenta anos sustenta a vanguarda do debate - quer se considerem subprodutos históricos ou contributos para a marcha do progresso humano, todos concorreram para modificar a óptica com que o homem se examina a si próprio, desenhando-lhe simultaneamente a fisionomia dilacerada, convulsa e contraditória, assimétrica e ambígua. O clássico e o moderno, o académico e o anti-académico, o retrógrado e o revolucionário - eis, por culpa do surrealismo, os termos antitéticos inevitáveis em que o debate se formulou e terá de continuar a formular-se, facto que faz do surrealismo a mais importante encruzilhada intelectual do nosso tempo, onde não se pode parar mas onde não se pode deixar de passar. Ele representa hoje, para lá de todas as fraquezas e limitações, a «grande aventura», o mais constante e antigo anelo do homem: o seu renascimento, a sua perpétua metamorfose.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, escrito em 28/7/1965, foi publicado na revista «Cronos» - «Cadernos de Arte e Literatura» - Nº4, em data inlocalizada
sábado, 21 de julho de 2012
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