quinta-feira, 30 de Junho de 2011-; Texto expurgado de algumas alarvidades e que deverei conservar para Trajecto AC-CF
INCENDIÁRIOS DA IDADE MÉDIA:MÍSTICOS SÃO FOGO
Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital», 17.04.90, na secção do autor «Livros na Mão»
Os místicos da (tenebrosa) Idade Média são fogo. Não contentes em terem incendiado a Europa das cruzadas e da fé em Deus, preparam-se também para pegar fogo a esta sociedade caquética do horror tecnoindustrial.
Bem amolada, pois, fica a tecnoburocracia reinante na Europa do Mercado, se de facto está em curso, como tudo indica que está, um novo processo revolucionário, um novo renascimento místico que, com rastilho na heresia de ontem e de hoje, irá fazer aos tecnocratas o que os cristãos das cruzadas fizeram às hostes barbarescas. Migas.
Há sinais, no horizonte editorial, de que a grande tempestade se aproxima e de que não ficará pedra sobre pedra, pois o fogo místico anda a atear--se, com a ajuda de alguns eremitas e modestos monges medievais, sem vergonha nem temor. Eles irão incendiar muitos mais hectares de florestas do que aqueles que os fogos consomem todos os verões em Portugal continental.
Segundo o próprio movimento editorial dá mostras, os próximos tempos já não serão só de renascimento lírico e romântico mas também metafísico. Daí que, à cautela e lendo a história ao contrário, Umberto Eco tenha preconizado, antes ainda de ser catedrático, um novo «Medioevo». Porque o lírico e o romântico, para não serem delíquio anémico, precisam do fogo místico como pressuposto a assoprá-los. Tal como os magos alquimistas assopravam as labaredas dos seus alambiques.
Monstros do bestiário universal
Nos últimos meses, três obras aparecidas em língua portuguesa anunciam que está próximo o advento da civilização e que a barbárie recuará finalmente para os confins do Inferno, onde se encontrava no dealbar da Idade Moderna.
Pertencem essas obras a dois místicos espanhóis - claro! - Santa Teresa de Ávila e Raimundo Lull. São essa obras: «Morada» e «Seta de Fogo», daquela santa e «Livro do Amigo e do Amado», do eremita franciscano que foi, pela Igreja, cognominado o «Doctor Iluminatus», beato e mártir.
Mas chamar «espanhóis» a esses dois monstros do bestiário universal é, desde togo, restrito, ridículo e quase infame, é desde logo a primeira esparrela em que se cai ao rondar fogo de tal natureza, zona tão secreta e cifrada da realidade como é esta dos comportamentos místicos, experiências-limites que ninguém define, horas de ponta no tráfego da literatura e da cultura.
Mais concretamente e chamando aos bois pêlos seus nomes: Raimundo Lull é catalão (claro) e, mais concretamente ainda, de Palma de Maiorca - uma das ilhas Baleares que ficaram emersas depois da Atlântida (Mu) submergir. É, portanto, celta e druida depois da letra.
Santa Teresa, por sua vez, é de Castela Velha, o que, de espanhol, em sentido moderno, também talvez não tenha muito.
Quer dizer que, se o fogo místico incendiar de novo esta podre Europa do hedonismo consumista, o que desde logo irá mudar do avesso é o mapa das nacionalidades e das independências consumadas.
A Leste, o mapa já está mudado e a ficar mais colorido; a Oeste, esperemos em Deus e em Marx que também.
O inocente franciscano
Do que as nacionalidades têm para oferecer à Comunidade do hipermercado comum, o melhor são ruínas: e bem exemplificativo é o caso de Lull, esse furacão tresloucado que deixou (só) 256 obras (quem as conta é a insuspeita Enciclopédia Verbo) mas que ainda teve tempo de pregar a fraternidade cristã aos gentios (o que foi chover no molhado já que a fraternidade veio de lá), aprender árabe com um jovem efebo desta nacionalidade, mandar para o inferno de Dante o inquisidor Aymerich, deixar-se empalar corno herege, antecipando assim, em estilo ficção científica, o que iriam fazer ao místico do século XX que foi P.P. Pasolini.
Lull ficaria assim, para sempre, entalado na garganta da Santa Madre Igreja como o osso mais duro que ela alguma vez teve de engolir. E ainda não engoliu, como se comprova pelas bulas e excomunhões lançadas (ontem, hoje, amanhã) àquela parte da vida e obra do «Doctor lluminatus» que não é conforme aos bons costumes e às conveniências da corte, «verbi gratia» a Alquimia...
«O Livro do Amigo e do Amado», agora lançado pela editora Cotovia, é o caso mais conhecido e popular (por isso o mais perigoso) de heresia «lulliana», falando com Deus de homem para homem, num espectáculo que os mais susceptíveis classificariam hoje de obsceno.
Mas talvez pior do que a mística «do amigo e do amado» - que deve ter posto o inquisidor Aymerich pior do que uma barata - foi a heresia alquímica e cabalística deste inocente franciscano, cuja paixão pela vida o havia de matar e que, em troca dos preceitos cristãos impingidos aos árabes, destes recebeu a sabedoria eterna da transmutação alquímica.
Das 30 fichas biográficas que compulsei sobre Lull, mais de metade classificam de «apócrifas» as suas obras de alquimia e cabala, que não cabem, evidentemente, no corpete curtinho da ortodoxia.
De «apócrifo», porém, não conseguiram classificar este «Livro do Amigo e do Amado» que assim chegava. em pura língua catalã, até aos nossos dias, como a mais pesada herança, a mais desafiante pedra de escândalo que a moral puritana e vitoriana poderá admitir.
Note-se, em rodapé e a tempo, que a primeira referência, em Portugal, a esta "jóia da literatura catalã» (como diz a insuspeita Enciclopédia Verbo) se deve ao poeta místico e por sinal alentejano Raul de Carvalho, nos seus «Poemas Inactuais» (Portugália, Lisboa, 1971, página 58).
Hereges com hereges devem ficar, em comunhão de vida, mesa e cama, «Les beaux esprits se rencontrent».
Actividade de alto risco
A propósito de comunhão, mesa e cama, vem Teresa de Ávila, esse outro monstro tresloucado da mística castelhana da idade de ouro, cem vezes pior, à luz dos códigos civis e morais, do que o herege Lull.
A expressão «fogo místico», como diria Umberto Eco, deriva mesmo desse facto: Teresa e Lull desafiaram de tal maneira o «establishment» da época, de tal forma abalaram o Mercado Único europeu, que o fogo dos infernos se lhes ateou às vestes e os bombeiros da Inquisição sobre eles se teriam de abater, prefigurando, profetizando esse monstro, Joana D'Arc, igualmente reduzida a torresmos.
Fogo e poesia andaram, assim, durante muito tempo ligados à Alquimia, quando a literatura, como queria André Gide, Michel Leiris e outros surrealistas, ainda era uma actividade de alto risco e alta voltagem.
Agora que a literatura passou a renda de bilros ou ao nível do salpicão da salsicha, poesia deixou de estar assimilada com fogo místico e alquímico.
Não quer dizer que, de vez em quando, um transviado e tresloucado, rasgando a noite escura, fugindo à vigilância dos críticos, não faça outra vez da poesia o lugar-comum de Deus e o terreno privilegiado da heresia e/ou alegria criadora.
É o recente caso de Fernando Pinto do Amaral, com «Acedia», a referir nesta página mais pormenorizadamente no enquadramento da mística portuguesa do saudosismo a que em breve nos aplicaremos com afinco e esferográfica.
Afonso Cautela
quinta-feira, 30 de junho de 2011
quarta-feira, 15 de junho de 2011
quinta-feira, 9 de junho de 2011
LAWRENCE DURRELL NA BIBLIOTECA DO GATO
1-4 - Durrell-md-1-2>quinta-feira, 6 de Novembro de 2003
1-3 sexta-feira, 20 de Dezembro de 2002
durrell-1> releituras mágicas - site «o gato das letras» - caminhos do maravilhoso - antecedentes da hipótese vibratória
O LABIRINTO DO CONHECIMENTO
O LABIRINTO DE LAWRENCE DURRELL OU ONDE A LITERATURA ENCONTRA
A TEORIA DO CONHECIMENTO(*)
Do talento ao génio vai uma distância que nem todos os escritores sabem e podem percorrer. Dir-se-ia que o talento é inimigo do génio e quando um escritor nos aparece brilhante, eficaz, senhor de si e dos seus recursos, domador ou malabarista exímio das palavras, implacável virtuoso da literatura, quase sempre desconfiamos pois raramente esses dons naturais - esse talento, essa arte - vão acompanhados daquela longa paciência ou insistência no fracasso a que se chama génio.
Lawrence Durrell é um caso de talento, um caso sério de talento. Tem muitas, inúmeras qualidades de escritor: ágil, agradável, subtilmente sarcástico ou irónico, fácil, aliciante. Trata os assuntos com leveza e sabe contar histórias: principalmente sabe contar histórias. E, em saldo final, há nele uma bonomia, uma boa fé, um optimismo mitigado que o torna simpático ao crente e ao descrente. Uma certa ambiguidade nas posições tomadas confere-lhe ou acentua-lhe ainda maior encanto e maior sedução. As suas personagens, nitidamente desenhadas, sem nunca atingirem a dimensão de tipos, símbolos ou mitos, têm no entanto vida, autenticidade, espessura humana. Tudo isto são qualidades mais que suficientes para desconfiar de Lawrence Durrell, para crer que ele é mais uma vítima do excesso de talento. E, no entanto, cremos possível provar a existência do génio ou impulso verdadeiramente criador na sua obra. Vejamos onde e como.
No romance “O Labirinto Negro” (**) traduzido por Daniel Gonçalves que soube transmitir todo o colorido e vigor do original, Durrell vai buscar à mitologia grega a história do labirinto e do fabuloso Minotauro desse mítico labirinto. A existência provável e possível de um labirinto numa ilha do Egeu seria o centro ideal para Durrell e o seu gosto pelas atmosferas míticas encontrou aqui esplêndida matéria-prima.
Durrell resolveu escrever a sua versão do mito (Minotauro incluído), actualizá-lo e torná-lo funcionável para o gosto moderno. E postos em acção todas os seus recursos de narrador, o labirinto, a excursão ao labirinto e a derrocada dentro do labirinto aparecem-nos com uma verosimilhança e nitidez tais que a advertência final do autor - «as personagens descritas neste livro bem como os acontecimentos são totalmente fictícios” - é que nos parece incrível, inacreditável.
Tudo isto, porém, não basta. Como ele, muitos escritores há que sabem contar histórias, delinear perfis psicológicos, brincar com coisas sérias, pôr sal e pimenta na linguagem, criar, em duas penadas, climas e situações, dar-nos descritivos inesquecíveis pela beleza ou pelo rigor. Nada disto porém seria ainda suficiente para considerar Durrell um escritor “diferente”, um escritor “à parte”. Todo esse talento, só por si, não bastava se não estivesse ao serviço de uma necessidade criadora muito mais profunda. Aparentando leveza e frivolidade, Durrell consegue levar, melhor do que nenhum outro, a água ao seu moinho, sem que ninguém tenha coragem de lhe pedir contas... filosóficas.
Serve-se do romance para pôr problemas e para promover um trabalho de subversão gnoseológica. Muitos outros escritores, aliás, preocupados em pensar “diferente”, em filosofar fora dos sistemas e das ideologias, recorrem a processos igualmente insólitos e bizarros. Às vezes nem se dá por tal mas o facto é que o “literário” deixou de ser apenas literário e, mais cedo ou mais tarde, de longe ou de perto, invadiu o campo da interrogação filosófica. Assim acontece com alguns escritores do novo romance e na literatura moderna, de Dostoievki para cá, é muito difícil encontrar um escritor de facto grande cujo pensamento se possa negligenciar. O facto reside talvez nisto: a epistemologia foi minada pela base e as teorias do conhecimento que antes se arrumavam em duas únicas prateleiras distintas - idealismo a um lado, materialismo a outro — já não cabem hoje nesse esquema; e são os filósofos disfarçados de romancistas, de poetas, de dramaturgos que, embora de maneira velada, clandestina, ambígua (porque os guardas da ordem ou ortodoxia filosófica estão vigilantes...) a reproblematiza.
A excursão real ou inventada a um labirinto real ou inventado onde acontece uma derrocada real ou inventada, tudo isso, dentro do plausível ou possível, podia ter acontecido, podia até, por um acaso feliz, ter havido por lá um repórter - cronista, jornalista ou historiador - que relatasse como aquilo foi. Como aquilo foi - mas só até à derrocada. Os jornais do tempo teriam mesmo dito que foi uma “horrível catástrofe” mas, após a derrocada, tudo ficaria no limbo do silêncio. O homem só sabe e conhece o que vê, até onde vê. Se deixa de ver - deixou de saber e conhecer.
Exactamente aí — onde o repórter teria desistido de contar a história, por não ter sido possível prosseguir e ver o que havia - exactamente aí é que o romance de Lawrence Durrell deixa de ser um mero exercício de estilo, uma história mais ou menos fascinante de aventuras, o relato em suspense do que aconteceu a um grupo real ou inventado de excursionistas. Exactamente aí - embora sob o aspecto ainda aparentemente frívolo e leve do autor - é que a coisa começa “a sério’, e que Durrell inicia o seu mágico trabalho de inventor puro, a sua conjectura ou suposição no campo do infinito verosímil, o seu cálculo de probabilidades com rigor geométrico. Exactamente aí é que a literatura toca o conhecimento e os limites do conhecimento.
A aventura prossegue, com o mesmo colorido, o mesmo à-vontade narrativo, o mesmo dom da observação, da mesma perspicácia na captação do invisível ou do subtil, o mesmo sarcasmo e até crueldade no apontar defeitos e fraquezas da condição humana: Durrell não se detém onde o presumível repórter se teria detido - porque o escritor é mais do que um descritor do que se viu ou seria possível ver, e mais, muito mais que um mero narrador de histórias para entreter o leitor nas horas vagas. Durrell vai conhecer pela imaginação o que já não seria captável pelo conhecimento sensorial. Ali onde o conhecimento empírico desiste, Durrell entende que a imaginação pode e deve continuar trabalhando, correndo embora os riscos inerentes a quem se aventure em pleno desconhecido, nos domínios impenetráveis do provável mas impossível. Razão têm os que afirmam o “perigo” latente nos romances de Lawrence Durrell, perigo para as ordens filosóficas reinantes, perigo que o escritor no entanto tem obrigação de correr: um pirronismo fundamental aliado a uma “destruição do tempo” que deixou de ser o fio uno e único para ser uma incógnita suspeita de idealismo. No Quarteto de Alexandria a realidade tem 4 versões que abrem o campo a X versões, sendo X o caminho para a anarquia ou subversão gnoseológica e o caos metafísico: o perigoso “labirinto" de Lawrence Durrell e o iminente perigo de uma derrocada..
A voz quietista de Durrell, a sua filosofia moral, a sua ética ou ausência dela aparece onde o casal Truman vai encontrar a mais estranha das personagens no mais estranho dos lugares: O Tecto do Mundo, onde o mistério e pavor primitivos rodeiam as coisas, a paisagem, as pessoas e a luz de uma poética ou mítica aurora. Durrell perfilha claramente esse “retiro” imaginário no imaginário, esse retiro num mundo totalmente “fora do mundo”, após a peregrinação num labirinto que bem pode ser neste aspecto o símbolo da civilização ocidental, onde o homem se perdeu de si próprio (alienou), onde uma derrocada iminente (atómica? termonuclear?) o ameaça e onde o fabuloso Minotauro simbolizaria a revolta da natureza contra o homem que drasticamente a quis “domesticar”, transformando o monstro numa pacífica vaca leiteira... Pode lamentar-se este aspecto cínico da sua moral — mas quem não lhe perdoará o mal que isso faça pelo bem que sabe? Aliás, Durrell, insular e singular como todos os poetas, aceita-se ou recusa-se e não há que julgá-lo em nome de nenhuma moral construtiva. Porque é ele, enquanto poeta, enquanto criador, a moral e a lei.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, com este título, no suplemento literário do «Jornal de Notícias» (Porto), em Novembro de 1964
(**) «O Labirinto Negro», de Lawrence Durrell, tradução de Daniel Gonçalves, Editora Ulisseia, Lisboa, 1964
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1-3 -durrel-2-ls> sexta-feira, 20 de Dezembro de 2002
«UM SORRISO NOS OLHOS DA ALMA»(*)
O CULTO DA AMIZADE ENTRE OUTRAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA(**)
19-8-1990-Nome grande da literatura contemporânea, Lawrence Durrell pode permitir-se pequenos «divertimentos» autobiográficos como este que, sob o título de «Um Sorriso nos Olhos da Alma», a Quetzal acaba de lançar em língua portuguesa(*).
Lawrence Durrell, que nasceu em 1912 na Índia ( Himalaias), facto que, como se verá neste livro, não foi de modo nenhum acidental mas marcou todo o seu percurso de homem e de escritor, tem o génio da comunicabilidade e a sua imaginação é sempre brilhante, quer quando cria esse romance-chave do nosso tempo que é «O Quarteto de Alexandria», quer quando tenta a narrativa de «suspense» com esse fantástico romance-fábula que se chama «O Labirinto Negro», quer quando troca cartas com outro grande do nosso tempo, o escritor Henry Miller, em muitos aspectos seu homólogo.
Sobretudo, ele tem a arte de transformar um pequeno «fait-divers» em ponto de partida para as histórias mais fantásticas ou as reflexões mais profundas sobre o destino humano. Ambas as narrativas deste volume partilham esse seu génio transfigurador, ainda que ambas se possam apenas considerar relatos meramente autobiográficos, na medida em o narrador se assume como o próprio autor, sem qualquer disfarce ou pseudónimo.
Lêem-se como prodigiosos exercícios de imaginação, com base em uma linguagem fulgurante, que, em todas as circunstâncias, faz o «estilo Durrell». Esta arte de transmutação alquímica da palavra é, aliás, um dos pontos de contacto mais curiosos entre Durrell e o seu «irmão gémeo», Henry Miller, seu correspondente e amigo de sempre.
Contando coisas da sua vida, não é monótono nem vulgar, mas empolgante. Duas personagens marcam as duas histórias deste pequeno grande volume de Durrell: o chinês Jolan Chang, que apronta um livro sobre sexo e taoísmo na casa do escritor, onde fazem ambos constante «brain storming»; e Chantal de Legume que, com ele, percorreu os locais onde Nietzsche se declarou a Lou Andréas-Salomé, na tentativa de melhor compreender o autor de «A Genealogia da Moral» e «A Origem da Tragédia». Com o retrato entre o real e o fantástico destas duas figuras, Lawrence Durrell avança nos meandros da alma humana com a lucidez vertiginosa e o encanto de linguagem mágica que são seu timbre e que nele não dão mostras de envelhecer. Talvez porque tenha aprendido com o sábio Jolan Chang, e suas doutrinas sobre o orgasmo, o segredo de nunca envelhecer.
O CULTO DA AMIZADE
Saber se uma «amizade particular» pode ter mais encantos que uma devoradora paixão física, é apenas um dos múltiplos caminhos apontados neste livro de Lawrence Durrell, breve mas carregado de consequências e direcções, como uma encruzilhada, uma rosa dos ventos de onde se parte para os quatro pontos cardiais, para os mil pontos cardiais do universo e da vida.
São dois relatos da Amizade que o autor cultiva, tal como o seu inseparável companheiro Henry Miller, como um jardim suspenso. Dois encontros, como já se disse, constituem o ponto de partida para a história: um, com o sábio taoísta que apronta um livro sobre a sabedoria primordial do «ki» energético para uso do hedonismo ocidental; outro, com a jovem Lou, uma sensível alma de mulher à procura, como ele, do mistério que foi a passagem mortal pela vida de um senhor chamado Frederico Nietzsche.
É com estas bagatelas que o livro, o pequeno livro de L.Durrell, se basta. Mas não esquecer que o «Tao Te King», constantemente citado pelo escritor, ainda tem menos páginas do que esta narrativa, sem deixar por isso de conter toda a sabedoria das fontes primeiras e sem deixar de constituir, por isso, a placa giratória de onde emana a essência da sabedoria «yin-yang».
GENES PROPÍCIOS
Para um ocidental (de)formado nos pressupostos e preconceitos de uma cultura baseada na oposição dos contrários, poderá considerar-se verdadeiramente notável o esforço de aproximação e «aggiornamento» realizado pelo autor de «Mountolive». Irlandês pelos genes da mãe e inglês pelos do pai, mas nascido geograficamente perto do País da Sabedoria, essa circunstância meramente tópica tê-lo-á ajudado, talvez como predestinação, a dialogar com a dialéctica dos contrários - a lógica do contraditório - e a demonstrar, na sua obra romanesca, a vitalidade criadora que a síntese dos opostos necessariamente pode motivar. Mas é também isso que o leva a não compreender aquilo a que curiosa e insistentemente chama heterosexualidade, nas acesas discussões com o monge chinês seu hóspede.
Este rápido apontamento de memórias transfigurado em ensaio de iniciação e karma yoga, relaciona-se de maneira exemplar com esse princípio universal da doutrina taoísta: a parte está no Todo e o Todo está na parte. Deriva daí a sensação de plenitude que um texto como este, pequeno de tamanho, nos consegue transmitir.
Servindo de alavanca à faina iniciática de um escritor que foi sempre muito mais do que mero literato de consumo, «Um Sorriso nos Olhos da Alma» poderá constituir, para o desprevenido, alienado, desatento e infeliz consumidor de «best-sellers», a melhor introdução ao mundo interior de Durrell, um autor que trouxe para a literatura ocidental o fascínio da sabedoria iniciática e esotérica, amplamente demonstrado, por exemplo, em livros seus como «O Labirinto Negro» (1961), curiosamente um dos menos citados e mesmo omisso em fichas de dicionário de origem inglesa.
Se o «small is beautiful» - e é preciso sabê-lo para entrar na onda de Durrell - esta narrativa breve vale por todos os extensos relatos da abominação e da abjecção, ou seja, o fardo insuportável que dá hoje pelo nome-cão de romance contemporâneo.
PARA LÁ DO «BLÁ-BLÁ»
Um dos pontos cardiais que se destacam nesta «rosa dos ventos» é a valorização do «acto imediato», o que um revolucionário traduziria por «acção directa», face ao «blá-blá» verbalista e ao raciocínio desactivado de que padecemos.
Se a perspectiva é a da dialéctica taoísta, o texto de Durrell pode aspirar a ser uma iniciação à iniciação, pesem embora nele ainda os genes do hedonismo ocidental, corruptor de menores, perdulário de energias, condenado à eterna entropia: só por isso ele hesita em reconhecer, nas fontes que tem ao pé, o primado da sabedoria sobre a alienação ideológica, os níveis de percepção sensorial e outros enganos daí advindos.
Ele diz no livro, aliás, que faz as malas e abala para Lhassa, capital do Tibete, se um dia quiserem fazer dele mais um intelectual à francesa. Neste sentido, a presença de Durrell na ordem literária bem-pensante, tem sido e continua a ser saudavelmente polémica.
Quando já não se aguenta mais a «kunderização» da literatura, há sempre o recurso de ameaçar a ordem estabelecida e os críticos da moda com a metáfora do Manuel Bandeira:«Vou-me embora para Pasárgada». Alguns já lá estão, embora tenham de continuar a fazer corpo presente nesta choldra das crises bolsistas, de oito em oito anos, a que se reduz, afinal, a gloriosa cultura ocidental de batatas e petróleo.
Durrell é dos que conseguem estar na charneira. Ele deixa o quarteto de Alexandria, deixa o quinteto de Avinhão, deixa os limões amargos e as águias brancas sobre a Sérvia, o livro negro e mesmo o labirinto da mesma cor, mete-se ao caminho e pisga-se.
Sabe que encontrará, nas imediações dos Himalaias, um velho lama tibetano, «bem constituído e rubicundo», com um sorriso de simpatia, habitual nos habitantes da região, dirigir-lhe em inglês as únicas palavras que sabe proferir nessa língua: «Olá, meu caro, benvindo à nossa terra das neves eternas.»
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(*) «Um Sorriso nos Olhos da Alma», de Lawrence Durrell, tradução de Helena Cardoso, Quetzal Editores
(**) Este texto de Afonso Cautela, indubitavelmente 5 estrelas, deve ter ficado, indubitavelmente também, inédito. Há uma versão reduzidíssima, em wri, essa é que deve ter aparecido em «Livros na Mão»■
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